Ouça este conteúdo
O motorista que abastece o carro em postos da Petrobras talvez já tenha se deparado com os novos anúncios de sua gasolina "premium", chamada Podium. Se antes o foco era no desempenho, agora a propaganda destaca que ela é a única "gasolina carbono neutro" do país.
O frentista explica que o combustível foi criado para carros de alta performance, embora possa abastecer qualquer veículo. Junto com a alta octanagem, que permite maior aproveitamento da potência do motor, a redução nas emissões de gases de efeito estufa passou a ser argumento para justificar a diferença de preço. Em São Paulo, por exemplo, a Podium custa uns R$ 2,60 a mais por litro que a gasolina comum.
A opção soa interessante nas palavras do funcionário, não fosse um detalhe: o projeto do qual a Petrobras comprou créditos de carbono para neutralizar as emissões relacionadas à gasolina Podium tem problemas na documentação da posse das terras e registros de desmatamento.
Trata-se de um projeto localizado no município de Feijó, no Acre, chamado Envira Amazônia. A área total da iniciativa é de pouco mais de 39 mil hectares, dos quais 570 hectares – algo como 800 campos de futebol – foram destinados especificamente à compensação das emissões da gasolina premium da Petrobras. Segundo a empresa, os créditos correspondem à neutralização de 175 mil toneladas de gases de efeito estufa.
Porém, antes mesmo de a Petrobras anunciar a compra dos créditos, a certificadora do projeto, uma organização norte-americana sem fins lucrativos chamada Verra, já havia negado a renovação da certificação. E a própria Verra, que inicialmente atestou a geração de créditos de carbono pelo projeto, enfrenta questionamentos no Brasil e no exterior.
Estudos contestam cálculo de créditos de carbono certificados pela Verra
A Verra é a maior organização mundial em certificação de créditos de carbono. Entre seus clientes estão Disney, Shell e Gucci. Porém, sua credibilidade vem sendo balançada desde o início do ano, quando vieram a público estudos dizendo que seus resultados não são legítimos. A empresa rebate. Questiona as metodologias dos estudos e afirma que as conclusões deles são incorretas.
Os estudos foram revelados pelo jornal britânico The Guardian em janeiro. Eles concluíram que mais de 90% dos créditos de compensação de florestas tropicais de projetos certificados pela Verra em vários países são provavelmente "créditos fantasmas". Ou seja, não representam reduções genuínas nas emissões de carbono (veja mais abaixo).
No Brasil, onde certifica 228 projetos, a Verra também enfrenta objeções. Depois de certificar o Envira Amazônia, do qual a Petrobras comprou créditos de carbono, a empresa teve de negar a renovação de licença do projeto ao tomar conhecimento de inconsistências na documentação das terras e nos dados sobre desmatamento na área.
Recentemente vieram a público problemas em outro estado amazônico, em uma área que fica no Pará, a mais de 2 mil quilômetros do projeto Envira. A Defensoria Pública do Pará entrou com ação contra empresas e pessoas referente a projetos certificados pela Verra, sob a alegação de que usam áreas desmatadas, públicas e de assentamentos.
A despeito das indagações que põem a credibilidade da Verra em xeque desde o início do ano e da não renovação da licença do projeto em maio, a Petrobras anunciou em setembro a compra de créditos de carbono do Envira Amazônia.
Em seu Plano Estratégico, a estatal prevê investimentos de até US$ 120 milhões em aquisição de créditos de carbono para os próximos quatro anos. A companhia não revela quanto gastou com o Envira.
"Para o primeiro ciclo de neutralização da Gasolina Petrobras Podium foram adquiridos créditos de carbono gerados pelo projeto Envira Amazônia do tipo REDD+ (Redução de Emissões Provenientes de Desmatamento e Degradação Florestal), ou seja, sua contribuição é evitar o desmatamento, oferecendo alternativa de emprego e renda às comunidades locais para que mantenham a floresta em pé", diz o "disclaimer" (aviso legal) da gasolina Podium.
"Os créditos de carbono adquiridos possuem certificação padrão VCS (Verified Carbon Standard) da Verra, uma das maiores certificadoras do mercado voluntário de carbono no mundo", prossegue o texto.
Crédito de carbono é alternativa para que empresas compensem emissões
O mercado da compra de créditos de carbono cresceu nos últimos anos ao se tornar uma alternativa para que as empresas compensem suas emissões de gases de efeitos estufa sem precisar alterar suas plantas fabris e processos. Para compensar os gases que lançam à atmosfera, as companhias pagam para que um espaço de terra não seja desmatado.
Com isso, além de atingir suas metas socioambientais, as empresas podem usar a neutralização de carbono como ferramenta de marketing, para agregar valor aos seus produtos.
Foi o que a Petrobras fez com sua gasolina de alta octanagem. Escolheu um de seus produtos mais caros (e de vendas muito inferiores às da gasolina comum ou aditivada), calculou sua "pegada de carbono" e comprou créditos equivalentes, de modo a poder chamar o combustível de "carbono neutro". A empresa poderia, alternativamente, dizer que está compensando o equivalente a uma determinada fração de suas emissões totais, mas isso obviamente não teria o mesmo apelo mercadológico.
O site da Petrobras afirma que a Podium tem "100% das emissões de CO2 neutralizadas por compra de crédito de carbono de boa qualidade". Lá é possível calcular a a quantidade de carbono neutralizada a cada abastecimento – 45 litros, por exemplo, equivalem a quase 103 quilos de CO2 equivalente.
Área do projeto da Petrobras já foi desmatada e tem posse contestada
Além de uma parte do Envira Amazônia já ter sido desmatada, faltam documentos que mostrem que o desmate foi planejado e com as devidas licenças. Além disso, uma das proponentes do projeto, a JR Agropecuária, é apontada como um dos agentes do desmatamento, segundo reportagem da "Folha de S.Paulo".
De acordo com a publicação, documentos do projeto Envira Amazônia também apontam a presença de comunidades extrativistas dentro e fora do imóvel rural.
A reportagem também menciona que a organização não governamental WRM (em inglês, Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais) afirmou em 2018 que famílias de seringueiros vivem há gerações na área e que há contestação quanto à propriedade do terreno.
O boletim da WRM, publicado em seu site, ressalta que a maioria dessas famílias seringueiras não conseguiu obter documentos legais que confirmem seus direitos fundiários e que o projeto de REDD+ “ameaça o futuro da comunidade porque impõe restrições ao futuro uso da terra”.
Diante dos impasses, a Verra solicitou análise do Envira à associação sem fins lucrativos NBS Brazil Alliance. O parecer na NBS afirma que a linha de base do projeto não é plausível, pois considera uma média de desmatamento inferior à que foi observada no primeiro ano e não apresenta documentação e licenças necessárias.
As dúvidas sem respostas sobre o desmatamento e a posse da área do Envira Amazônia levaram a própria Verra a negar a renovação do projeto no dia 23 de maio de 2023, três meses e meio antes do anúncio da compra de créditos de carbono da Petrobras, feito em 5 de setembro.
As datas apontam que a Petrobras anunciou a compra de créditos de carbono do Envira Amazônia mesmo após a certificadora negar a renovação do projeto e já ter pedido esclarecimento sobre o território e o desmatamento.
A reportagem procurou a Petrobras desde o dia 13 de outubro, mas a empresa só respondeu após a publicação. À Gazeta do Povo, disse que a área em questão onde comprou os créditos é particular, não foi desmatada e está preservada.
"A negativa não representa uma rejeição do projeto. O responsável pelo projeto pode prover mais detalhes. Entretanto, é importante ressaltar que a Petrobras adquiriu créditos das safras 2019, 2020 e 2021 que estão integralmente válidos, não relacionados à mudança de linha de base solicitada posteriormente", respondeu a Petrobras no dia 30 de outubro.
"De acordo com o novo código florestal, é determinado que em imóveis rurais localizados na Amazônia Legal, poderia desmatar legalmente 20% do seu território. Mas o projeto de fato protege toda a área", acrescentou a estatal.
A Gazeta do Povo procurou a CarbonCO, LCC e JR Agropecuária, responsáveis pelo Envira Amazônia, mas nenhuma delas respondeu até a publicação desta reportagem.
Já a Verra ressaltou à Gazeta do Povo que não tem autoridade sobre os créditos que já foram comercializados. "A Verra, por exemplo, não toma de volta ou cancela os créditos que já foram vendidos", diz a organização.
O que pode ocorrer, segundo ela, é pedir ao responsável pelo projeto que preste contas do que foi emitido, caso seja determinado que houve emissão excessiva de créditos.
Áreas com créditos certificados pela Verra são alvo de ações no Pará
No Pará, projetos de créditos de carbono certificados pela Verra são alvo de ações judiciais, por questões sobre a posse das áreas, desmatamento e até inclusão de áreas públicas como supostas emissoras de créditos. Os projetos ficam no município de Portel.
A Defensoria Pública Agrária do Pará ajuizou quatro ações, das quais três envolvem projetos com créditos certificados pela Verra, pedindo que os empreendimentos sejam invalidados, bem como todos os negócios jurídicos relacionados.
Segundo a defensora pública do Estado Andrea Macedo Barreto, as ações apontam que houve grilagem de terras públicas, uso de áreas de assentamento e de floresta pública indevidamente, assim como documentos de propriedades que não têm validade jurídica e até o uso de mesma matrícula em mais de um projeto.
“Os projetos já nascem ilegais, pois precisam do aval do proprietário e possuidor e são em florestas públicas. Embora a Verra não seja requerida [nas ações], tem um efeito prático de reconhecer a invalidade dos documentos. Significa que não está realmente compensando o que diz compensar porque as propriedades são ilegais ou não existem”, disse a defensora pública à Gazeta do Povo.
A Verra reforça que não é parte no processo e que não pode comentar o resultado, implicações ou prazos da ação judicial movida pela Defensoria Pública Agrária do Pará. Confirma, porém, que os três projetos que ela certificou estão atualmente em revisão. Para o quarto projeto, a própria Verra havia negado certificação.
"Assim que essas revisões forem concluídas, a Verra considerará o curso de ação apropriado de acordo com as regras do programa. A nova emissão de créditos está suspensa, enquanto se aguardam essas revisões em curso. A Verra leva muito a sério a decisão de uma autoridade legal competente", disse a organização à Gazeta do Povo.
A defensora pública salienta que empresas que compram crédito de carbono podem ser responsibilizadas civilmente por uso dessa mesma floresta onde houver vícios de ilegalidade.
"Se tivermos uma sentença ou decisão liminar, a qual já pedimos, que comprove que são [áreas] ilegais e as empresas continuarem a ter contratos de compra de crédito de carbono nestas regiões, podem ter que responder judicialmente. Para nós, não basta usar o selo dizendo de que está sustentável", sintetiza Andrea. "E para uma empresa estatal a responsabilidade aumenta, pois as que são de interesse nacional devem ter controle maior de seus parceiros."
Por que a Verra está sendo questionada no mundo?
A Verra lidera um mercado que movimentou US$ 2 bilhões em 2021. A empresa foi fundada em 2009 e desde então emitiu mais de um bilhão de títulos de carbono.
Em janeiro deste ano, porém, o jornal britânico The Guardian, a revista alemã Die Zeit e a ONG Source Material verificaram 21 projetos monitorados por ela. A análise indicou que cerca de 94% dos créditos produzidos pelos projetos não deveriam ter sido aprovados, pois são "inúteis e podem piorar o aquecimento global".
A pesquisa foi baseada em relatórios dos projetos, entrevistas e consultas com cientistas e membros da indústria e comunidades indígenas. "As conclusões – que foram fortemente contestadas por Verra – poderão colocar sérias questões às empresas que dependem de compensações como parte das suas estratégias de emissões líquidas zero", diz texto do The Guardian.
O pesquisador brasileiro Thales West explicou à Gazeta do Povo que o estudo publicado pelo jornal inglês e seus parceiros é baseado em pesquisas anteriores, sendo uma da Universidade de Cambridge e outras duas das quais ele participou.
O primeiro levantamento, em 2020, foi realizado em projetos da Verra na floresta amazônica. “Concluímos que a maioria dos projetos não estavam reduzindo desmatamento e os poucos que reduziam não reduziam tanto quanto falavam", afirma West.
West é professor de geografia na Universidade Livre de Amsterdã (VU-Amsterdã) e pesquisa os créditos de carbono há 15 anos. Para ele, a principal falha na discrepância do que é dito e o que realmente é feito está na forma como o cálculo dos créditos é realizado pela Verra.
“Os créditos são baseados no desmatamento comparado num cenário de linha de base, que é o desmatamento que aconteceria sem a presença do projeto. O problema é que a forma como é calculada é problemática. Se a receita que os desenvolvedores têm que seguir é problemática, o resultado é problemático”, diz.
Em Cambridge, a conclusão foi a mesma. De acordo com o The Guardian, David Coomes, professor de ecologia florestal da universidade e autor sênior de um estudo que analisou o desmatamento evitado nos primeiros cinco anos de 40 projetos certificados pela Verra, afirmou que havia uma grande lacuna entre a quantidade de desmatamento realmente evitada e o que o padrão de carbono estava aprovando.
"É seguro dizer que existem fortes discrepâncias entre o que estamos calculando e o que existe nas suas bases de dados, e isso é motivo de preocupação e de investigação mais aprofundada. Acho que, no longo prazo, o que queremos é um conjunto consensual de métodos que sejam aplicados em todos os locais", afirmou Coomes ao jornal britânico.
Segundo o The Guardian, os dois estudos do grupo internacional de investigadores descobriram que apenas oito de 29 projetos aprovados pela Verra, onde foi possível uma análise mais aprofundada, mostraram evidências de reduções significativas da desflorestação.
Em setembro, o jornal britânico voltou ao assunto dos créditos de carbono, com uma investigação mais ampla – para além da atuação da Verra – que levanta dúvidas sobre todo esse mercado. A partir da análise dos 50 principais projetos do gênero no mundo, o jornal afirmou que "há cada vez mais provas que sugerem que muitos destes esquemas de compensação exageram os benefícios climáticos e subestimam os potenciais danos".
A despeito das críticas e questionamentos, a Petrobras defende que escolheu a Verra pois sua metodologia para projetos florestais é a mais utilizada no mundo e segue um rigoroso processo de avaliação. E disse que realizou diligência dos créditos comprados através da análise de empresas de classificação de risco, de relatórios públicos e entende que os riscos do projeto são compatíveis com os melhores projetos de REDD+.
“Uma premissa básica dos projetos de crédito de carbono é a chamada “adicionalidade”. Isto é, a geração de créditos de carbono só é possível para aquilo que não aconteceria em condições normais. A polêmica envolvendo a Verra diz respeito a essa adicionalidade. No caso dos projetos de desmatamento evitado, há um questionamento acerca da real taxa de desmatamento que teria ocorrido naquelas áreas na ausência daqueles projetos”.
Verra questiona metodologia para avaliação dos projetos
Em resposta à reportagem do The Guardian de janeiro, o diretor jurídico, de políticas e de mercado da Verra pontuou que o artigo se baseia em falsa afirmação e extrapolações de três relatórios de dois grupos diferentes, que avaliaram um pequeno número de projetos utilizando metodologias próprias.
À Gazeta do Povo, a Verra, informou que não valida projetos e, sim, certifica projetos e emite créditos.
“A Verra não vende créditos de carbono. A Verra não está envolvida em transações de créditos de carbono e, portanto, não pode comentar sobre compradores específicos dos créditos de carbono de qualquer projeto. A validação é conduzida por auditores terceirizados, conhecidos como Órgãos de Validação e Verificação (VVBs)", disse a empresa.