No dia 5 de dezembro, legisladores britânicos deram um presente a todos que criticam o Facebook por se vender como um bom samaritano enquanto, na verdade, age como qualquer outro abutre em busca de lucro. O presente em questão são 250 páginas de e-mails internos em que os executivos da empresa aparecem discutindo maneiras de destruir a concorrência, esconder o conjunto de informações de usuários sob sua posse e – acima de tudo – garantir que seus produtos sigam crescendo.
Os e-mails, que compreendem os anos de 2012 a 2015 foram, a princípio, mantidos lacrados como evidência de um processo contra o Facebook proposto pela Six4Three, uma desenvolvedora de aplicativos. Eles faziam parte de um conjunto de documentos que foi tornado público após ter sido confiscado por um comitê do Parlamento britânico como parte de uma investigação mais extensa acerca das práticas da empresa.
Não deveria ser tão surpreendente confirmar que o Facebook age em seu próprio interesse, mas os e-mails internos, uma rara oportunidade de ver o que empresa faz entre quatro paredes, mostram que aquela imagem promovida durante anos – uma organização idealista mais dedicada a “aproximar o mundo” do que a aumentar a própria lucratividade – era, na verdade, uma cortina de fumaça cultivada com todo o cuidado.
Os e-mails revelam que, durante os anos de crescimento, os executivos do Facebook eram impiedosos e incansáveis em sua ambição de coletar mais dados dos usuários, extrair concessões dos desenvolvedores e extinguir possíveis concorrentes. “Eles mostram até que ponto a empresa, consciente e intencionalmente, priorizava o crescimento a qualquer custo”, afirmou Ashkan Soltani, pesquisadora de privacidade e antiga diretora técnica de tecnologia da Federal Trade Commission.
Em um post, o Facebook disse que os documentos incluídos no processo representam uma pequena amostra que “apenas conta um lado da história, omitindo o contexto significativo”.
A seguir, quatro revelações dos e-mails que detalham como o Facebook era agressivo na busca pelo crescimento:
1. Roubo de dados de usuários Android
A empresa engendrava maneiras de conseguir dados dos usuários do sistema operacional Android sem alertá-los. Em fevereiro de 2015, o Facebook enfrentou um dilema de privacidade. A equipe de expansão da empresa – que tem grande poder lá dentro – queria lançar uma atualização do aplicativo para Android que possibilitaria guardar continuamente todo o histórico de mensagens de texto e ligações dos usuários.
Essas informações seriam passadas aos servidores da empresa e ajudariam o Facebook a dar recomendações melhores, como sugerir novos amigos aos usuários do Android tendo como base as pessoas para as quais eles ligaram ou enviaram mensagens recentemente. (Esse atributo, chamado “Pessoas que você talvez conheça”, tem sido motivo de grande controvérsia.)
Havia, porém, um problema: a política de privacidade do Android exigia que o Facebook perguntasse aos usuários se concordavam em ter esses dados coletados. Os executivos da empresa ficaram com medo de que a consulta pudesse gerar uma reação pública negativa.
“Do ponto de vista das relações públicas, isso é muito arriscado, mas parece que o time de expansão vai seguir em frente com o plano. Como já aconteceu no passado, fotos da tela mostrando os pedidos de permissão pelo Android viram memes assustadores que se propagam pela rede, chamam a atenção da imprensa, e jornalistas engenhosos investigam o que exatamente a nova atualização está solicitando para depois escrever matérias do tipo ‘Facebook está usando nova atualização do Android para bisbilhotar sua vida privada de maneira ainda mais aterrorizadora’”, assim escreveu Michael LeBeau, descrevendo o possível cenário do pesadelo que se seguiria.
No fim das contas, o Facebook conseguiu encontrar uma maneira de contornar o problema. Yul Kwon, diretor do programa de privacidade da empresa, escreveu em um e-mail que o time de expansão descobriu que se o aplicativo atualizado do Facebook pedisse para ter acesso apenas ao registro de ligação dos usuários, e não a outros tipos de informações, não seria necessário um pop-up solicitando a autorização. “Tendo como base os testes iniciais, parece que isso nos permitiria atualizar usuários sem submetê-los à caixa de diálogo de autorização do Android”, informou Kwon em uma das mensagens.
Em uma postagem, o Facebook afirmou apenas coletar o histórico de mensagens e ligações de usuários do Android que concordam com a solicitação e que, desde 2018, armazena essas informações temporariamente, já que “elas não são tão úteis após aproximadamente um ano”.
2. Zuckerberg aprovou pessoalmente bloqueio ao Twitter
Em janeiro de 2013, um dos braços direitos de Zuckerberg lhe enviou um e-mail com novidades sobre o Twitter, um dos maiores concorrentes do Facebook. A empresa tinha introduzido um serviço de compartilhamento de vídeos chamado Vine, que permitia a usuários criar e postar clips de vídeo de seis segundos.
Ao abrir uma conta no Vine, a pessoa poderia optar por seguir seus amigos do Facebook – alternativa possibilitada pela interface de programação de aplicativos do Facebook (API na sigla em inglês). Essa ferramenta era amplamente usada e tornou-se valiosa para que novos aplicativos pudessem crescer mais rapidamente, mas, no caso do Vine, o Facebook jogou pesado.
“A menos que alguém apresente alguma objeção, vamos bloquear o acesso deles aos amigos via API hoje”, escreveu o braço direito Justin Osofsky, hoje vice-presidente do Facebook, ao que Zuckerberg, presidente da companhia, respondeu: “Manda ver.” Em 5 de dezembro, Rus Yusupov, um dos cofundadores do Vine, comentou no Twitter: “Lembro-me daquele dia como se fosse ontem.”
A decisão do Facebook de acabar com o acesso do Vine ao API mostrou-se fatal. Meses depois, o Instagram lançou sua própria ferramenta de pequenos vídeos, que foi vista por muitos como mais uma tentativa do Facebook de restringir o crescimento do Vine, que, finalmente, foi encerrado em 2016 após apresentar crescimento estagnado e enfrentar concorrência pesada que levou suas estrelas e usuários para outras plataformas.
No começo deste mês, o Facebook mudou sua política de desenvolvedores, acabando com a proibição sobre aplicativos que ofereciam concorrência às ferramentas da própria empresa.
3. Aplicativo de privacidade vigiando concorrentes
Em 2013, o Facebook comprou a Onavo, uma empresa israelense de análise, anunciando que as ferramentas da nova aquisição possibilitariam oferecer produtos móveis melhores e mais eficientes. Um deles, o Onavo Protect, era especialmente útil para farejar possíveis competidores. O aplicativo, que foi propagandeado aos consumidores como uma maneira de manter a privacidade do navegador de internet, também coletava dados sobre quais apps aquelas pessoas mais usavam – incluindo aqueles que não pertenciam ao Facebook – e alimentavam a empresa com a informação.
De acordo com os e-mails divulgados, os executivos do Facebook recebiam relatórios sobre o desempenho dos apps rivais elaborados com as informações obtidas pela Onavo. Os relatórios, às vezes, revelavam concorrentes promissores. Um deles, que estava no conjunto de e-mails, com data de abril de 2013, dizia que o WhatsApp, o aplicativo de mensagens para telefones celulares, estava ganhando força. Segundo dados protegidos obtidos pela Onavo, o WhatsApp estava sendo usado para enviar 8,2 bilhões de mensagens por dia, enquanto o app do Facebook, apenas 3,5 bilhões. Dez meses depois, a empresa anunciou a compra do WhatsApp em uma transação avaliada em 14 bilhões de dólares (quase 85 bilhões de reais).
Em agosto, o Facebook tirou o Onavo Protect da App Store, após a Apple ter declarado que violava as regras de privacidade da companhia.
4. Facebook como centro da vida virtual
Em novembro de 2012, Zuckerberg enviou uma longa mensagem a vários executivos do alto escalão sob o título “Plataforma de Modelo de Pensamento”. Ela delineava quão intensamente ele queria que o Facebook se tornasse o centro da vida social virtual de todo o mundo.
O e-mail abordava um debate que estava alterando os ânimos dentro da organização na época: se desenvolvedores de aplicativos de fora da empresa deveriam pagar para conectar seus apps à plataforma de desenvolvedores do Facebook. Para Zuckerberg, liberar o acesso sem custo era uma maneira de atrair mais desenvolvedores para construir aplicativos em sua plataforma. E, como o Facebook exige que os desenvolvedores enviem à empresa os dados coletados, esses apps são uma forma de aumentar o valor da sua rede. Ele escreveu que os aplicativos sociais “podem ser bons para o mundo, mas não são bons para a gente, a não ser que as pessoas também compartilhem no Facebook”.
Mais tarde, o Facebook colocou em prática uma versão da sua “regra de reciprocidade”, que exigia dos desenvolvedores tornar possível aos usuários dos apps postar suas atividades também no Facebook, mas sem exigir que eles enviassem dados de uso à empresa.
Em um post no Facebook publicado após a divulgação pública dos e-mails, Zuckerberg escreveu que a organização enrijeceu as regras para desenvolvedores em 2014 para proteger usuários de “apps desonestos” que podem usar seus dados de forma inadequada.