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As companhias aéreas low-cost já estão no Brasil. A argentina Flybondi, as chilenas JetSMART e Sky e a norueguesa Norwegian aterrissaram no país nos últimos meses oferecendo tarifas mais atraentes aos passageiros em rotas antes dominadas por empresas tradicionais. Por enquanto elas realizam somente voos internacionais, mas o desejo, especialmente do governo federal, é de que essas e outras companhias estrangeiras passem a operar no mercado doméstico o mais rapidamente possível.
O plano de atrair novas empresas se fortaleceu após o presidente Jair Bolsonaro ter assinado em junho de 2019 a Medida Provisória nº 863 que permitiu o aumento na participação de capital estrangeiro nas companhias aéreas de 20% para 100%. Além disso, o Congresso Nacional manteve em setembro o veto presidencial do item da mesma MP que proibia a cobrança pelo despacho de bagagens, algo que já tinha sido liberado pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) em 2017 – na ocasião, o órgão também permitiu a cobrança da escolha do assento.
A primeira a demonstrar interesse, logo após a liberação do capital externo, foi o grupo Globalia e sua low-cost Air Europa, que chegou a constituir empresa no Brasil e requisitar à Anac a autorização para explorar o serviço de transporte de passageiros. Apesar de aprovado, o negócio esfriou após o grupo Globalia ter sido adquirido pelo IAG, que controla British Airways e Iberia. Depois disso, não houve nenhum pedido à Anac de qualquer outra companhia estrangeira para operar domesticamente no país.
O governo federal, por meio da Secretaria Nacional de Aviação Civil (SAC) do Ministério da Infraestrutura, tem se reunido nos últimos meses com possíveis interessados em se instalarem por aqui, notadamente as que funcionam no modelo de baixo custo, no qual o viajante paga por qualquer item extra, como despacho de bagagem, marcação de assento, check-in presencial, alimentação a bordo, entre outros penduricalhos. Essa, por exemplo, é a receita de sucesso da Southwest Airlines nos Estados Unidos e da Easyjet e Ryanair na Europa.
Há um otimismo no governo de que companhias low-cost pousarão em breve no Brasil. “O mercado brasileiro é bastante interessante e robusto. As empresas dizem que estamos dando os passos corretos e isso é visto com bons olhos no mercado internacional. Tenho boas perspectivas de que vamos ter anúncios importantes ainda este ano. Não sei se companhias já voando em 2020, mas se instalando no Brasil, com certeza teremos”, garante o secretário nacional de Aviação Civil, Ronei Glanzmann.
Ainda, porém, há resistência por parte das possíveis entrantes. Os custos de operação de uma companhia aérea no Brasil são, geralmente, mais altos do que em mercados consolidados e mesmo na comparação com países da América Latina, onde empresas low-cost já abocanham fatias significativas do transporte aéreo doméstico — no México a participação delas supera os 70% e no Chile atinge os 40%.
“[A liberação de capital estrangeiro] foi um passo importante. Até havia investimento estrangeiro, mas minoritário e com a administração na mão de brasileiros. Mas talvez isso não seja o suficiente para atrair as companhias aéreas estrangeiras para operarem voos domésticos no Brasil”, opina o sócio da área de Infraestrutura do Machado Meyer Advogados, Fabio Falkenburger. “Os obstáculos para os entrantes são os mesmos obstáculos que as companhias aéreas que operam no Brasil já enfrentam”, segue.
O governo reconhece que ainda existem questões a serem resolvidas para tornar de fato o Brasil um mercado atrativo. São três pontos principais elencados: infraestrutura, preço do combustível e judicialização do setor. O primeiro, na visão da SAC, está bem encaminhado após a concessão dos principais aeroportos para a iniciativa privada — a próxima rodada, prevista para este ano, está dividida em três blocos e abrange 22 terminais. “A infraestrutura já foi um problema do Brasil, mas houve vários esforços para melhorar não só os aeroportos como os serviços de navegação. Temos aeroportos bons a preços competitivos”, afirma Glanzmann. Por outro lado, os dois itens restantes da lista exigem mais atenção e tempo para serem contornados.
Combustível: o principal vilão
A Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear) estima que o querosene de aviação (QAV) represente até 40% dos gastos das companhias aéreas no país, superando mercados mais maduros, onde a média fica em 22%, casos de Estados Unidos e Europa. Parte desse custo é consequência do ICMS cobrado pelos estados nos voos domésticos — o Brasil é o único país do mundo onde há a tributação regional sobre o combustível e, por questões de reciprocidade, somente há isenção para voos internacionais, de companhias nacionais ou estrangeiras.
Cada unidade da federação tem sua própria alíquota de ICMS e para tentar atrair novos voos, os governos estaduais têm firmado acordos com as empresas para a redução do tributo, desde que novos voos e destinos sejam garantidos. Em São Paulo, o maior mercado do país, o imposto caiu de 25% para 12%. No Paraná, de 18% pode chegar a 7% dependendo da contrapartida das companhias.
Esse movimento dos estados tem aumentado o número de voos, inclusive regionais, e barateado o custo com combustível. No entanto, o valor ainda está longe de ser o considerado ideal pelas companhias aéreas e afasta a entrada de operadores estrangeiros. “A questão tributária impacta significativamente no modelo de baixo custo. No fim, o custo governo é muito alto para as empresas”, aponta Falkenburger.
Com a redução do ICMS, os estados acabaram jogando pressão sobre o governo federal, para que também faça a parte dele. É que cerca de 7 centavos por litro de QAV vai para o PIS/Cofins, um tributo federal. “O governo tem condições de retirar esse valor. Se estamos pedindo para os estados um esforço fiscal com a redução do ICMS, nada mais justo do que a União fazer o mesmo”, diz o secretário da SAC, Ronei Glanzmann. Dentro do Ministério da Infraestrutura, essa jogada é certa, mas ainda falta convencer o Ministério da Economia, comandado por Paulo Guedes. Retirar o PIS/Cofins da conta do combustível significaria renunciar a uma arrecadação de aproximadamente R$ 250 milhões por ano.
A princípio, a questão tributária é o caminho mais simples. No entanto, outros dois aspectos jogam o preço do QAV para cima e que são mais complicados de serem equalizados. O primeiro é a produção, que hoje está nas mãos da Petrobras, que detém o monopólio no país. Com uma política própria de preços e sem concorrência, não há espaço para a redução. Indiretamente o setor pode acabar se beneficiando da venda de algumas refinarias da estatal – o processo de alienação já está em andamento –, atraindo novos competidores na produção do querosene de aviação.
O outro ponto, e mais complexo, é a cadeia de distribuição, hoje controlada por BR Distribuidora, Raízen e Air BP, que operam em pool nos aeroportos. A solução passaria pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), que criou um grupo de trabalho para propor a alteração da regulação atual para facilitar a entrada de novos distribuidores e estimular a concorrência. “Esse mercado de distribuição é muito fechado porque a operação é em pool. Não é crime, mas está na mão de poucos. Temos que incentivar a entrada de novas empresas para tornar esse mercado mais dinâmico”, explica Glanzmann.
O preço da judicialização
Alguns aplicativos têm tomado parte importante na relação entre passageiros e companhias aéreas. São eles os responsáveis, em grande medida, pelo aumento de ações de clientes contra as empresas, especialmente nos casos de atrasos e cancelamentos de voos e extravio de bagagens. Funcionários desses aplicativos vão até o passageiro e o incentivam usar a Justiça para resolver os problemas com a companhia, sem antes esgotar as saídas administrativas, junto às próprias aéreas ou aos órgãos de defesa do consumidor. Eles chegam a oferecer dinheiro adiantado. O reflexo disso é a possível oneração do setor em R$ 500 milhões em 2020, segundo a Abear.
“Existe no Brasil uma cultura da judicialização e até por isso o número de ações contra as companhias aéreas no Brasil comparado com o resto do mundo é muito maior. As convenções que regulam a relação do consumidor com a empresa aérea deveriam prevalecer”, aponta Falkenburger. Segundo o secretário nacional de Aviação Civil, esse comportamento do passageiro e que os aplicativos têm usado vem da época do caos aéreo, entre 2006 e 2007, quando houve uma judicialização maior no setor, inclusive com a instalação de juizados especiais dentro dos aeroportos. “Antes de mesmo de ir à companhia aérea fazer a reclamação e negociar, incentivou-se ir à Justiça e mover ações”, diz Glanzmann.
Para tentar sanar essa questão que assusta não só os atuais operadores no Brasil como os interessados em voar no país, o governo federal tem trabalhado em parceria com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para que haja um trabalho mais ativo em relação aos aplicativos, enquadrando-os em exercício ilegal da profissão de advogado e proibindo a atuação deles. A outra solução envolve o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), onde a SAC sugere uma orientação aos juízes de todo o Brasil a incentivarem os passageiros a exaurirem as instâncias administrativas antes de acionar a Justiça.
Meta do governo é levar classe C para o transporte aéreo
De acordo com dados do setor aéreo, o brasileiro ainda voa muito pouco. A média é de 0,4 voo per capita por ano, enquanto nos países mais maduros essa média atinge 2 voos per capita ao ano. A melhora desse índice passa inevitavelmente pelas companhias aéreas de baixo custo, que tornariam a concorrência mais acirrada e se colocariam como uma opção mais barata para os atuais passageiros, mas também seriam a porta de entrada para pessoas que nunca usaram o transporte aéreo. É justamente esse público, sensível ao preço, que elas buscam e que o governo pretende explorar.
“Há um espaço muito grande para crescer no Brasil, mas precisamos reduzir a tarifa. Achamos que a tarifa média hoje não é muito alta, mas pode ser mais baixa. O ideal é uma tarifa para ficar abaixo da barreira dos R$ 300, aí conseguiremos trazer a classe C para o transporte aéreo. E então teremos um novo ciclo de popularização e uma revolução na aviação”, projeta o secretário nacional de Aviação Civil do Ministério da Infraestrutura, Ronei Glanzmann.