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Com a premissa de corrigir distorções no funcionalismo e reduzir os custos da máquina pública, a proposta de reforma administrativa do governo é apoiada por defensores de um Estado mais enxuto e eficiente. Porém, o texto tem pontos fracos que limitam o alcance da reforma e podem provocar efeitos opostos aos planejados.
O primeiro desses pontos é que as regras serão aplicadas somente aos futuros servidores. Isto é, aos que forem contratados após eventual aprovação da proposta de emenda à Constituição (PEC) 32/2020. Isso significa que os efeitos da reforma devem demorar a aparecer. A proteção aos atuais servidores foi determinada pelo presidente Jair Bolsonaro e conta com a simpatia do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) e de boa parte dos parlamentares.
Outras questões problemáticas são a não inclusão de membros dos Poderes Legislativo e Judiciário e a ocupação de postos importantes por comissionados sem vínculo com o setor público, que poderia abrir portas para a corrupção e diminuir a eficiência da máquina administrativa. Além disso, a reforma não tem mecanismos para impedir uma das práticas que elevam o gasto com pessoal: os "dribles" ao teto do funcionalismo.
O texto, já aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, deve ter relatório apresentado na comissão especial em agosto. Diante da resistência que enfrenta, há dúvidas de que seja votado ainda neste ano. Nesta quarta-feira (7), o ministro da Economia, Paulo Guedes, participará de audiência pública na comissão, e provavelmente será questionado sobre as controvérsias da reforma.
Uma das principais críticas ao texto, tanto por parte da oposição quanto de apoiadores da proposta, é a exclusão de juízes, promotores, parlamentares e militares das novas regras.
O relator da reforma na comissão especial, Arthur Maia (DEM-BA), defende a inclusão dessas categorias, que poderia gerar uma economia de R$ 31,4 bilhões aos cofres públicos em dez anos, segundo levantamento do economista Daniel Duque, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV).
O Ministério da Economia alega que não incluiu membros de Poderes na reforma porque o Executivo não pode definir normas específicas para os poderes Legislativo e Judiciário. Quanto aos militares, o governo alega que eles já tiveram regras modificadas na reforma da carreira e da Previdência das Forças Armadas – que, no entanto, foi considerada benevolente em comparação à reforma da Previdência do INSS e dos servidores civis.
Juízes e promotores usam o mesmo argumento do governo. Em audiência pública na Câmara dos Deputados na terça-feira (6), representantes dessas categorias se manifestaram contra sua inclusão na reforma e afirmaram que isso só poderia ocorrer em projeto de iniciativa do procurador-geral da República e do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF).
Em resposta, o relator, Arthur Maia, afirmou que a PEC 32 não interfere na autonomia dos Poderes. "As corporações vêm fazer autoelogio e defender suas posições. Isso não vai contribuir com esta comissão. Isso não vai modificar minha cabeça", disse ele na audiência, segundo relato da Agência Câmara.
O deputado Kim Kataguiri (DEM-SP) protocolou uma emenda à PEC para incluir juízes e promotores na reforma administrativa. Mais de 230 deputados assinaram a proposta. Maia deve acatar a emenda, mas para que ela prospere o relatório terá de ser aprovado pela comissão especial.
Nomeação livre para 207 mil cargos de confiança pode facilitar corrupção
Para além dos efeitos limitados, uma nota técnica da Consultoria de Orçamento, Fiscalização e Controle do Senado Federal chega a classificar a PEC de “contrarreforma administrativa”. O estudo observou uma tendência de os novos dispositivos introduzidos pela proposta piorarem a situação fiscal do país, seja por aumento de despesas ou por redução das receitas.
Segundo o consultor legislativo Vinícius Leopoldino do Amaral, que assina a nota, a proposta apresenta efeitos como “aumento da corrupção, facilitação da captura do Estado por agentes privados e redução da eficiência do setor público em virtude da desestruturação das organizações”.
De acordo com a análise, duas alterações promovidas pela PEC facilitariam atos de corrupção na administração pública: a eliminação de restrições à ocupação de cargos em comissão e funções de confiança; e novas possiblidades para contratos de gestão.
Hoje, conforme estudo da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), o custo médio anual da corrupção no Brasil varia entre 1,38% e 2,3% do PIB. Isso equivaleria a R$ 102,1 bilhões a R$ 170,2 bilhões considerando o PIB de 2019 (R$ 7,4 trilhões). “Dada essa magnitude, mesmo incrementos percentualmente pequenos já trariam expressivo impacto fiscal”, afirma o consultor.
A PEC propõe a substituição dos atuais cargos em comissão e funções de confiança pelos chamados cargos de liderança e assessoramento. Diferentemente dos atuais, os novos vínculos não teriam restrições para sua ocupação, ou seja, não há reserva mínima para quadros de carreira. Com isso, ao menos 207,3 mil postos na União, estados e municípios hoje ocupados por servidores concursados passariam a estar abertos a qualquer pessoa, elevando para 1 milhão o total de vagas de livre nomeação.
“Tanto a doutrina jurídica quanto estudos econômicos associam a ocupação de cargos em comissão por pessoas sem vínculo com a ocorrência de corrupção”, explica Amaral no estudo.
Arthur Maia, relator da PEC na comissão especial, já avisou que pretende eliminar esse ponto da reforma e, assim, manter a regra atual. "Essa questão que está sendo colocada na proposta de trazer para os cargos de chefia a condição de livre nomeação, eu me associo a todos aqueles que entendem que esse ponto deve ser modificado", disse Maia à "Folha de S. Paulo". "Não há razão para favorecer o aumento da intromissão indevida da política na administração pública."
A crítica à proposta do governo vem sendo feita por parlamentares da oposição desde a apresentação da proposta. “O que a princípio se apresenta como uma mudança de nomenclatura é na verdade uma mudança extremamente prejudicial para a administração pública e para a sociedade, uma vez que os cargos de liderança e assessoramento poderão ser exercidos inclusive em funções técnicas. Com isso, existem grandes chances de que a administração pública se torne um cabide de empregos dos apadrinhados políticos”, diz o deputado federal Professor Israel Batista (PV-DF), presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público (Servir Brasil), da qual são signatários 255 deputados e 21 senadores.
A possibilidade de ocupação por apadrinhados em cargos inclusive de atribuição técnica, os vínculos mais frágeis com o fim da estabilidade para cargos não típicos de Estado e ampliação dos contratos de gestão preocupam o consultor do Senado particularmente em relação ao risco de captura de órgãos da União como a Receita Federal, o Tesouro Nacional, a Secretaria de Orçamento Federal, o Banco Central, o Cade, agências reguladoras e universidades públicas.
Segundo o consultor, ainda que seja muito difícil estimar o impacto fiscal que o aparelhamento desses órgãos possa produzir, mesmo pequenas variações porcentuais “poderiam acarretar graves prejuízos às contas públicas”. Considerando a soma das despesas primárias e a dívida bruta do governo federal, além do crédito tributário constituído por fiscalização e demandas judiciais, estão sob a responsabilidade desses órgãos um montante de R$ 11,5 trilhões ao ano.
Outro risco que a PEC apresentaria em termos de eficiência fiscal é o da redução da qualidade nos serviços públicos em razão da desestruturação de órgãos, que se tornariam mais vulneráveis à interferência política. “Assim, ao invés de contar com um corpo permanente e profissionalizado, os órgãos podem passar a depender de uma força de trabalho com vínculos precários, sujeita a elevada rotatividade”, diz Amaral.
Guedes diz que objetivo da PEC é melhorar qualidade dos serviços públicos
Na última audiência pública sobre a reforma administrativa na Câmara dos Deputados, realizada em 11 de maio pela CCJ, o ministro da Economia, Paulo Guedes, defendeu que o objetivo da PEC é melhorar a qualidade dos serviços públicos. Isso aconteceria, segundo ele, por meio da avaliação de desempenho dos servidores, ainda a ser regulamentada por meio de lei complementar.
“Então as avaliações são da qualidade do serviço. Não é propriamente o indivíduo que está sendo avaliado, que querem mandar embora”, disse.
“Não é porque o jovem fez um concurso que aos 19 ou 20 anos ele já tem um salário apenas 20% abaixo de quem vai estar no topo da carreira, 20 anos depois. E, ao mesmo tempo, ele já adquiriu estabilidade de emprego, antes de ter sido avaliado pelos seus próprios superiores hierárquicos e pela própria prestação de serviço.”
Na ocasião, embora tenha sido questionado mais de uma vez sobre a abertura de cargos de confiança hoje exclusivos para servidores de carreira, Guedes não respondeu às perguntas.
Medidas não previstas na reforma poderiam reduzir as despesas com pessoal
Diante dos eventuais efeitos negativos da PEC 32/2020 sobre as finanças públicas, o consultor legislativo Vinicius Leopoldino do Amaral apresenta algumas sugestões que aperfeiçoariam a gestão das despesas com pessoal. A primeira delas tem cunho meramente gerencial, com a aplicação diligente das regras fiscais já existentes. “O descumprimento da legislação existente é, em nosso entendimento, o problema mais grave a ser enfrentado na gestão das despesas com pessoal”, afirma.
Ele cita exemplos como o reajuste dos subsídios dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e do procurador-geral da República em 2018, que não respeitou a exigência de autorização específica na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e cujo impacto superou os R$ 5 bilhões anuais.
Outra situação foi o projeto de lei que reajustou vencimentos de militares em 2019 sem apresentar estimativas de impacto, embora seja exigido pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Já a Medida Provisória 765/2017 elevou a remuneração de várias categorias do Executivo federal apesar de violar dispositivos da Constituição, da LRF, da LDO e da Lei Orçamentária Anual (LOA).
Outra medida não prevista na reforma administrativa que reduziria as distorções salariais observadas no funcionalismo é a efetivação do teto remuneratório constitucional. Uma série de despesas caracterizadas como indenizatórias tem permitido a determinadas categorias receberem acima do limite. A PEC 32/2020 não prevê qualquer mudança nesse sentido.
“Essa é mais uma demonstração do governo de que o objetivo da reforma não é combater privilégios. Isso não é um equívoco da reforma, é intencional, uma vez que os direitos daqueles servidores que ganham menos de dois salários mínimos, que são a maioria, foram estrategicamente retirados no texto da PEC”, diz o presidente da Frente Servir Brasil.
Um projeto de lei de 2016 que prevê regras mais rígidas para barrar os chamados “supersalários” está parado na Câmara dos Deputados desde 2018, depois de ter passado no Senado. Segundo estimativa do relator da matéria, o deputado federal Rubens Bueno (Cidadania-PR), a aprovação do texto geraria uma redução de R$ 2,3 bilhões por ano em gastos com pessoal.
Recentemente, no entanto, esse projeto voltou à tona: o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), se comprometeu com Rubens Bueno a levar o texto ao plenário. A matéria foi incluída na pauta de votações desta quarta (7). Com isso, tem chances de ser aprovada antes da reforma administrativa.
Para Batista, uma reforma administrativa deveria abranger problemas da administração pública diversos que não estão sendo levados em consideração pelo Ministério da Economia.
“Distorções como o próprio teto duplex, instituído pelo mesmo governo que almeja a reforma, devem e necessitam ser combatidas. Essa interferência política que vem acontecendo nos últimos três anos também é algo inaceitável”, diz.
O "teto duplex" é a possibilidade de que parte dos servidores acumulem rendimentos acima do teto do funcionalismo. A prática foi liberada por portaria do Ministério da Economia neste ano e fará com que o presidente Jair Bolsonaro, o vice Hamilton Mourão e cerca de mil servidores recebam mais que o teto.
O próprio governo não anexou à PEC qualquer estimativa de economia potencial com a reforma. A justificativa é que a conta depende ainda de decisões sobre as carreiras dos servidores, que ficarão para projetos de lei a serem apresentados em uma segunda fase da reforma.
Paulo Guedes já declarou, no entanto, que a economia para a máquina pública pode chegar a R$ 450 bilhões em dez anos, porém sem apresentar cálculos detalhados. Estimativas de outras instituições, que partem de premissas distintas, variam bastante: vão de R$ 128 bilhões a R$ 816 bilhões.
Contrário à reforma, Dieese vê risco para economia de municípios
Contrários à reforma administrativa, sindicatos de servidores elencam entre suas críticas ao texto um possível efeito econômico: ao enxugar o quadro do funcionalismo e limitar os salários dos futuros servidores, a proposta pode prejudicar a economia de pequenos municípios. A queixa, nesse caso, é a um dos objetivos centrais da reforma: a redução do tamanho do Estado.
Em 38% dos municípios brasileiros a administração pública tem participação de 50% ou mais no total de empregos formais, de acordo com dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais), do Ministério da Economia, de 2019.
Nota técnica do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) avalia que as demandas geradas a partir da remuneração desses servidores e dos próprios órgãos e instituições públicas locais são cruciais para a movimentação de recursos, sobretudo em setores como de comércio e serviços.
“Reduzir os patamares salariais e mesmo reduzir o contingente de pessoal no serviço público, sem qualquer alternativa de política econômica, pode ser problemático para a sustentação das economias locais, em especial nos municípios com atividade econômica menos diversificada”, afirma o documento.