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Além da unificação de tributos sobre consumo, a proposta de reforma tributária apoiada pelo governo prevê a criação de um imposto seletivo, que teria caráter extrafiscal e seria utilizado para desestimular o consumo de produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente. Sem uma definição clara de quais bens e serviços se enquadrariam no critério, opositores veem o risco da utilização arbitrária do mecanismo e do aumento de carga tributária.
“Li o texto preliminar da reforma tributária e afirmo com certeza absoluta: está horrível. Um dos absurdos é o ‘imposto seletivo’, onde o estado vai sobretaxar aqueles produtos que julgar ser prejudicial à saúde e ao meio ambiente”, disse o deputado federal André Fernandes (PL-CE). “Precisamos debater esse assunto.”
O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), um dos críticos do dispositivo, defende que a proposta seja derrubada. “Os ‘doutores’ petistas resolveram, para o bem da nossa saúde e do planeta, nos cobrar mais impostos”, escreveu em suas redes sociais. “Carnes (picanha), combustíveis fósseis, refrigerantes, bebidas alcoólicas, entre outros, seriam sobretaxados.”
“Pelo exposto, o aumento da carga tributária, ora previsto, nos levará à uma queda de produtividade no campo, ao fechamento de fábricas, menos comércio, mais desemprego e inflação”, prosseguiu o ex-presidente. “Aos deputados/senadores do centro direita, que são maioria, sem alterações profundas na PEC, certamente, pelo voto, arquivarão essa péssima proposta.”
O substitutivo à proposta de emenda à Constituição (PEC) 45/2019 apresentado pelo deputado federal Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) no dia 22 não detalha os produtos sobre os quais o imposto seletivo incidiria, apenas indica que a definição deve ser feita por lei complementar.
Segundo o texto, passaria a competir à União instituir impostos sobre a “produção, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos da lei”. Ficaria facultado ao Executivo ainda alterar as alíquotas do novo tributo.
Ainda pela redação do substitutivo, o imposto seletivo não incidiria sobre exportações e integraria a base de cálculo do Imposto sobre Valor Agregado (IVA), resultante da unificação de IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS na reforma.
O advogado tributarista Dylliardi Alessi, da Peccinin Advocacia, explica que é praxe que o texto constitucional traga normas gerais, e que detalhes mais específicos sejam regulamentados por lei.
“Estabelecer todos os bens e serviços desde já em um rol taxativo na Constituição não me parece ser a melhor saída”, diz. “É claro que, por outro lado, existe a preocupação por parte de alguns setores de haver taxação em produtos que não necessariamente deveria existir.”
A discussão sobre a criação de um novo imposto sem a informação sobre quais mercados seriam afetados é o ponto central de críticos da proposta.
"E se quiserem sobretaxar defensivos agrícolas?", questiona economista
“O imposto seletivo abre espaço para taxarmos tudo que julgarmos nocivo à saúde ou ao meio ambiente. Imagine se alguém julga que os defensivos agrícolas devem ser supertaxados para proteger o meio ambiente?”, questiona o economista Erik Figueiredo, que presidiu o Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada (Ipea) em 2022 e hoje é diretor-executivo do Instituto Mauro Borges de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (IMB), ligado ao governo de Goiás.
Para ele, esse receio seria afastado caso fosse apresentado junto à PEC um rascunho da lei complementar que regulamentará o tema. O documento ainda ajudaria a avaliar melhor a viabilidade da criação do IVA ao dar acesso, por exemplo, às alíquotas do novo imposto.
“É natural que uma PEC não verse sobre alíquotas, mas todas as discussões até agora se baseiam na crença que a alíquota [do IVA] será próxima a 25%. Essa alíquota, no entanto, não considera as enormes exceções contidas no substitutivo. Se atingir 30%, teremos o maior IVA do mundo, e o agravamento das perdas para grandes setores da economia”, diz.
“Da mesma forma, quais seriam as atividades prejudiciais à saúde de ao meio ambiente? Isso é muito perigoso. Sem uma prévia da lei complementar, não haverá uma discussão transparente”, afirma. “Esses dois temas que citei não são marginais. São centrais para a proposta.”
Deputados discutiram imposto seletivo sobre alimentos ultraprocessados e armas
Em relatório preliminar produzido pelo grupo de trabalho (GT) sobre o Sistema Tributário Nacional da Câmara dos Deputados, o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) defendeu que o texto da PEC seja aprovado com as “externalidades negativas” que se pretende combater com o imposto seletivo, sem restringir o rol de produtos ou serviços.
“Pela complexidade do tema, a diretriz é que se mantenha a redação ampla e se transfiram as especificidades para a discussão infraconstitucional”, escreveu. “Dessa forma, os diversos setores terão tempo de esclarecer suas particularidades, e a legislação poderá ser alterada de acordo com a evolução do consumo da sociedade”, justificou.
Durante debates sobre o tributo, houve sugestões de sua aplicação sobre cigarros, bebidas alcoólicas, alimentos ultraprocessados, armas e produtos que emitam carbono, o que incluiria combustíveis fósseis.
Membros do GT concordaram que o Brasil deve acompanhar as discussões internacionais a respeito da tributação ambiental e de carbono. A deputada federal Tabata Amaral (PSB-SP) recomendou que o país esteja atento às diretrizes internacionais mais recentes sobre ajustes de fronteira na comunidade europeia.
Na terça-feira (27), o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, defendeu a utilização do imposto seletivo para estimular o uso de fontes de energia sustentáveis. A declaração foi dada na abertura de um evento dos Fundos de Investimento Climático (CIF), em Brasília.
“A reforma tributária cria um imposto seletivo, que fará diferença na questão ambiental e de saúde pública, pois será imposto moderno”, afirmou. “Imposto seletivo e crédito de carbono são uma combinação virtuosa de instrumentos que favorecem essa transição”, completou.
Tributarista vê risco de que imposto sirva mais para arrecadar que para desestimular consumo
Luciana Gualda, advogada tributarista e sócia da Montezuma & Conde Advogados Associados, lembra que hoje o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) cumpre a função de regulação de mercados por meio da sobretaxação voltada ao desestímulo ao consumo de produtos como cigarros e bebidas alcoólicas.
Ela se preocupa, no entanto, com a possibilidade de utilização do imposto seletivo para fins arrecadatórios. “Qual regra será utilizada para se definir o que é prejudicial à saúde?”, questiona. “Tem vários países que sobretaxam produtos que contém açúcar, mas não adianta taxar achocolatados, por exemplo, e esquecer de outros que tem a mesma substância”, diz.
Além disso, a tributarista ressalta que geralmente produtos industrializados são mais baratos que orgânicos, por exemplo, e, portanto, consumidos por consumidores de renda mais baixa. “Acho que a grande problemática é como saber que essa tributação vai atingir sua finalidade e não será apenas um instrumento a mais para incrementar a receita para dar conta dos gastos públicos.”
Para ela, há caminhos alternativos para se desestimular o consumo de determinados produtos para além da via tributária. Ela menciona como exemplo a queda no uso de nicotina após restrições à publicidade de cigarro e de campanhas do Ministério da Saúde sobre os malefícios do fumo.
“Pessoalmente acho que há essa questão de formação, e não só tentar isso por meio de tributação. Essa solução acaba tendo mais um cunho arrecadatório, abrindo uma brecha para se arrecadar mais, para fazer frente a todas as despesas públicas sobre as quais não se coloca um freio.”