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As movimentações recentes do Planalto e do Congresso para flexibilizar a Lei das Estatais comprovam o grande desafio que as companhias de economia mista enfrentam no Brasil: o risco de serem capturadas por interesses políticos. O assunto ganhou destaque com a atuação da Petrobras frente à escalada global dos custos do petróleo, e o apelo de parte da população para o governo intervir no preço dos combustíveis tem sido um forte incentivo para mudanças na lei.
Entretanto, a legislação deveria caminhar para o lado oposto, reforçando o arcabouço legal para as empresas de economia mista atuarem com mais liberdade, aprimorando a governança e probidade. É o que defende o artigo "Interferência política em estatais de capital aberto: o caso da Petrobras", do advogado Marcelo Trindade, professor da PUC-Rio e ex-presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
O texto compõe o livro “Para não esquecer: políticas públicas que empobrecem o Brasil”, organizado pelo economista e pesquisador do Insper Marcos Mendes, e foi escrito bem antes das movimentações mais recentes para intervir nos preços praticados pela Petrobras.
Trindade sustenta que a ingerência política na companhia é uma prática comum de todos os governos brasileiros. Durante a gestão de Dilma Rousseff (PT), por exemplo, a Petrobras agiu sob o comando do governo e segurou os preços dos derivados, o que acabou contribuindo para um grande endividamento, além de prejudicar o setor de etanol. “Mais recentemente, quando se buscou a equalização com o preço internacional para evitar a interferência política, a reação dos caminhoneiros à alta do preço do diesel, em 2018, causou uma greve que paralisou o transporte rodoviário do país”, escreve.
As críticas contra a ingerência política não implicam concordância com a escalada de preços dos combustíveis ao consumidor. Em outro artigo da coletânea, são abordados os caminhos que o Brasil poderia trilhar para o barateamento do preço dos combustíveis de forma mais sustentada, conforme mostrou reportagem da Gazeta do Povo.
Além disso, independentemente do apelo popular por intervenção nos preços dos combustíveis, retrocessos na Lei das Estatais poderiam impactar o Brasil em várias frentes. Segundo o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), uma flexibilização da Lei das Estatais comprometeria o projeto do Brasil de ingressar na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O ministro da Economia, Paulo Guedes, defende desde o início do governo a importância de entrar na entidade, e celebra publicamente cada avanço nas negociações.
A organização, formada principalmente por países desenvolvidos, funciona como um “clube de boas práticas” que faz uma série de recomendações para melhorar as políticas públicas de seus membros, visando o progresso econômico e social.
A Lei das Estatais é de 2016 e foi construída no em meio às revelações da Operação Lava Jato, que desarticulou um esquema que causou prejuízos estimados em R$ 18 bilhões à Petrobras, conforme estimativa do Tribunal de Contas da União (TCU).
Segundo Trindade, a norma inovou ao tratar de temas relacionados à transparência, aos controles internos, à gestão de riscos, à qualificação dos dirigentes e à organização estrutural de governança. Houve uma preocupação em minimizar o risco de conflito de interesses, mas que se mostrou insuficiente para lidar com algumas situações pontuais envolvendo as companhias de economia mista, aponta o autor.
As estatais também devem seguir alguns preceitos da Lei das S.A. Trindade sustenta que ambas só tratam do conflito de interesses de forma indireta. “Ademais, elas se dirigem ao acionista controlador da sociedade de economia mista, que não é o agente político, mas sim a pessoa jurídica de direito público em nome de quem ele toma decisões”, lamenta. Em outras palavras, a falta de sanções aos políticos que intervêm nas estatais é um convite para a ingerência indevida.
Para Trindade, o ideal seria que a população percebesse a captura política das empresas estatais com um fato negativo e se posicionasse contra. “O tema, contudo, tem pouquíssimo apelo eleitoral, além de desafiar outro conflito de interesse: da população que se percebe diretamente beneficiada por medidas demagógicas de intervenção pelos agentes políticos na gestão das estatais – como o congelamento de preço de combustíveis”, ressalta. O caminho então é o de aperfeiçoar a Lei das Estatais.
Nas estatais com sócios privados, gestor tem de perseguir interesse da empresa, defende autor
A própria OCDE já listou algumas recomendações sobre a governança de empresas estatais no Brasil, em um relatório divulgado em dezembro de 2020. Uma das medidas seria “a criação de uma política de gestão das participações estatais nas empresas, incluindo maior clareza na justificação para que o Estado seja acionista de uma companhia, e o fortalecimento dos conselhos de administração, inclusive quanto às regras para sua eleição”, descreve Trindade.
O ex-presidente da CVM defende outras alterações que podem encontrar maior resistência para aplicação, como a revogação da ressalva ao interesse público para justificativa de criação da sociedade de economia mista de capital aberto. A premissa consta da Lei das Estatais e também está prevista na Constituição Federal. Para Trindade, os administradores e o acionista controlador devem ser obrigados a perseguir o interesse da empresa, exclusivamente.
“Isso é totalmente compatível com a Constituição Federal. O interesse público referido pela Constituição, que permite a criação da sociedade de economia mista, deve necessariamente ser compatível com a finalidade lucrativa. Não sendo esse o caso, o caminho deve ser o da criação de uma empresa pública”, argumenta, em referência aos empreendimentos estatais em sentido mais estrito, que não contam com nenhuma participação privada.
Segundo ele, se o poder público não tiver o capital necessário para empreender em uma atividade econômica, o caminho natural é recorrer ao capital privado, mas para isso deve ser obrigado a remunerar esse investimento. E, para tanto, os administradores e o controlador devem atuar somente nos interesses da empresa e dos acionistas.
Outro ponto sugerido é maior rigor para nomeações e demissões de conselheiros de administração e de executivos de alto escalão. “Uma alternativa seria condicioná-las ao exame por um órgão de Estado, e não de governo. Tal órgão poderia, por exemplo, ser formado por uma combinação de servidores de carreira e profissionais gabaritados da iniciativa privada, todos com mandatos alternados e que não coincidissem com mandatos dos agentes políticos, sem possibilidade de recondução”, exemplifica.
Para coibir a interferência indevida de políticos na administração das estatais, Trindade sugere alterações na Lei de Improbidade Administrativa, para tipificar a conduta de ingerência ilícita na autonomia dos Conselhos de Administração de sociedades de economia mista de capital aberto. Entre as sanções sugeridas estão a indenização pessoal e perda de direitos políticos.