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Apesar do cenário trágico, o conjunto da população conseguiu guardar dinheiro durante a pandemia de coronavírus. Mesmo rendendo quase nada, a caderneta de poupança bateu recordes, e outras aplicações também cresceram em meio à recessão.
Ao menos parte do que foi poupado tende a ser gasto na reabertura da economia, acelerando um esperado retorno do crescimento. A dúvida é sobre a potência desse movimento. Quanto do dinheiro guardado nos últimos meses será convertido em consumo e, consequentemente, em crescimento econômico? E mais: uma vez destinado a compras, esse recurso poupado será capaz de compensar o fim do auxílio emergencial de R$ 600?
Ainda que a maioria das atividades volte a funcionar, boa parte da população ainda estará insegura – tanto em relação à saúde, o que tende a limitar deslocamentos e o consumo "presencial", quanto em relação à situação financeira. O mercado de trabalho deve continuar ruim por um bom tempo, enquanto que o auxílio emergencial de R$ 600 – que vem sustentando muitas famílias – tende a ser encerrado até o fim do ano.
Caderneta de poupança bateu recorde e outras aplicações cresceram
Entre janeiro e julho de 2020, a captação líquida das cadernetas – isto é, a diferença entre depósitos e saques – ficou positiva em R$ 112,6 bilhões, de acordo com dados do Banco Central. Foi o maior valor para os sete primeiros meses do ano desde o início do Plano Real.
O saldo de outros investimentos também aumentou em meio à pandemia. A consultoria Tendências tem um indicador de poupança agregada das famílias que soma os saldos das cadernetas ao valor aplicado em renda fixa, títulos do Tesouro, previdência privada e capitalização. E o montante poupado, segundo o índice, aumentou quase 17% entre maio de 2019 e maio de 2020, aproximando-se de R$ 3,4 trilhões.
Pesquisas de opinião também apontam o interesse do brasileiro em guardar dinheiro neste momento. Sondagem feita em julho pelo Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV) mostrou que, das pessoas com direito ao saque de até R$ 1.045 do FGTS, 26% pretendem guardar o dinheiro – segunda opção mais mencionada, atrás apenas do pagamento de dívidas em atraso (40%).
Reserva de emergência: quanto dela pode sustentar uma retomada?
No caso específico das cadernetas, aplicação mais acessível de todas, com boa liquidez (facilidade de movimentação) mas baixíssima rentabilidade, o crescimento indica que as pessoas estão preocupadas em fazer uma reserva de emergência. E esse colchão poderá ajudar na retomada da economia, embora não seja suficiente para sustentá-la.
Buscar essa poupança precaucional, mais do que motivada pela vontade de economizar, se deu pela junção de dois fatores principais: impossibilidade de gastar, já que muitos negócios ficaram fechados, e a incerteza em relação ao cenário pós-Covid no Brasil.
Quem conseguiu, poupou. Mas essa não foi a realidade de toda população: quase 11 milhões de famílias tinham algum tipo de dívida em julho, número que cresceu com a pandemia.
O aumento tanto de poupadores quanto de devedores mostra como a reação à crise foi diferente, dependendo do nível de renda das famílias. E isso também vai influenciar o comportamento da atividade econômica na retomada. A tendência é que, enquanto a incerteza persistir, boa parte do dinheiro seguirá guardada onde está e não se reverterá em mais consumo.
"Sabemos que parte dessa poupança poderá voltar para a economia no curto prazo, dando vazão rápida à demanda reprimida", afirmam economistas do Bradesco em relatório. "A depender do momento em que esses recursos se converterem em consumo, poderemos ter um vetor de estímulo que se contrapõe, em alguma magnitude desconhecida, ao esperado encerramento do programa de transferência de renda à frente", apontam, referindo-se ao fim do auxílio de R$ 600.
Eles ponderam, no entanto, que "muito provavelmente" o perfil do poupador é diferente do perfil de quem recebe o auxílio. Isto é, quem está poupando, na maioria dos casos, não são os beneficiários da renda emergencial. E isso tende a afetar a velocidade do consumo mais adiante, pois a propensão ao consumo das pessoas de baixa renda (boa parte delas recebendo o auxílio hoje) é maior que a das pessoas de renda mais alta (as que estão poupando). Pode ser, portanto, que lá na frente o uso da poupança acumulada pelos mais abonados não seja capaz de compensar o fim do pagamento de R$ 600 aos mais pobres.
Poupança pela dor, e não pelo amor
Embora seja um indicador interessante, o aumento da captação da poupança mostra o temor do brasileiro ante o cenário econômico que está por vir.
“O brasileiro poupou não pelo amor, mas pela dor. Não dá pra saber se é poupança de segurança, emergencial. E não são só as classes C e D que estão poupando – as classes A e B também. Tudo isso é resultado de menos consumo. Se sobrou algum dinheiro no fim do mês e dadas as incertezas, as pessoas preferiram poupar em algo que tem rentabilidade pífia, mas risco muito pequeno”, avalia Simone Pasianotto, economista-chefe da Reag Investimentos.
Izis Ferreira, economista da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), concorda: quem tem folga no orçamento doméstico e tem possibilidade de guardar dinheiro, mais do que nunca está poupando.
“Há muita incerteza em relação à evolução da pandemia, de questão de saúde mesmo. Não é uma crise de ativos, do valor de face do dinheiro, é um tipo de ameaça à vida. As pessoas temem uma segunda onda, se precisarão de dinheiro para tratamento e medicamentos ou mesmo para subsistência no futuro. Quem tem folga agora, está poupando”, avalia.
Mas não são todos que conseguem essa folga. Embora muitas pessoas que perderam o emprego ou tiveram alguma redução de renda – provocada por suspensão do contrato ou redução de jornada de trabalho, por exemplo – tenham sido socorridas pelo governo, muitas famílias tiveram de se endividar para superar esse momento.
Em julho, o percentual de famílias com dívidas ativas chegou a 67,4%, maior proporção já verificada na Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), feita mensalmente pela CNC desde 2010. Do total de famílias, 26,3% têm dívidas ou contas em atraso, e 12% admitem que não terão condições de pagar.
Entre as famílias com renda de até dez salários mínimos mensais (cerca de 80% do total), 69% estão endividadas, maior nível da série histórica, e 29,7% têm dívidas ou contas atrasadas. A situação é mais confortável para as famílias com renda superior a dez salários mínimos – 59,1% delas estão endividadas e 11,2% têm contas ou dívidas atrasadas.
Na avaliação de Izis, ainda que a trajetória de endividamento fosse anterior à pandemia, é possível fazer a correlação de que os mais ricos estão conseguindo poupar mais. As famílias de menor renda, por sua vez, estão trocando dívidas mais caras por outras mais baratas, apostando em renegociação, indicando que precisam desses recursos para o consumo de produtos e bens essenciais.
“A renda, que foi prejudicada com essa crise, está dedicada ao consumo de produtos essenciais nas famílias mais pobres e nas mais ricas também. O que é supérfluo fica para depois”, observa.
Poupança estimula, mas não garante retomada
O potencial para essa poupança estimular a economia na retomada das atividades econômicas não é certo. Enquanto parcela da população estará ávida por consumir, outro tanto ainda terá de lidar com dívidas.
O ritmo da retomada, com flexibilização do isolamento social e retorno gradual de atividades – especialmente no setor de serviços –, vai ajudar a mensurar a volta da confiança de empresários e consumidores.
O acúmulo de recursos é importante porque, em um momento de maior segurança, é o que vai motivar o consumidor a gastar. “O problema é que isso é um fomento de curtíssimo prazo e pode não dar andamento do consumo como crescimento sustentável. Essa poupança foi gerada pelo não consumo de serviços, pela atrofia do setor. Com a flexibilização do isolamento social, o setor de serviços vai abrir as portas e esse dinheiro volta para lá”, avalia Simone Pasianotto, da Reag Investimentos.
Para ela, esse dinheiro pode até ser uma faísca para induzir o crescimento econômico ao longo deste semestre e durante o primeiro trimestre de 2021, quando famílias que tiverem algum recurso usarão em atividades de turismo e passeios. “É um estímulo de curto prazo, e o efeito multiplicador é restritivo.”
Para Izis Ferreira, da CNC, ainda que essa liquidez da poupança ajude, ela não resolverá sozinha o problema da recuperação econômica brasileira. Essa retomada vai depender do perfil anterior da família.
Aquelas que já conseguem poupar seguirão economizando – e a economista aposta em mais recordes de captação líquida da poupança nos próximos meses, impulsionada pelas famílias mais ricas. Assim que se sentirem seguras e retomarem as atividades, essas famílias voltarão a gastar.
“Quando isso acontecer, e as pessoas puderem reverter a poupança para consumo de produtos ou serviços, essa liquidez pode impactar positivamente na economia. Mas o comportamento do consumidor está muito associado ao tratamento mais incisivo da doença. Sem resposta concreta de como conter o vírus, esse comportamento não vai mudar”, pondera.
Na outra ponta, as pessoas que já têm uma renda menor e estão pressionadas por dívidas possivelmente serão as mais vulneráveis à instabilidade do mercado de trabalho. “As pessoas nessa faixa de renda vão postergar as decisões de consumo mais caras por já estarem endividadas e pelo temor do emprego no futuro”, avalia.
A economista ressalta que para essa parcela da população, o nome é o principal ativo, o que deve motivá-las a sair da inadimplência o quanto antes.
Conteúdo editado por: Fernando Jasper