Em abril deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) apertou o cerco contra o governo federal para que ele cumpra, obrigatoriamente a partir do ano fiscal de 2022, a lei 10.835/2004, aprovada há 17 anos mas nunca regulamentada. A decisão do STF determina uma política de transferência incondicional de renda básica para o estrato da população brasileira em situação de vulnerabilidade (extrema pobreza e pobreza). A lei é de autoria do ex-senador e atual vereador de São Paulo Eduardo Suplicy (PT).
O governo ainda não informou o que fará para pôr em prática o programa determinado pelo Supremo, o que só deve ocorrer após o fim do pagamento do auxílio emergencial, para quando é prometida a versão ampliada do Bolsa Família. O ministro da Economia, Paulo Guedes, fala em reforçar o programa de transferência de renda desde 2020, muito antes da decisão do STF. Renovou a promessa dias atrás. "Possivelmente vamos estender auxílio emergencial por mais dois, três meses. Logo depois do auxílio-emergencial, entra o novo Bolsa Família, reforçado", disse Guedes.
A decisão do STF, por maioria, foi provocada por um movimento da Defensoria Pública da União (DPU) que, frente à omissão estatal quanto ao cumprimento da lei de 2004, impetrou um Mandado de Injunção (7.300) no Supremo. A pandemia também acabou acalorando os debates sobre a proposta, diante dos impactos sociais e econômicos na vida dos brasileiros.
Pela lei aprovada em 2004, deveria ter sido instituída, a partir de 2005, uma "renda básica de cidadania" para todos os brasileiros residentes no país e estrangeiros residentes há pelo menos cinco anos, não importando sua condição socioeconômica. O benefício monetário deveria seria anual, de igual valor para todos, e suficiente para atender às "despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde, considerando para isso o grau de desenvolvimento do país e as possibilidades orçamentárias". A lei não fixou valores, mas definiu que a abrangência do programa seria alcançada por etapas, começando pelas "camadas mais necessitadas da população".
A lei da renda básica foi sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 8 de janeiro de 2004, um dia antes da sanção da lei 10.836/2004, que criou o Bolsa Família. O programa, resultado da consolidação e ampliação de outras iniciativas, rapidamente se transformou na principal vitrine dos governos petistas na área social – e nunca mais se falou na "renda básica de cidadania".
Na decisão de abril, apesar de ter deixado a cargo da União fixar o valor da renda a ser transferida, o STF definiu o perfil prioritário dos beneficiários. Isso é, pessoas em situação de extrema pobreza e pobreza, com rendas familiares per capita de até R$ 89 e R$ 178, respectivamente, deixando de lado a ideia de benefício "universal". Ainda assim, a verba deve ser repassada sem contrapartida.
Também segundo o que estabeleceu a Corte, o Poder Executivo federal deverá adotar todas as medidas legais cabíveis para a implementação do benefício, inclusive mediante alteração do Plano Plurianual (PPA) e da previsão da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e da Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2022.
"A renda básica é instrumento eficaz para a mitigação das desigualdades socioeconômicas, auxiliando na diminuição da vulnerabilidade daqueles em estado de pobreza. Permite o exercício real da liberdade individual, uma vez ampliadas as possibilidades de concretização de diferentes concepções de vida", disse o ministro Marco Aurélio, relator, em seu voto.
Os ministros da Corte tomaram a decisão após a DPU impetrar o MI em nome do morador em situação de rua Alexandre da Silva Portuguez, epilético e de 51 anos, para que o Executivo garantisse a ele uma renda básica, conforme prevê a legislação.
Segundo levantamento do IBGE, o país alcançou, no ano de 2020, a marca de aproximadamente 9 milhões de pessoas vivendo em situação de extrema pobreza – com renda per capita inferior a R$ 89, segundo critério de elegibilidade do Programa Bolsa Família.
O custo da renda básica para os cofres públicos
Não há estimativa oficial de quanto o programa pode custar aos cofres públicos. Isso vai depender, sobretudo, do valor estabelecido para a transferência e do número de beneficiários. Mas encontrar uma fonte de recursos é um desafio, frente a um Orçamento apertado e com poucas margens de manobra.
A experiência com o auxílio emergencial é prova disso. Sem outra fonte de recursos, o governo teve que se endividar para pagar a versão de 2020, que custou R$ 293 bilhões. A edição 2021 custará ao menos R$ 44 bilhões, também oriundos da emissão de títulos da dívida pública.
O Bolsa Família, menos abrangente que a renda básica determinada pelo STF, custa aproximadamente R$ 35 bilhões – foi esse o valor programado para 2021. Em maio, o governo divulgou que 14,7 milhões de famílias eram contempladas pelo benefício. O valor médio é próximo de R$ 200 por mês. Recentemente, o presidente Jair Bolsonaro falou em elevar o valor médio para R$ 250 por família.
Fontes especulam que a verba poderia vir de algum arranjo no teto de gastos, por meio de emissão de dívidas, ou sendo necessário aumento de carga tributária. Ou, até mesmo, como resultado do possível processo de privatização da Eletrobras, em tramitação no Congresso. Sem entrar em detalhes, o relatório da medida provisória de capitalização da estatal prevê que 25% dos resultados financeiros da Itaipu obtidos a partir de 2023 sejam direcionados a um programa de transferência de renda do governo federal.
Para o autor da proposta aprovada no Congresso em 2004, Suplicy, há, sim, espaço fiscal para o programa. Mas, segundo ele, é preciso realizar antes uma reforma tributária para cobrar mais dos que têm maior riqueza.
Como colocar em prática?
Ainda não se sabe como a determinação do STF será cumprida por parte do Executivo. Nos bastidores, interlocutores especulam que a equipe econômica pode criar um novo programa social ou unificar benefícios sociais já existentes, como o Bolsa Família e o abono-salarial, aprimorando ferramentas. A consolidação poderia aparecer na forma do Renda Cidadã ou Renda Brasil, nomes que em 2020 foram cogitados pelo governo para batizar um sucessor "reforçado" do Bolsa Família.
Em entrevista à Gazeta do Povo no ano passado, Suplicy contou que tentou, ao longo dos últimos anos, sensibilizar chefes do Executivo e parlamentares para criarem grupos de trabalho a fim de viabilizarem a proposta – ideia que nunca prosperou.
A renda básica universal difere do Bolsa Família, em especial, quanto à ausência de condicionalidade para a transferência da renda (ao menos inicialmente). Outras características distinguem o Bolsa Família da renda básica: ao contrário da perspectiva universalista da renda básica, o Bolsa Família é um programa focalizado. O público-alvo do programa são as famílias pobres e extremamente pobres. E, enquanto ele engloba "famílias", a lei da renda básica fala de “indivíduos”.
Estudo técnico realizado em 2010 pelo Centro de Estudos da Consultoria do Senado Federal explica que, “as origens de ambas as iniciativas, ainda que tenham pontos de contato no passado, especialmente na ideia da garantia de uma renda mínima para os mais pobres, levaram a trajetórias históricas muito diferentes, que não apontam para uma passagem automática e legitimada pela opinião pública de um modelo a outro”.
O auxílio emergencial, pago pelo governo durante a pandemia, também tem caráter diferente da renda básica universal, pois é um programa de transferência de renda condicional, já que não foi direcionado a toda a população.
Experiências exitosas
Paralelamente, o Congresso Nacional também trabalha, com levantamentos técnicos, na tentativa de estruturar uma proposta de renda básica universal para o país, com soluções de financiamento.
O município de Maricá, no Rio de Janeiro, é considerado um "laboratório" para a ideia de renda básica no país, repassando para R$ 130 mensais para 25% da população. A meta é chegar a todos os habitantes até 2022, segundo o governo local. O benefício, contudo, é pago em "mumbucas", uma moeda social que circula apenas dentro do município desde 2014 e pode ser usada com um cartão nos quase 3 mil estabelecimentos credenciados, como mercados, farmácias e lojas de sapatos. Também há experimentos em curso na Finlândia, Quênia, Canadá, Holanda e outros países.
Alguns dos entusiastas da proposta afirmam que ela é menos burocrática, por colocar um dinheiro direto na ponta que volta para o mercado, aquecendo a economia. Entre outros pontos citados como positivos estão:
- maior cobertura social, evitando erros metodológicos que possam implicar a exclusão indevida de determinadas pessoas;
- inexistência de estigmas sociais para beneficiários;
- menor intrusividade do Estado para verificação da situação econômica dos favorecidos; e
- inexistência de desincentivos ao trabalho.
Por outro lado, críticos afirmam que medidas dessa natureza poderiam criar espécie de "armadilha da pobreza" e, sim, um desincentivo ao trabalho. O dilema do que é básico para a sobrevivência e da universalidade também divide especialistas.
Iniciativas no Congresso
No Congresso, tramitam inúmeras propostas de novas transferências de renda. Um dos projetos institui a Lei de Responsabilidade Social, determinando como objetivo do Estado brasileiro reduzir a taxa geral de pobreza para 10% da população em três anos. A taxa de extrema pobreza também deve cair para 2% da população em no máximo três anos, prevê a proposta do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE).
O texto também cria o Benefício de Renda Mínima (BRM), que funde os quatro benefícios do Bolsa Família em um, completando a renda da família até que o valor atinja o patamar de R$ 125 per capita. A Casa também conta com uma Frente Parlamentar pela Renda Básica.
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