Com a oficialização do acordo Boeing-Embraer na quinta-feira (24), uma série de detalhes que ainda estavam em negociação foram revelados. As 3 mil patentes da Embraer, por exemplo, agora terão a outorga da Boeing. Além disso, a montagem final da principal aposta da fabricante brasileira na área de defesa, o cargueiro multiuso KC-390, será feita nos Estados Unidos, e a joint venture dessa área, da qual a Embraer terá 51%, está sendo chamada de EB Defense.
A negociação durou pouco mais de um ano, tendo recebido o aval do governo brasileiro no dia último dia 10 de janeiro, já sob a gestão de Jair Bolsonaro. A transação, que cria duas novas empresas, foi aprovada pelo conselho de administração da Embraer no dia 11 e agora será submetida aos acionistas da Embraer em reunião marcada para o dia 26 de fevereiro. O próximo passo é passar por uma série de órgãos reguladores e ter tudo colocado em prática ainda em 2019.
Em comunicado aos acionistas, a Embraer admitiu aquilo que a Gazeta do Povo já tinha ventilado neste mês de janeiro: que aceitou vender o controle de sua linha de aviação regional, que engloba modelos antigos e a nova série E2, porque os europeus da Airbus compraram o controle do principal competidor da empresa brasileira -a C-Series da canadense Bombardier, em um negócio anunciado em outubro de 2017.
Isso e a entrada de novos concorrentes russos, chineses e japoneses no nicho dominado pela Embraer, de aeronaves de 90 a 150 assentos, alterou a realidade do mercado, afirma o texto, que detalha a intrincada operação de separação da área de aviação comercial doas linhas de defesa e jatos executivos da empresa brasileira. Com isso, restou à Embraer optar pela oferta da Boeing para manter a competitividade no mercado.
Acordo é ótimo negócio para Boeing, mas futuro da Embraer ainda é duvidoso
A aquisição é considerada crucial para os americanos manterem sua apertada liderança sobre a rival Airbus. Os franceses têm a seu favor a integração da família A220 (antiga CSeries da Bombardier). Justamente a principal concorrente no segmento regional dos Ejets E2, o filet mignon da aviação da Embraer.
Do ponto de vista americano, naturalmente não descrito no comunicado brasileiro, há também o interesse pela dinâmica da área de engenharia da Embraer. A Boeing está atrasada no cronograma de desenvolvimento de um novo avião médio, e ao corpo de técnicos a ser destacado da Embraer deverá trabalhar de cara nesse novo projeto.
Do negócio surgem duas empresas. Uma é conhecida hoje como NewCo, do acrônimo inglês para nova companhia, e terá 80% de controle americano. A Boeing pagará US$ 4,2 bilhões à Embraer para ter essa fatia da nova empresa, que terá os brasileiros como minoritários. Segundo o acordo, o patrimônio líquido da NewCo deve ser de US$ 2,1 bilhões, com passivos estimados em US$ 1,4 bilhão. Seu valor total é de US$ 5,26 bilhões.
Os acionistas da Embraer levarão, caso aprovem o negócio como é esperado pelos negociadores, US$ 1,6 bilhão em dividendos para casa. A NewCo terá cerca de 9 mil empregados, o mesmo número de funcionários da área civil da Embraer hoje – ao todo, a fabricante emprega 18 mil pessoas, 16 mil delas no Brasil.
A grande dúvida é se o caixa e a estrutura que permanece nas mãos da Embraer vai ser capaz de dar suporte a uma fabricante competitiva na área de aviação. Para se ter ideia, o número de aeronaves comerciais entregues pela companhia em 2018 foi muito similar ao do segmento de executivos. Mas a receita com o segmento comercial foi duas vezes maior. Além disso, o segmento comercial (que agora passa para as mãos da Boeing) é muito mais lucrativo do que os demais, estima o professor da Unicamp Marcos Barbieri.
Após pagar US$ 1,6 bilhão de dividendos aos acionistas, o caixa líquido da companhia deve ficar em US$ 1 bilhão, balanço que a companhia considerou “robusto”, em comunicado ao mercado. Mas algo que preocupa o mercado. O perfil de negócios mais fraco, limitado aos setores Executivo e de Defesa, e a redução no fluxo de exportações pesou para a nota da empresa ser rebaixada pela Fitch, nesta quarta-feira, antes mesmo da divulgação da revisão para baixo nos números de 2018.
Propriedade intelectual ficará nas mãos da Boeing
O acordo assinado também buscou solucionar a questão da propriedade intelectual -hoje, a Embraer tem cerca de 3 mil itens patenteados em discussão. Um comitê gestor será montado, caso o negócio seja aprovado, para cuidar do assunto. A Boeing pagará, segundo o acerto, pela outorga das patentes da empresa brasileira.
Além da nova empresa, que poderá ou não manter o nome E2 nos jatos comerciais que venderá, o acerto estabelece a EB Defense. Essa joint-venture terá 51% de controle da Embraer remanescente, que ficou com as linhas de defesa e aviação executiva, e 49% de participação da Boeing. Ela irá comercializar os novos contratos do KC-390, avião de transporte que é considerado a maior promessa do mercado militar da fabricante brasileira.
A EB Defense terá a linha final de montagem do KC-390 nos Estados Unidos, e sua sede será em Delaware. Isso gera protestos dos sindicalistas que preveem a desnacionalização do produto, mas o acordo determina que a atual linha de montagem de Gavião Peixoto (SP) seja mantida ativa. Na prática, ela fará a pré-montagem do avião, que será finalizado nos EUA.
Isso é necessário para poder vender o KC-390 no mercado americano, o maior do mundo, e para que ele se beneficie de incentivos fiscais do governo dos EUA no caso de exportação para outros países. O atual contrato para a fabricação de 28 aeronaves destinadas à FAB (Força Aérea Brasileira) e sua provável primeira venda externa, para Portugal, seguem nas mãos da “velha Embraer”.
O Brasil investiu R$ 5 bilhões no desenvolvimento do avião, valor que será ressarcido pela cobrança de 3,1% de royalties sobre cada novo contrato.
O mercado estimado no mundo é de 3 mil aeronaves de transporte com capacidade de 10 a 30 toneladas de carga. A idade média da frota é de 30 anos, e ela é dominada hoje pelo venerando C-130 Hercules, da Lockheed, rival da Boeing. O antigo quadrimotor a hélice é um projeto modernizado constantemente desde os anos 1950, e a Boeing viu no moderno bimotor a jato KC-390 o competidor ideal para esse nicho.
O acordo também divide algumas funções compartilhadas entre as empresas. A linha de Gavião Peixoto, por exemplo, poderá ser usada pela EB Defense por pelo menos 20 anos. A produção de itens civis pelas subsidiárias da Embraer no exterior, como a OGMA portuguesa, também está discriminada.
A multa rescisória em caso de anulação do acordo é de US$ 100 milhões para a Boeing e US$ 75 milhões para a Embraer.