É verdade que o brasileiro passou muito mais tempo sofrendo com o dragão da inflação do que aproveitando o período em que ela está sob controle. Essa situação de inflação controlada, na meta ou até mesmo abaixo dela que ocorreu nos últimos anos, deixou uma sensação mais confortável de controle e previsibilidade, e é por isso que a atual disparada, classificada como muitos economistas como uma surpresa, traz um temor por rememorar períodos mais difíceis de remarcação de preço.
O recente avanço da inflação exige atenção, mas não tende a ser um risco grave para o país: a avaliação majoritária é que ela não está descontrolada. Porém, a pressão nos preços deve continuar nos próximos meses e é esperado para 2021 um aumento gradual na taxa básica de juros, a Selic, justamente para controlar a inflação.
Os principais índices que medem a variação de preços subiram, mas não na mesma medida. Os indicadores de preços ao consumidor são mais pressionados pela alta dos alimentos, mas têm o alívio da pouca variação de itens de serviços. Os que refletem os custos da produção industrial e da construção civil, por sua vez, são mais fortemente afetados pelo dólar e pelo preço das commodities, e aceleraram.
Principal termômetro da inflação ao consumidor, o IPCA acumulado nos últimos 12 meses está em 3,14%. O IGP-M – que reflete mais os preços ao produtor e no atacado – ultrapassou a barreira dos dois dígitos e está em 17,94% em 12 meses, dos quais 14,40% só no acumulado de janeiro a setembro.
Essa alta surpreendeu economistas, que já acenderam a luz amarela e revisaram projeções. A última edição do boletim Focus, do Banco Central, é prova disso. Há um mês, o mercado projetava um IPCA de 2% ao fim do ano. Na semana passada, a expectativa chegou a 2,65% e na edição desta semana a aposta foi a 2,99%. O IGP-M também está com esse viés de alta: a projeção para o índice no fechamento de 2020 passou de 15,64% há um mês para 19,72% no boletim divulgado na segunda-feira (26).
Quatro fatores pesam para a alta da inflação
Quatro fatores principais pesam para a alta da inflação, especialmente quando se pensa nos preços ao consumidor, de acordo com especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo:
- O aumento do preço dos alimentos, causado tanto por uma questão de aumento de demanda (as pessoas passaram a fazer mais refeições em domicílio por causa da pandemia e até fizeram certo estoque de produtos entre março e maio) quanto de produção, com a redução da área de plantio de arroz e a quebra da safra de feijão;
- A valorização das commodities, cujo preço subiu em dólar, favorecendo a exportação e reduzindo a oferta para o mercado doméstico;
- A taxa de câmbio, com a desvalorização do real em relação ao dólar, o que encareceu os preços de commodities, afetando toda a estrutura produtiva;
- As sazonalidades, como a questão climática para produção de alimentos. Um exemplo é o leite: pra manter a oferta no inverno, em que chove menos e considerando o atual cenário de estiagem, o produtor precisa complementar a pastagem da alimentação do gado com ração.
André Braz, coordenador do IPC do Instituto Brasileiro de Economia (FGV/Ibre), frisa que a inflação percebida pelas famílias está muito concentrada na variação dos preços dos alimentos, causada por essa combinação de fatores que foi repassada ao consumidor.
“As mudanças de hábitos, problemas de safra, problemas sazonais e desvalorização da nossa moeda frente ao dólar, sem contar com o aumento do preço dos grãos no mercado internacional, que é outro fato que independe da nossa economia, causaram essa pressão muito grande e concentrada em alimentos”, diz.
A recuperação da economia de outros países também influencia o volume de compras de commodities e impacta os preços aqui, acrescenta Braz.
A economista da Coface para América Latina, Patricia Krause, lembra que esse movimento já estava sendo antecipado pelos indicadores de inflação de atacado, quando ainda havia dificuldade de repasse para o consumidor. Esse é o fator que mudou, já que a prévia da inflação, no IPCA-15, mostrou uma alta generalizada, assim como a inflação de bens industriais apresenta viés de alta.
“Já vinha de alguns meses essa expectativa de que a inflação poderia aumentar um pouco. Podemos ter outras altas lá na frente, mas ainda não é preocupante”, diz a economista.
A questão não preocupa, ao menos por ora, porque a inflação ainda está abaixo da meta, que é de 4% para 2020, com tolerância de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo. Ou seja, permite a variação entre 2,5% no limite inferior e 5,5% como teto. “Se a inflação fechar em 3,5%, ainda está abaixo do centro da meta. Podemos pensar em um cenário, daqui para a frente, de moderação do câmbio e redução do risco e da incerteza de atividades. Isso ajudaria a não causar pressões tão longas por um período de tempo”, diz.
Quais os riscos para o país
Além de encarecer o custo de vida das famílias, um dos principais efeitos da alta da inflação é aumentar a pressão sobre a taxa básica de juros, a Selic, que serve de referência para grande parte dos empréstimos. Ela está hoje no menor nível da história, mas uma elevação pode frear o impulso da retomada econômica após o pico da pandemia de coronavírus.
O Comitê de Política Monetária (Copom) vai anunciar o próximo patamar da taxa nesta quarta-feira (28). A aposta do mercado é de manutenção nos atuais 2% ao ano, mas as atenções estão mais voltadas para a ata da reunião, que será divulgada na semana que vem e pode trazer uma sinalização de preocupação com a inflação.
A economista do Banco Ourinvest, Cristiana Quartaroli, não considera o quadro inflacionário preocupante, mas reconhece que a divulgação do IPCA-15 acendeu a luz amarela de alerta porque a inflação, que estava mais concentrada no preço dos alimentos, começou a ser repassada para os bens duráveis e de alguns serviços.
“Não é para se preocupar, mas a luz amarela acendeu. E, obviamente, de alguma forma isso vai impactar na decisão do Banco Central lá na frente”, disse ela em entrevista coletiva na terça-feira (27) . O Ourinvest projeta que a inflação para 2021 deve ficar em 3,75% e que a Selic chegará a 4% até o fim do ano que vem.
Ainda que esse aumento não possa ser considerado um retorno do fantasma da inflação, a concentração no preço dos alimentos explica a preocupação de muitas famílias e demanda atenção para os rumos do mercado de trabalho.
“Não existe para saída para as famílias de baixa renda, que gastam mais a renda no consumo de alimentos, porque a gente está vendo aumento de arroz, feijão, carne, tomate, açúcar, café... São poucos os itens que você consegue tirar dessa lista, se é que há algum que não esteja subindo de preço”, observa André Braz, do FGV/Ibre.
Para ele, a questão é que a queda da atividade econômica afetou o mercado de trabalho, desempregando muitas pessoas. Ainda com o auxílio emergencial, isso não cria uma pressão de demanda tão forte a ponto de sustentar repasses generalizados de preços.
Um exemplo é que algumas áreas do setor de serviços, como turismo e entretenimento, não tiveram alta de preço. Tarifas públicas, como água e energia elétrica, e planos de saúde também não tiveram reajustes neste ano. Isso tudo ajuda a limitar o aumento de preços dos segmentos que compõem o orçamento familiar.
“O que amplia essa sensação de descontrole inflacionário, da volta do dragão da inflação, é o desemprego, porque com renda a família ainda dribla algum aumento de preço, mas sem poder prestar serviços ou estando desempregado, a situação de muitas famílias fica muito ruim. Diante de uma pressão dessas, em cima do que há de mais fundamental para o sustento de uma família, que são os alimentos, a situação piora ainda mais”, observa.
Cenário de controle da inflação é exceção
A economista-chefe do Banco Ourinvest, Fernanda Consorte, pondera que essa atual pressão inflacionária não é nada perto do que o brasileiro já viveu, mas é um cenário muito mais salgado do que o projetado no início do ano.
O risco dessa subida está relacionado principalmente à cultura inflacionária que o Brasil tem, e o IGP-M em dois dígitos é o exemplo claro disso.
A cautela em olhar para o IPCA, mesmo neste cenário de recessão econômica, tem ligação com o aumento do gasto público e a situação fiscal do país. A economista lembra que o período entre o fim do governo Lula e início da gestão Dilma foi marcado por um excesso do quadro fiscal, que tinha um impulso muito grande, com inflação muito alta e atividade econômica crescendo pouco.
E esse quadro já era mais confortável do que na época da hiperinflação no Brasil, entre as décadas de 1980 e 1990. A combinação de queda no crescimento econômico, alta dívida externa e planos econômicos fracassados levou a inflação disparar – ela chegou a 2.000% em 1989. As soluções da época envolveram tanto congelamento de preços quanto remarcações que ocorriam mais de uma vez por dia, num quadro extremamente difícil para a população. O problema só foi equalizado com o Plano Real, lançado em julho de 1994.
“É um componente de risco na medida que é uma coisa que a gente já experimentou no Brasil, há não tanto tempo atrás. Na verdade, o novo é a ausência de inflação, então a gente tem que dar uma olhada. Gato escaldado tem medo de água fria. É sempre bom ter atenção a isso”, diz.
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