Uma “guerra” envolvendo bancos e maquininhas de pagamento e que conta com a “participação especial” do Banco Central e do Congresso pode colocar o consumidor e comerciantes em uma situação complicada: o fim do parcelamento sem juros de compras no cartão de crédito.
O parcelado sem juros é um dos principais mecanismos de venda dos varejistas. Comerciantes, incluindo os on-line, chegam a dar prazos de até 12 meses para o pagamento das compras sem juros. Em evento no mês passado, em Curitiba, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, disse que 40% das vendas do comércio brasileiro são feitas com essa modalidade. Em países emergentes, esse percentual fica entre 10% e 15%. Nos Estados Unidos, 28%.
Por trás dessa guerra está o fim do rotativo do cartão de crédito. A modalidade, usada por clientes que deixam de pagar a fatura total, tem uma das maiores taxas de juros. Em julho, o custo médio era de 445,69% ao ano, uma das taxas mais altas desde o início de 2017, segundo o BC. Isso significa que, em 12 meses, uma dívida de R$ 1 mil no rotativo se transforma num débito de quase R$ 5,5 mil. O rotativo também tem uma das inadimplências mais elevadas: 49,51% da carteira.
BC, Ministério da Fazenda e instituições financeiras montaram um grupo de trabalho que está discutindo a modalidade. Entidades ligadas ao varejo e representantes do segmento de maquininhas de pagamento foram incluídas nas discussões em meados do mês passado.
Em audiência no Senado, no começo de agosto, Campos Neto disse que a solução para esses altos juros está se encaminhando para o seu fim. A comissão deverá apresentar uma solução para eliminar a modalidade do rotativo até novembro.
Ela seria substituída pelo crédito parcelado do cartão, cuja taxa média de juros era de 198,43% ao ano em julho – um custo que faz uma dívida quase triplicar de tamanho em 12 meses.
A questão é que, com o fim do rotativo e sua substituição pelo crédito parcelado do cartão, o tão usado pagamento sem juros corre o risco de ser extinto. A pressão para isso vem principalmente dos bancos, que dizem arcar com os riscos de inadimplência desses parcelamentos.
Por outro lado, o consumidor que paga suas contas em dia será prejudicado caso não possa mais parcelar as compras sem juros. E o varejo considera que a proibição da modalidade pode inviabilizar parte das vendas.
A batalha chegou ao meio publicitário. Bancos pediram a retirada de duas propagandas sobre o parcelado sem juros, uma da Associação Brasileira da Internet (Abranet) – entidade que representa as empresas ligadas às maquininhas de pagamento – e outra da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel). As duas foram suspensas pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar).
A Abrasel apelou, por meio de anúncio, para o ministro da Justiça. Segundo a entidade, Bradesco, Itaú e Santander acionaram o Conar para restringir a liberdade de expressão em uma causa de enorme interesse para a sociedade.
A Abranet formalizou, nesta terça (12), sua desfiliação ao Conar por julgar ter sido censurada. O conselho, a pedido da Febraban, suspendeu a veiculação de anúncios de campanha informativa da Abranet em defesa da manutenção do pagamento parcelado sem juros.
Veja a seguir como funcionam as vendas no cartão de crédito, quem são as partes envolvidas e os motivos da polêmica:
Como funciona uma compra com o cartão de crédito?
Pagar uma compra com cartão de crédito é uma operação que envolve vários agentes, além do consumidor e de um estabelecimento comercial ou de serviços. Participam também o banco emissor do cartão, uma bandeira de cartão de crédito e uma empresa de maquininhas, que processa os pagamentos.
Qual o papel de cada parte nas compras a crédito?
O banco é o responsável pela emissão do cartão, o fornecimento do crédito e assume o risco do negócio. A bandeira do cartão é a empresa que regula o processo de pagamento. As maquininhas (ou adquirentes) são as responsáveis por credenciar os estabelecimentos comerciais ou de serviços. E dos lojistas é cobrada uma taxa que é dividida entre os agentes do processo.
Quanto movimentam as vendas no cartão de crédito?
O meio de pagamento movimentou mais de R$ 1,1 trilhão no primeiro semestre, segundo a Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços (Abecs). É um crescimento de 10,1% em relação ao mesmo período de 2022.
O que está por trás da guerra entre bancos e maquininhas?
Por trás da guerra entre bancos e maquininhas estão os recebíveis. Eles são um título que mostra que o vendedor tem o direito a receber, em 28 dias, o valor referente à operação da instituição financeira que emitiu o cartão. O pagamento é feito mesmo que o cliente não quite a fatura do cartão de crédito.
Os recebíveis também funcionam como um “empréstimo” para os lojistas feitos pelas maquininhas e tornaram-se um grande negócio, sem risco de inadimplência – o risco fica com os bancos.
Quanto maior o número de parcelas, melhor o negócio para as adquirentes independentes. Na resistência contra o fim do parcelado sem juros, elas têm como aliados pequenos e médios lojistas, que são mais dependentes da antecipação dos recebíveis.
O que os bancos propõem?
A Federação Brasileira dos Bancos (Febraban) afirmou, por meio de nota, que ela e as instituições financeiras "perseguirão um caminho que dilua o risco de crédito entre os elos da cadeia e elimine os subsídios cruzados, numa transição sem rupturas do produto do cartão de crédito e de como ele se financia".
A federação diz que não há qualquer pretensão de acabar com as compras parceladas no cartão de crédito. “A entidade participa de grupos multidisciplinares que analisam as causas dos juros praticados e alternativas para um redesenho do rotativo, de um lado, e, de outro, o aprimoramento do mecanismo de parcelamento de compras. Portanto, nenhum dos dois modelos em discussão pressupõe uma ruptura do produto e de como ele se financia”, informou por meio de comunicado.
Qual a relação entre o fim do rotativo e o debate sobre o parcelamento sem juros?
Segundo relatos de bastidores, os bancos pressionam para limitar a prática do parcelamento sem juros, alegando que ela acaba influenciando nos elevados juros do rotativo do cartão de crédito.
Por trás desse argumento está a ideia de que o parcelamento sem juros viabiliza a venda para consumidores que não necessariamente conseguirão quitar as faturas – e acabarão, portanto, "contratando" o crédito rotativo. E o risco da inadimplência fica com os bancos.
Comerciantes e prestadores de serviços, principalmente de pequeno porte, avaliam que a manutenção das atuais regras é importante para sua sobrevivência.
O que o setor de maquininhas sugere?
As maquininhas ou adquirentes descartam a proposta dos bancos, pois consideram que já pagam a tarifa de intercâmbio ao emissor a cada transação. Essa tarifa teria o papel de remunerar os riscos.
A presidente da Associação Brasileira da Internet (Abranet, que representa a indústria de maquininhas), Carol Conway, afirmou em artigo na Folha de S.Paulo que os grandes bancos querem atribuir ao parcelado sem juros a responsabilidade pelos altos juros do rotativo.
“Do consumidor não se cobra juros e do lado do vendedor o juro anual é de apenas 19% (antecipações das parcelas sem juros). Além disso, não é proibido que o vendedor dê desconto para receber à vista”, destaca a dirigente.
Quem está por trás das maquininhas?
As maquininhas tem décadas de existência no Brasil, mas a sua regulamentação é de julho de 2010, quando o BC abriu o mercado para a concorrência. Até então eram apenas duas operadoras, uma para os cartões da bandeira Visa e outra para a Mastercard. Ambas eram sociedades entre diversos bancos.
A abertura derrubou a exclusividade. Outras empresas, sem ligação com bancos, entraram nesse mercado. É o caso da Stone, de 2012, e da PagSeguro, de 2013. Entretanto, ainda há empresas ligadas instituições financeiras. A Cielo (antiga Visanet) é controlada pelo Bradesco e BB; a Rede, pelo Itaú; a GetNet, pelo Santander. O Safra também atua no setor.
A desregulamentação levou a uma forte expansão no número de maquinhas. Segundo o BC, elas eram 3,1 milhões em 2011. No ano passado, 20,8 milhões.
Como estão as negociações no Banco Central?
Um grupo de trabalho está discutindo alternativas para os altos juros do crédito rotativo do cartão. Uma das propostas em análise, segundo declarações dadas pelo presidente do BC, Roberto Campos Neto, em audiência no Senado, é a extinção da modalidade. Uma decisão do grupo deve ser tomada até o início de novembro.
Campos Neto reconhece que a solução não é simples e depende de encontrar um equilíbrio entre os diferentes agentes, já que parte considerável das vendas é feita com cartão.
O que a Câmara dos Deputados propõe?
A Câmara entrou nessa disputa com a aprovação, na semana passada, do projeto de lei que estabelece as regras do Desenrola, o programa de renegociação de dívidas endossado pelo governo federal.
O texto prevê uma taxa de juros máxima de 100% ao ano do valor original da dívida para o crédito rotativo e para o parcelamento de faturas de cartões de crédito. A medida só será válida se não houver uma autorregulamentação do setor financeiro no prazo de 90 dias, a partir da publicação da lei.
Também está prevista a portabilidade da dívida do cartão de crédito e de outros débitos relacionados a ele gratuitamente para outra instituição.
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