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O fim do mandato de Donald Trump (e do alinhamento automático da administração Jair Bolsonaro à agenda norte-americana) traz novas perspectivas para as relações entre Estados Unidos e Brasil. Dentre os temas importantes para o país e que podem passar por mudanças com a chegada do democrata Joe Biden à Casa Branca está a guerra do 5G.
Durante os dois anos em que os governos Trump e Bolsonaro coincidiram, e especialmente em 2020, a pressão dos EUA para banir a gigante chinesa Huawei da infraestrutura da quinta geração de redes móveis e banda larga atingiu mais fortemente o Brasil , após ser aplicada sobre mercados europeus. No fim do ano, o Itamaraty anunciou a adesão brasileira à chamada Clean Network (ou Rede Limpa, em tradução livre), iniciativa lançada contra o avanço da tecnologia asiática.
Na avaliação de Rodrigo Fernando Gallo, professor de Política e Relações Internacionais do Instituto Mauá de Tecnologia, a mudança de comando nos Estados Unidos pode diminuir a temperatura das tensões sino-americanas, trazendo vantagens para a economia brasileira. Apesar dessa perspectiva, Gallo acredita na chance de pressões norte-americanas em outras áreas e na necessidade de mudanças diplomáticas, uma vez que avanços na relação não dependem apenas do governo norte-americano, mas também de Bolsonaro e do Itamaraty.
“A construção de uma ponte entre Brasília e Washington depende de Bolsonaro interromper os discursos pró-Trump e começar a negociar uma aproximação com o novo presidente dos Estados Unidos. Isso precisa ser feito com uma certa urgência, e talvez Hamilton Mourão possa contribuir com esse processo”, avalia o especialista.
Gallo também destaca que é importante atentar para como Biden vai lidar com a pandemia do novo coronavírus. “O combate ao problema é essencial para a recuperação econômica dos Estados Unidos e, indiretamente, de todos os países que dependem, pelo menos parcialmente, da economia norte-americana. A princípio, podemos dizer que já na transição Biden demonstrou uma preocupação muito diferente de Trump”, compara.
Confira a entrevista completa.
Joe Biden assumiu a presidência dos Estados Unidos e fica a expectativa de como devem ser as relações com o Brasil, após o alinhamento automático de Bolsonaro a Trump nos anos recentes. Na sua avaliação, o que se pode esperar desse início de gestão na relação entre os dois países?
A diplomacia brasileira vai precisar construir uma ponte com a gestão Biden, porque os Estados Unidos são, atualmente, o segundo maior parceiro do Brasil no comércio exterior. Então, nossa economia, em parte, depende dos Estados Unidos. O problema é que o alinhamento automático do governo Bolsonaro não foi necessariamente com os Estados Unidos, mas, sim, com Donald Trump.
Afirmo isso por conta das falas tanto de Bolsonaro quanto de Ernesto Araújo [ministro das Relações Exteriores] durante a eleição nos Estados Unidos e depois da declaração de Biden como vencedor. Não é comum, em termos de política externa, que um presidente e um chanceler demonstrem preferência por um candidato em uma eleição estrangeira, porque se ele perde a "torcida" pode comprometer as relações diplomáticas com o vencedor.
Esse é o atual cenário. Creio que para minimizar esse problema a gestão Bolsonaro pode ter dois caminhos: um seria substituir Araújo no Ministério das Relações Exteriores, uma vez que ele está fortemente associado ao grupo que defendeu Donald Trump. Caso isso aconteça, o mais provável seria Bolsonaro encontrar uma saída honrosa para o chanceler, como fez com [o ex-ministro da Educação] Abraham Weintraub. A outra opção, menos provável, seria escalar o vice-presidente, general [Hamilton] Mourão, como o interlocutor com Washington.
Essa seria uma possível solução para o problema externo, mas poderia criar um desconforto interno, já que Mourão pode ser considerado um ator político que disputa protagonismo com Bolsonaro – tanto que os dois já se indispuseram em algumas oportunidades. Então, o caminho para construir uma boa relação com Biden passa por decisões complexas.
Uma questão que ganhou muito relevo nessa relação foi a pressão dos EUA para que o Brasil rejeitasse a participação da gigante Huawei no 5G brasileiro – a exemplo do que vem fazendo com outros países. O que muda com a troca de comando na Casa Branca? Já há indícios de como Biden deve se portar nesse front da guerra comercial com a China?
É muito provável que Biden pelo menos atenue a crise com a China, pois são dois países muito interdependentes e, por isso, precisam um do outro para a sobrevivência econômica. Isso independe de eventuais laços ideológicos.
Esse seria um aspecto positivo para o Brasil, pois a pressão de Trump contra o Estado brasileiro nos colocava em uma situação delicada, já que os chineses são nossos principais parceiros econômicos. Se Biden reduzir o atrito dos Estados Unidos com a China, automaticamente haveria uma redução das tensões entre nós e os chineses também, o que seria bem positivo para a economia brasileira.
Nesse contexto, também seria provável que a tecnologia chinesa para o 5G voltasse a ser cogitada pelo Estado, inclusive porque o vice-presidente, Hamilton Mourão, já se mostrou favorável à inclusão da Huawei no leilão aqui no Brasil.
Quais suas impressões sobre o futuro da iniciativa Clean Network, à qual o Brasil aderiu?
Há um paradoxo para ser pensado sobre essa questão. Os países evidentemente precisam investir em segurança cibernética em múltiplos aspectos, inclusive com proteção de dados. O problema é que esse movimento pressupõe a exclusão da tecnologia chinesa, que muitos acusam de ser insegura. O problema, creio, é que atualmente é pouco provável investir em novas tecnologias de telecomunicações sem considerar a importância das empresas chinesas. Então, existe uma grande possibilidade de que o movimento perca forças no sistema internacional, ou que haja discussões de cooperação internacional para fazer com que as empresas da China adotem medidas mais transparentes quanto à segurança de dados.
Com Biden, faz sentido esperar algum alívio nas pressões ou a guerra comercial vai além do posicionamento de democratas e republicanos?
Há questões envolvendo a relação entre China e Estados Unidos que independem do partido que ocupa a presidência: são duas grandes potências que, em muitas ocasiões, chegaram a impasses econômicos que poderiam afetar suas economias. No entanto, Trump parece ter "comprado" a narrativa da guerra comercial como uma das marcas de seu governo, inclusive como forma de sinalizar ao seu eleitorado que vinha se posicionando contrariamente ao chamado globalismo.
Essa parcela de eleitores é muito significativa e tem uma posição muito nacionalista, o que eventualmente poderia pesar na tentativa de reeleição de Trump. Mas me parece que nem mesmo o Partido Republicano, enquanto instituição, tem interesses de manter esse atrito com os chineses, que não é positivo para a economia norte-americana.
Os anos Donald Trump foram marcados por uma oposição mais acirrada à China, que começou com as medidas comerciais, mas ganhou inclusive contornos mais ideológicos com retórica agressiva e alusões de Trump ao "vírus chinês", por exemplo. Na gestão Biden, como fica essa disputa? A temperatura tende a cair ou não?
Biden deu sinalizações, no caso da pandemia, bastante opostas às de Trump, inclusive não adotando essa classificação de que o coronavírus seria um "vírus chinês". Isso sugere que teremos uma gestão mais pragmática e menos ligada a aspectos ideológicos, como o governo Trump.
É importante ressaltar que a política externa tende a ser um campo pragmático, pois os Estados tem interesses que precisam ser atendidos independentemente de eventuais laços ideológicos. Não faz parte da tradição diplomática norte-americana essa preocupação exacerbada com ideologia, como vimos nos últimos quatro anos. A tendência, então, é que haja uma retomada das ações pragmáticas, o que inclui uma reaproximação dos Estados Unidos com a China.
Também é interessante lembrarmos que as relações sino-americanas foram estabelecidas durante a Guerra Fria, quando Pequim, já comandada pelo Partido Comunista, se desalinhou da União Soviética e declarou neutralidade. Esse movimento aproximou a China dos Estados Unidos, e isso se mostrou essencialmente importante para a economia dos dois países. Logo, a ideologia nunca foi uma preocupação decisiva nessa relação bilateral.
De volta ao Brasil, há também sinalizações de pressão maior quanto ao agronegócio e à preservação ambiental. O que esperar nessa seara?
Em um dos debates na última eleição, Biden afirmou que poderia pressionar o Brasil a adotar práticas ambientalmente corretas, principalmente no que diz respeito à Amazônia. É sinal de que a nova gestão norte-americana não concordar com o modo como o Brasil vem protegendo o meio ambiente. Nesse aspecto, vemos uma possibilidade de pressão crescente, principalmente porque outras grandes potências, como Alemanha e França, além da própria União Europeia, já vêm cobrando o Brasil em relação à preservação ambiental. Possivelmente, então, veremos um aumento dessa cobrança, o que pode forçar o Estado brasileiro a realinhar as políticas domésticas sobre meio ambiente, sob o risco de, caso contrário, perder negócios importantes com esses países.
Na minha avaliação, essa mudança na política ambiental passa por um ponto crítico: o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Acredito que há pouco espaço para ele na atual configuração das pressões ambientais. É possível, então, que ele precise ser substituído em breve.