Em um mundo ideal, todos trabalhariam com o que gostam, sendo bem remunerados por isso e tendo tempo de sobra para a aproveitar a vida. A realidade, no entanto, passa longe disso. Ausência de desafios ou motivação, sensação de estar perdendo oportunidades melhores, ambiente de trabalho tóxico, salário baixo demais, dificuldade em conciliar a vida pessoal e profissional… não faltam motivos para gerar insatisfação com o trabalho e vontade de procurar algo diferente.
Os tempos atuais, porém, são de crise. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) dos últimos meses, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa de desemprego atual é de 13%, ou seja, 13,5 milhões de pessoas estão sem ocupação. Por isso, para muita gente a melhor opção é ficar onde está, pelo menos até a situação melhorar. Mas como encontrar propósito em um trabalho que não é o dos sonhos?
É preciso ver o lado bom nas ações do dia a dia
É o que pergunta Emily Esfahani Smith, autora de O poder do sentido: Os quatro pilares essenciais para uma vida plena, em um artigo publicado no periódico Harvard Business Review. “Pesquisas confirmam que propósito é a primeira coisa que os Millennials dizem que querem em um trabalho. E, ainda assim, a pesquisa dela [de Amy Wrzesniewski, professora da Faculdade de Gestão de Yale] mostra que menos de 50% das pessoas vêem o seu trabalho como uma vocação”, escreve a jornalista e pesquisadora.
“O que eles — e muitos de nós, eu acho — não percebem é que o trabalho pode ser significativo mesmo se você não o vê como uma vocação. As quatro ocupações mais comuns na América são vendedor de varejo, caixa, preparador de comida/garçom e funcionário de escritório — trabalhos que não são tipicamente associados com ‘vocação’. Mas todos têm algo em comum com aqueles que o são, como clérigos, professores e médicos: eles existem para ajudar os outros”, aponta.
Parece um desafio enxergar esse aspecto pensando apenas nas tarefas do dia a dia, mas o fato é que praticamente todos os trabalhos do mundo visam criar um serviço ou um produto que beneficiará alguém.
Em um dia de chuva, pode ser meio difícil para o carteiro lembrar que está entregando a encomenda que alguém provavelmente ficou dias esperando ansiosamente. Ou em meio ao calor do fogão, o assistente de cozinha pode esquecer que está preparando uma refeição que vai matar a fome de uma pessoa.
A coach de carreira Lilian Bertin acredita que o sentido do trabalho não precisa necessariamente envolver terceiros ou a sociedade.
Esse propósito pode ser pessoal, como ganhar dinheiro para comprar uma casa e fazer uma viagem”, sugere. Para ela, uma saída para tornar o trabalho mais prazeroso é perguntar-se: por que eu faço o que eu faço?
Mudar perspectivas é fundamental
Aprender a gostar do que se faz é um exercício constante. A CEO da ProfitCoach & Treinamento, Eliana Dutra, usa um paralelo com a higiene bucal para explicar como isso funciona: crianças normalmente não gostam de escovar os dentes, porém, à medida que crescem, as pessoas passam a encontrar prazer nessa rotina, seja pela sensação de limpeza ou porque sentem que ficam com menos vontade de comer besteiras. “Mas olhar aquilo de forma que te dê satisfação é um trabalho criativo interno. Tem que ter criatividade para olhar a planilha de Excel e pensar ‘Oba! Um quebra-cabeça!’”, garante.
Reconhecer seus talentos e como eles estão sendo usados também é uma saída para ver o emprego de hoje como o ideal. O problema é, em primeiro lugar, perceber quando realmente fazemos algo melhor do que outras pessoas. De acordo com Eliana, a tendência é acreditarmos que as outras pessoas são pouco espertas em relação a determinadas competências, não que nós somos um ponto fora da curva
“Quando as pessoas reconhecem essas habilidades e começam a usá-las cotidianamente no seu trabalho, isso eleva a satisfação, a autoestima e faz com que gostem de estar trabalhando naquele lugar”, diz. A chave é encontrar o que se faz bem feito e com pouca dificuldade para aumentar a sensação de bem-estar.
Toda a nossa cultura é voltada para apontar o ponto fraco e querer consertá-lo, tentando achar a perfeição”. Como diz a máxima, no entanto, ninguém é perfeito - e ter esse objetivo só pode levar à frustração.
Encabeçar mudanças pode ser inspirador
O reconhecimento de habilidades e potencialidades é uma das principais expectativas em relação ao ambiente de trabalho, junto de geração de aprendizado e a integração das vidas pessoal e profissional.
Os dados são da edição de 2017 da pesquisa Carreira dos Sonhos, realizada anualmente pelo Grupo DMRH e a Cia de Talentos com milhares profissionais jovens, de média e alta gerência, que mostrou que cerca de 77% dos entrevistados fariam algo diferente se o dinheiro não fosse uma preocupação.
O levantamento mostra que a insatisfação atinge todos os níveis da cadeia. Especialmente no caso de gerentes e coordenadores, a crise pode se refletir em acúmulo de funções ou até mesmo uma “promoção” que, na verdade, é apenas um disfarce para ter mais responsabilidades sem o devido retorno.
Para a CEO da Cia de Talentos, Maira Habimorad, uma opção é procurar projetos que trarão prazer em que o profissional consiga colocar em prática seus conhecimentos.
Dentro da organização em que está pode haver oportunidades para essa intersecção entre fazer o que se gosta e o que se sabe”, afirma. “Alguém que trabalha no setor financeiro e tem vontade de contribuir com sustentabilidade, por exemplo, pode se voluntariar para atuar em projetos de sustentabilidade em que possa cuidar do financeiro”.
Além disso, é possível tomar a iniciativa para as mudanças desejadas, conversar com os colegas e gestores sobre como aliviar frustrações e procurar manter uma perspectiva positiva. “Mude o que estiver ao seu alcance e pode ser que você inspire outros colegas a fazerem o mesmo”, aconselha Lilian.
Não é tudo um mar de rosas. E isso é normal
A insatisfação com o trabalho tem um impacto real no desempenho profissional e na vida pessoal. Há quem desista de fazer o trabalho bem feito quando está desgostoso do emprego atual, há quem leve os problemas do escritório para casa ou que perca a vontade de sair da cama de segunda a sexta-feira porque sabe o que vai encontrar pela frente. Tudo isso é natural e compreensível, contudo é importante lembrar que ninguém está 100% feliz o tempo todo.
“Eu não gosto daquela frase ‘Escolha um trabalho que você ame e não terá de trabalhar um único dia de sua vida’”, confessa Maira, que acredita que essa é uma visão imatura do mundo do trabalho. Isso porque qualquer emprego, por mais que seja prazeroso, sempre vai requerer que deveres sejam cumpridos e nem sempre eles serão aquilo que estamos com vontade de fazer naquele momento. Eliana Dutra concorda.
Todo trabalho tem os ossos do ofício - todo filé tem osso. Temos que descobrir o que é o filé e o que é o osso e focar no filé”, brinca.
Analisar o que dá prazer ao invés de focar no que não gostamos, tomar iniciativas para mudar o que é desagradável e enxergar o propósito e o fim da empresa, como um todo, são ingredientes para não desistir do emprego que não é o ideal - mas paga as contas no momento de crise.