As incertezas quanto à aprovação da PEC dos precatórios (proposta de emenda à Constituição 23/2021) pelo Congresso têm levantado uma incógnita quanto ao futuro do programa Auxílio Brasil, lançado para substituir o Bolsa Família. A matéria também é uma aposta do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e da Câmara dos Deputados para engordar as emendas parlamentares em 2022.
A PEC é – por ora – a única estratégia do Executivo para abrir espaço fiscal no teto de gastos e permitir que o governo aumente o benefício mensal pago pelo Bolsa Família, como tem prometido. A proposta adia o pagamento de boa parte dos precatórios que o governo deveria pagar no ano que vem, e ao mesmo tempo altera a regra de correção do teto de gastos, principal âncora fiscal do país. Essas medidas, combinadas, permitem um gasto extra de mais de R$ 90 bilhões em 2022, segundo o Ministério da Economia.
Oficialmente, o governo nem sequer comenta outras alternativas, e de fato não há muitas: as principais seriam a aprovação de um decreto de calamidade pública, que permitiria pagar o benefício com créditos extraordinários e fora do teto de gastos, ou o remanejamento de outros gastos do Orçamento, que já está bastante apertado.
Bolsonaro gostaria de elevar o benefício do programa social de R$ 192 (média atual) para "no mínimo" R$ 400. A ideia é que ele chegue a 17 milhões de famílias, público maior que o atual (14,7 milhões). O custo total de um programa assim seria de aproximadamente R$ 82 bilhões, mas no momento o Orçamento dele para 2022 é de pouco menos de R$ 35 bilhões.
O dinheiro "gerado" pela PEC será bem maior que o necessário para ampliar o Auxílio Brasil. A equipe do ministro Paulo Guedes estima que a proposta abrirá um espaço extra de R$ 91,6 bilhões sob o teto de gastos no Orçamento de 2022, dos quais cerca de R$ 50 bilhões iriam para o programa assistencial. O restante seria usado para reajustar benefícios previdenciários e outros gastos que foram subestimados no Orçamento preparado pelo governo, e ainda sobrariam recursos à disposição do Congresso, provavelmente para emendas parlamentares.
A expectativa é de que a Câmara dos Deputados aprecie a proposta em segundo turno nesta terça-feira (9). No primeiro, ela passou por placar apertado, com apenas quatro votos a mais do que os 308 necessários para sua aprovação. Antes, os deputados precisam concluir a votação do primeiro turno – na manhã desta terça eles devem analisar os destaques que buscam fazer alterações no texto-base.
Um desdobramento que pode dificultar a aprovação da PEC é a eventual anulação, por parte do Supremo Tribunal Federal (STF), das chamadas emendas de relator-geral (conhecidas pelo código RP-9). A ministra do STF Rosa Weber suspendeu sua execução em caráter limitar, após solicitação dos partidos Psol, Cidadania e PSB.
O plenário da Corte já está deliberando sobre o tema em julgamento no plenário virtual. Os primeiros votos foram depositados nas primeiras horas desta terça. Três ministros seguiram a relatora e votaram pela suspensão do pagamento de emendas, e o placar parcial no fechamento desta reportagem era de quatro votos a zero. São necessários seis votos para formar maioria, e o prazo para que todos os ministros votem vai até quarta-feira (10).
A anulação das emendas poderia dificultar a aprovação da PEC dos precatórios, uma vez que retiraria poder de barganha do governo. Segundo congressistas, no primeiro turno o Executivo teria liberado até R$ 15 milhões em emendas por parlamentar que votasse a favor da proposta. Bolsonaro negou tal barganha.
Um outro fator que tornava incerta a votação do segundo turno era o questionamento, no STF, da votação do texto-base da PEC no primeiro turno. Essa incerteza, porém, foi afastada na manhã desta terça, após decisão de Rosa Weber. Ela negou pedidos para suspender a tramitação da PEC feitos por deputados oposicionistas.
O ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (sem partido-RJ) havia levado à Corte um mandado de segurança solicitando a suspensão da tramitação, sob argumento de que o atual presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), teria feito manobras inconstitucionais para votar a matéria. Segundo Maia, Lira contrariou o regimento interno da Câmara ao permitir que deputados que estavam em missão temporária de caráter diplomático pudessem votar remotamente.
O ex-presidente da Câmara também denunciou a emenda "aglutinativa global" submetida ao plenário, que não passou pela comissão especial designada para analisar a PEC e sofreu alterações quando já não poderia, segundo o regimento interno da Casa.
"O ato coator fere a Constituição e a legislação de regência (RICD) que regulamenta o processo legislativo tal como limitado pelo constituinte originário. O rito das votações precisa ser preservado, as instituições precisam ser preservadas, há de se combater o enfraquecimento dos sistemas de controle e da segurança jurídica em prol do Estado democrático de Direito", diz a petição impetrada por Maia.
Outra ação semelhante foi ajuizada por um grupo de parlamentares da oposição. Eles solicitaram concessão de liminar para suspender o trâmite da proposta e anular a votação, com os mesmos argumentos de Maia. Esse pedido também foi negado pela ministra Rosa Weber.
Mesmo que seja aprovada na Câmara, no Senado a matéria pode enfrentar resistência – dificuldade reconhecida pelo próprio presidente da República: "Vamos ter problemas no Senado. Agora, por favor, um Brasil que só no corrente ano projeta um excesso de arrecadação em R$ 300 bilhões não pode destinar mais R$ 30 [bilhões] para atender esses mais necessitados?", disse Bolsonaro.
Lira diz não acreditar em "mudanças bruscas" na votação em segundo turno. "Tínhamos quase 60 deputados ausentes. Isso não acontecerá na terça, o quórum será maior… Vamos para a votação na terça-feira com mais votos a favor da PEC", afirmou o parlamentar.
Desde 1988, houve apenas um episódio em que uma PEC foi derrubada após ser aprovada em primeiro turno. Trata-se da proposta 395/2014, que permitia a universidades públicas oferecer cursos pagos de pós-graduação lato sensu. No primeiro turno, foram 318 a 129 votos. No segundo, o placar foi de 304 a 139. Para ser aprovada, uma PEC precisa de, no mínimo, 308 votos. A rejeição ocorreu em meio ao processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT).
Plano B: financiar o Auxílio com endividamento público e fora do teto
Entre as poucas saídas para financiar o Auxílio Brasil em 2022 caso o Congresso rejeite a PEC dos precatórios, uma possibilidade aventada nos bastidores é o governo decretar estado de calamidade, sob argumento de que persistem os efeitos negativos da pandemia de Covid-19.
A iniciativa permitiria ao Executivo editar uma medida provisória (MP) e abrir créditos extraordinários para financiar temporariamente o Auxílio Brasil. O governo pegaria dinheiro emprestado para pagar o benefício, e esses valores não seriam submetidos ao teto de gastos.
O aval do Congresso também seria necessário nesse caso, mas por maioria simples – metade mais um dos parlamentares de cada Casa, e não os três quintos exigidos por uma PEC.
A equipe econômica do governo é refratária à ideia. Nas várias ocasiões em que foi pressionada a renovar o auxílio emergencial, a equipe do ministro Paulo Guedes afirmou que não havia mais embasamento para decretar calamidade, uma vez que a redução do isolamento social já permitia o retorno ao trabalho da maior parte dos trabalhadores.
Porém, como já mostrou o episódio da manobra para burlar o teto de gastos, o time de Guedes tem sido voto vencido nas discussões do programa social.
A solução via decretação de calamidade e créditos extraordinários resolveria, ao menos por um tempo, o financiamento do Auxílio Brasil. Mas não não solucionaria a conta dos precatórios, que será de R$ 89,1 bilhões em 2022.
Neste caso, o governo poderia recorrer a um dispositivo já previsto na Constituição. Hoje, a Carta Magna permite o parcelamento em até seis vezes de precatórios de valor muito elevado, chamados de "superprecatórios", que individualmente superem 15% do montante total de dívidas dessa natureza programadas para o ano. Na perspectiva do governo, no entanto, essa regra se tornou inócua e precisa passar por um processo de "modernização".
Se alternativas não avançarem, governo terá de remanejar gastos no Orçamento
Caso as alternativas não avancem, o governo volta à "estaca zero" e terá de trabalhar com recursos previstos no Orçamento de 2022, considerado o mais desafiador em 25 anos. O cobertor é curto, e a equipe econômica tem "quebrado a cabeça" para conciliar os interesses do governo federal em ano eleitoral e o equilíbrio das contas públicas.
No momento, o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2022 prevê somente R$ 34,7 bilhões para o Bolsa Família, praticamente o mesmo valor de 2021. Com o fim do programa, os recursos podem ir para o Auxílio Brasil.
No entanto, em função do reajuste de 17,84% das linhas de pobreza e extrema pobreza decretado pelo próprio governo na semana passada, haverá um aumento automático do benefício médio pago pelo programa, que passará para R$ 217,18 mensais. Esse é o valor médio que teoricamente será pago a partir de 17 de novembro, quando começam os pagamentos do Auxílio Brasil.
Para dar conta desse aumento sem reduzir o número de famílias beneficiadas – em outubro, 14,7 milhões foram contempladas pelo Bolsa Família ou pelo auxílio emergencial –, o orçamento do Auxílio Brasil em 2022 precisará aumentar de qualquer forma. E para isso será preciso realocar recursos.
Um corte nas despesas discricionárias – não obrigatórias, de livre manejo – também poderia ajudar a financiar o Auxílio Brasil dentro das regras do jogo.
"A saída dentro do Orçamento, que implica em corte de despesas, na manutenção do pagamento integral dos precatórios e no redirecionamento do espaço de emendas, ninguém quer", diz Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), ligada ao Senado. "Como não vai ser adotado [o corte das despesas], a saída da PEC tem que ser analisada com os riscos embutidos", diz Salto.
As despesas discricionárias previstas no PLOA 2022 estarão próximas do piso histórico. A previsão é de R$ 98,6 bilhões, 3,7% abaixo do programado na Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2021 (R$ 102,4 bilhões). A principal razão para a queda nas verbas é o aumento do comprometimento do Orçamento com despesas obrigatórias, que segundo o governo aumentam de 92,7% dos gastos totais em 2021 para 94% em 2022.
Mais custosa do ponto de vista político, a revisão das emendas parlamentares poderia incrementar o orçamento do Auxílio Brasil sem a necessidade de mudar a Constituição, aponta a IFI.
Na perspectiva do órgão, é possível aumentar o orçamento do Auxílio Brasil de R$ 34,7 bilhões para R$ 46 bilhões sem desrespeitar o teto de gastos ou postergar o pagamento dos R$ 89 bilhões em precatórios. Até o momento, nem o Executivo nem o Legislativo tem mostrado disposição para abrir mão das emendas.
Auxílio Brasil deve começar pagando menos de R$ 400 por família
O Auxílio Brasil começa a ser pago no próximo dia 17 para as famílias que recebiam o Bolsa Família.
Se a PEC dos precatórios não for aprovada até lá por Câmara e Senado, o valor médio pago às famílias deverá ser de R$ 217,18, já considerando o reajuste de 17,84% em relação ao Bolsa Família.
Se a PEC for aprovada só após o início dos pagamentos, o que é muito provável, o governo estuda pagar um complemento retroativo às famílias beneficiadas para completar os R$ 400 pretendidos por Bolsonaro.
A fonte de custeio dos pagamentos feitos pelo Auxílio Brasil em 2021 (nos meses de novembro e dezembro), mais altos que os realizados até então pelo Bolsa Família, é o aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). A definição da fonte de custeio para um aumento permanente no gasto público é uma exigência da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Para 2022, a fonte de custeio seria a tributação dos dividendos, prevista na reforma do Imposto de Renda, mas a proposta está parada no Senado. É por isso que o governo tem falado no caráter temporário do benefício de R$ 400, que valeria até o fim de 2022: por não ser "permanente", ele dispensa a definição de uma fonte de custeio.
A necessidade de aprovar a PEC dos precatórios para viabilizar o Auxílio Brasil não em relação com a fonte de custeio exigida pela LRF, e sim com a regra do teto de gastos.
O benefício mais alto exigido por Bolsonaro implica um aumento de despesas que hoje não cabe no teto. Por isso, o governo trabalha simultaneamente para deixar de pagar boa parte dos precatórios e elevar o teto por meio da mudança no seu índice de correção.
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