Ouça este conteúdo
A "corrida do ouro" no mercado de pagamentos instantâneos mal começou e já fez a primeira vítima. Na semana passada, o Banco Central e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) suspenderam o WhatsApp Pay, serviço de pagamentos digitais do popular aplicativo de mensagens, que foi lançado em 15 de junho.
O app, que pertence ao Facebook, tentou despontar na frente na maratona da qual participam bancos tradicionais e digitais, fintechs e operadoras de cartões. O mercado promete ser trilionário e, como era de se esperar, envolve interesses enormes.
Os pagamentos via cartão de débito, crédito e pré-pago somaram R$ 1,84 trilhão em 2019 e devem chegar a R$ 1,9 trilhão nesse ano, de acordo com estimativa da Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços (Abecs). O valor representa cerca de um quarto do PIB brasileiro, de R$ 7,3 trilhões.
Pagamentos eletrônicos – via cartões de débito, crédito e transferências bancárias como DOC e TED – existem há décadas, mas a novidade é que a tecnologia agora permite transferências em tempo real, 24 horas por dia, sete dias por semana. Basta vincular um cartão de débito ou crédito para que o dinheiro viaje de uma conta para outra em questões de segundos.
“A tecnologia já permite a comunicação p2p, ou seja, de pessoa a pessoa de maneira instantânea. Não tem nenhuma razão do ponto de vista tecnológico para que a gente não consiga fazer uma comunicação instantânea bolso para bolso”, explicou o executivo do Banco Central João Manoel Pinho de Mello, ao anunciar em fevereiro a criação da plataforma PIX.
O lançamento da plataforma estava inicialmente previsto para novembro, mas, reagindo à investida do Facebook, o BC teria sondado agentes do mercado para antecipá-lo para setembro, segundo relato do "Valor".
Para operar nesse sistema, as instituições financeiras devem ser homologadas pelo BC, que avalia a capacidade técnico-operacional de cada uma. Na terça (23), a instituição informou que 980 bancos, cooperativas de crédito e fintechs já entraram com o pedido.
“De hoje até o fim do ano vamos ver muitas mudanças no mercado de pagamentos", prevê Aphonso Mehl Rocha, consultor nas áreas de compliance e privacidade financeira, que avalia como positiva a entrada de um novo player no setor: "Quanto mais opções, melhor".
A pandemia do novo coronavírus está acelerando a transição para o digital. Pesquisa realizada em abril pela Bain & Company revela que 48% dos brasileiros estão dispostos a mudar a forma como realizam os pagamentos, deixando de lado o dinheiro em espécie, nada higiênico em tempos de pandemia de doença contagiosa.
A mudança de hábito é impulsionada também pelo crescimento do comércio on-line. Com as lojas físicas em grande parte fechadas e boa parte da população em isolamento domiciliar, o e-commerce cresceu 30% em abril em relação ao mês anterior, de acordo com a Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (ABComm).
Cresceram também que as transações bancárias feitas por pessoas físicas pelos canais digitais, como internet e mobile banking. Elas foram responsáveis por 74% das operações analisadas em abril, um mês após o início da quarentena. É um aumento de 10% em relação a janeiro, de acordo com a Federação Brasileira de Bancos (Febraban).
A suspensão do WhatsApp Pay
Ao permitir transferências entre pessoas físicas e pagamentos online, o WhatsApp Pay seria o primeiro grande player a entrar no setor. A tecnologia, contudo não possibilita transferências em tempo real, como vai ocorrer com o PIX, pois elas dependem dos horários de funcionamento das instituições envolvidas - Banco do Brasil, Nubank, Sicredi e Cielo – e das regras atuais do setor financeiro.
Para motivar a suspensão da ferramenta, o Banco Central e o Cade listaram “riscos à concorrência” que podem prejudicar "um adequado ambiente competitivo". E, não menos importante, um possível dano à privacidade dos usuários.
Na quinta-feira (25), o chefe do WhatsApp, Will Cathcart, declarou que a empresa trabalha em conjunto com os parceiros e as autoridades brasileiras para restaurar logo o serviço de pagamentos pelo aplicativo. "Ontem [quarta] nos reunimos com as autoridades do Banco Central e estamos animados em permitir que os brasileiros enviem pagamentos seguros e sem dinheiro físico no WhatsApp o mais breve possível", destacou.
O consultor Aphonso Mehl Rocha observa que o WhatsApp tem um histórico de problemas de clonagem. "E a gente não sabe ainda tecnicamente o que essa clonagem acarretaria numa ferramenta de pagamentos. Potencialmente muito ruim. E o Facebook tem um histórico de vazamento e comercialização de dados pessoais de seus clientes. São empresas que não têm um histórico dos mais positivos”, afirma Rocha.
A escolha do WhatsApp de implementar no Brasil o sistema de pagamentos via chat não se deu por acaso. A empresa conta com uma base estimada entre 120 milhões e 130 milhões de usuários mensais, uma das maiores do mundo, sem contar os cerca de 10 milhões de pequenos negócios, muitos dos quais usam o WhatsApp Business, conta comercial para se relacionar com os clientes.
Mas o Brasil não foi a primeira escolha da multinacional americana, que vem há meses tentando implementar o mesmo serviço na Índia, onde conta com 400 milhões de usuários. Lá, a empresa enfrenta problemas com as agências regulatórias do país e questionamentos sobre o sistema de proteção de dados e críticas em relação a seu papel na disseminação de fake news, de acordo com o jornal "The India Times".
Pagamentos instantâneos e os benefícios para o usuário
Independente da suspensão da empresa de Mark Zuckerberg, a ampliação da oferta vai trazer benefícios para os usuários, segundo especialistas.
“O medo que algumas empresas têm é que o WhatsApp tem tantos usuários que acham que talvez possa monopolizar. Mas eu acredito que tem mercado para muitas soluções diferentes”, defende Rodrigo Miranda, co-fundador da Zoop, fintech que opera no mercado.
Os olhos das empresas do setor agora estão voltados para o PIX, que vai permitir transações entre pessoas, entre pessoas e estabelecimentos comerciais, entre estabelecimentos, e até para entes governamentais, no caso de pagamentos de impostos e taxas. As transações serão validadas por meio da verificação de dados como CPF, CNPJ, número de celular, e-mail ou QR Code.
O sistema é considerado uma revolução e deve se tornar um concorrente, com mais funcionalidades, do Sistema Brasileiro de Pagamentos (SBP), formado por todas as instituições ligadas ao Banco Central e que realiza o processamento das operações. Tarifas bancárias, como TED e DOC, que no Brasil estão entre as mais caras do mundo, devem diminuir fortemente ou até desaparecer, avaliam especialistas.
Mesmo operando na mesma plataforma, as empresas não deixarão de concorrer entre si. O próprio WhatsApp afirmou que participará do PIX "tão logo o sistema esteja disponível".
Além disso, o serviço do BC pode levar em pouco tempo ao desaparecimento do dinheiro em espécie e até dos cartões físicos. Um exemplo de como irá funcionar vem da China, onde a plataforma WeChat – mix de rede social, aplicativo de mensagens e ferramenta de pagamentos eletrônicos – é usada por um bilhão de pessoas e não por acaso é chamada de “super app”.
“[O PIX] torna o sistema financeiro mais seguro. Você tem menos circulação de dinheiro físico, mais rapidez, melhores processos. É um elemento de eficácia, é bem positivo no geral”, avalia Luis Sales, economista da Guide Investimentos.
Riscos para a segurança digital
A cibersegurança será essencial para o bom funcionamento das novas ferramentas, ainda mais num país onde golpes e fraudes digitais são comuns. Em maio, mais de 10 milhões de brasileiros foram impactados por golpes na internet e 407 mil sofreram clonagem de WhatsApp, de acordo com levantamento da empresa de segurança digital PSafe.
“Precisaremos ter modelos de detecção e prevenção de fraudes mais sofisticados e projetados para as necessidades do PIX. No PIX vou poder fazer transferências 24 horas por dia, então vou poder lavar dinheiro ou fazer fraudes 24 horas por dia”, alerta Rocha.
O Banco Central garante que as transações via PIX serão autenticadas e criptografadas – como já ocorre com TEDs e DOCs – e que os eventuais usuários lesados serão ressarcidos, assim como acontece hoje com as fraudes bancárias. A instituição assegura também que as informações pessoas serão protegidas pelo sigilo bancário e pela Lei Geral de Proteção de Dados, que entrará em vigor.
A legião dos desbancarizados
Num país onde 43 milhões de pessoas não têm conta em banco, a revolução digital corre o risco de deixar para trás uma boa parcela da população. Um exemplo foi observado nas últimas semanas, quando a Caixa Econômica Federal identificou que 40% dos brasileiros com direito a receber o auxílio emergencial do governo não têm conta bancária.
Além disso, pesa a difusão desigual do acesso à internet. Apenas 48% dos lares das classes D e E têm conexão à rede. A média nacional é de 67%, de acordo com o mapeamento do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) realizado em outubro de 2019.
Por esses entraves estruturais e sociais, Gastão Mattos, líder da empresa de pagamentos IDid, não acredita que o dinheiro físico irá desaparecer tão em breve, embora a pandemia tenha dado um forte empurrão para transformar o comportamento do brasileiro na hora de pagar.
“É preciso ampliar o incentivo aos projetos tecnológicos para aumentar ainda mais o número de atividades financeiras digitais, porque queremos um país em que todas as classes sociais tenham acesso a esses serviços”, afirma.
VEJA TAMBÉM: