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A medida provisória que privatiza a Eletrobras, cujo texto foi aprovado na Câmara dos Deputados e nas próximas semanas será analisado pelo Senado, vem com a promessa de alívio da tarifa de energia elétrica aos consumidores residenciais – que, historicamente, têm sofrido com disparidades do mercado. Relator da proposta na Câmara, Elmar Nascimento (DEM-BA) diz que "todas as medidas possíveis" para viabilizar boas condições tarifárias teriam sido adotadas e que, portanto, não há expectativa de impactos negativos. Mas a promessa pode ser difícil de prosperar.
As condições estabelecidas pela MP apontam para efeitos de curto, médio e longo prazo que podem acabar aumentando o custo da energia elétrica no Brasil, além da possibilidade de inviabilizar o processo de privatização. Especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo avaliam que, no fim das contas, os benefícios prometidos aos consumidores não compensariam o ônus.
Um primeiro fator que deve resultar no encarecimento da tarifa é a saída da Eletrobras do sistema de cotas, criado em 2013, no governo de Dilma Rousseff (PT), com o objetivo de diminuir o valor da tarifa de energia. Nele, a geradora recebe uma tarifa fixa pela operação e manutenção, definido pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Muitos especialistas consideram que o regime prejudicou a Eletrobras, que teria sido obrigada a produzir energia por uma remuneração insuficiente. Com a empresa abandonando o regime após a privatização, novos contratos terão liberdade para vender energia pelo valor de mercado.
O relator defende, contudo, que a "descotização", além de aumentar a atratividade da empresa para o setor privado, possibilitará a "consolidação de premissas" para um mercado mais competitivo e para o aumento da liberdade de escolha do consumidor de energia.
Essa liberdade de escolha, no entanto, só existe hoje para grandes consumidores (indústrias, por exemplo), que têm a opção de migrarem do mercado regulado – também conhecido como "cativo" – para o mercado livre, onde os contratos são fechados diretamente com as geradoras.
Para residências e grande parte do comércio e da indústria de pequeno porte, não existe opção: todos compram obrigatoriamente a energia da concessionária de sua região, cujos valores são definidos pela Aneel. E a MP da Eletrobras não altera essas condições.
Recursos para CDE não compensam custo com térmicas a gás e PCHs
Para obter esse alívio tarifário aos consumidores cativos, a MP destina uma série de recursos ao mercado regulado.
Pelo menos R$ 25 bilhões oriundos da privatização – isto é, da venda de novas ações que serão emitidas pela Eletrobras na Bolsa de Valores – devem ir para a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), um fundo voltado ao custeio de políticas públicas e alívio das tarifas e para o qual contribuem as distribuidoras. Cerca de 75% do superávit financeiro da Itaipu, estimado em US$ 1 bilhão ao ano, também iriam para a CDE, segundo o relatório aprovado na Câmara.
Porém, outra proposta do relator na Câmara, apresentada como mais segura frente aos baixos índices pluviométricos em reservatórios e o possível colapso de energia em algumas regiões, pode implicar custos adicionais nas contas de luz.
Da forma como foi aprovada pelos deputados, a MP obriga o setor a contratar, em leilões a serem realizados nos próximos anos, 6 mil megawatts (MW) de potência de usinas termelétricas movida a gás natural nas regiões Centro-oeste, Norte e Nordeste, além de 2 mil MW oriundos de pequenas centrais hidrelétricas (PCHs).
Os próximos leilões A-5 e A-6 (que negociarão energia a ser entregue, respectivamente, a partir de cinco e seis anos após a realização de cada leilão), deverão garantir para as PCHs ao menos 50% da demanda das distribuidoras, para que atinjam a negociação total de 2 mil MW. Depois de atingir esses valor, a participação mínima das PCHs cai para 40% em cada leilão.
O problema, nesse caso, é a obrigação de que as termelétricas sejam construídas em locais predeterminados. Isso tende a encarecer a conta de luz, pois os gasodutos que terão de ser construídos para abastecer essas usinas vão encarecer os projetos – e os custos vão acabar na tarifa, ou seja, serão bancados pelo consumidor.
Além de ser tido por alguns analistas como assunto "estranho" à privatização da Eletrobras e sem sentido econômico, o tema foi rejeitado recentemente pelo Congresso na apreciação da chamada "nova lei do gás natural", marco regulatório do setor, sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro no início de abril.
"Para uma solução de racionamento e para a situação crítica de esvaziamento de reservatórios, as termelétricas ideais não seriam essas, mas as que já estão em condições de operação num período mais curto. Seria mais interessante construir usinas onde já existe oferta de gás. Seja pela ideia de ter termelétricas espalhadas pelo país ou pela emergência, a proposta não tem sentido", afirma Luciano Losekann, professor no Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e no Grupo de Economia da Energia e Regulação (Gener).
Os recursos para a CDE, portanto, não compensariam os custos com o incremento das termelétricas a gás natural e PCHs. Seria como, por exemplo, uma situação em que, sob bandeira vermelha, um consumidor que paga R$ 300/mês de energia elétrica tivesse um aumento de cerca de 7% no valor final da tarifa, passando a pagar R$ 320. Os recursos destinados à CDE abateriam R$ 10, não significando um "alívio" de grande relevância na ponta consumidora.
Na avaliação de Joísa Dutra, diretora do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da FGV (Ceri/FGV), o argumento, "liquidamente", não funciona. "Se é para beneficiar o consumidor, por que a MP, na sua conversão, vai escolher investimentos ruins? Os caminhos para beneficiá-lo estavam na proposta inicial, já com compensação", diz. "É óbvio que queremos PCHs e contratação de usinas termelétricas que nos ajudem a dar ao sistema condições nobres de política energética, de segurança, de suprimento. Mas não entendo que isso caiba na destinação dos recursos da capitalização da Eletrobras."
Para Adilson de Oliveira, doutor em Desenvolvimento Econômico pela Universidade de Grenoble e professor no Colégio Brasileiro de Altos Estudos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por outro lado, apesar de duramente criticado, o conceito de oferecer garantias regionais de suprimento energético deve ser debatido com mais atenção. Segundo ele, é preciso que as regiões tenham capacidade local de abastecimento, sem ficar na dependência dos reservatórios nacionais.
"Quem está abastecendo o Sul é o Norte do Brasil. Se acontecer alguma coisa nesse limiar que leva a energia, o Sul ficará sem. Estamos falando em uma distância de 4 mil km. Nos EUA não se pensa em algo desse natureza. O Texas jamais aceitaria ficar dependente da energia do Canadá, por exemplo", diz o especialista.
Outra medida prevista na MP e que deve impactar o custo da energia é a prorrogação dos contratos do Programa de Incentivos às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa) por 20 anos. Na prática, isso significa renovar a concessão de energia "velha" por custos superiores ao de energias "novas".
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Setor elétrico precisa de atualização
O comprometimento do superávit da Itaipu e das verbas oriundas da privatização alocadas na CDE, na visão dos analistas, atendem a interesses de curto prazo, em especial o da situação financeira do governo federal.
Para eles, os recursos vindos da privatização poderiam ser mais bem investidos, indo para a promoção da transformação do setor de energia elétrica do país. O dinheiro poderia atender, por exemplo, a demandas relacionadas a novos instrumentos de transmissão energética, ao surgimento de novas fontes, ao incentivo à energia solar, à promoção da entrada de renováveis, à necessidade de melhoria dos reservatórios etc.
"É preciso reorganizar o sistema elétrico. E, na minha perspectiva, isso precisa ser feito ainda antes da privatização. Problemas não estudados agora vão acontecer lá na frente e alguém vai ter que resolver", diz Oliveira. Um dos dilemas atuais é relativo às usinas termelétricas, que ajudam a abastecer o país em momentos de falta de chuvas. Hoje há pelo menos 24 mil MW de potência térmica inscritos na Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) para serem operados. Mas apenas 17 mil MW podem ser de fato acionados, já que aos demais faltam condições para atender a demanda e gerar energia – não há linha de transmissão ou disponibilidade de combustível, por exemplo.
"O sistema elétrico é muito importante para ficar subordinado a problemas de curto prazo. É relevante discutir sobre o que fazer com o excedente, mas isso deveria ter sido feito de forma mais responsável e com maior participação da sociedade, para atingir melhor o interesse público", diz o professor da UFRJ. "Estamos na seguinte situação: vamos privatizar para depois saber se haverá resultado. Não se sabe no que vai dar. Não dá para pedir que o Congresso faça uma reforma no setor elétrico. É preciso ter uma proposta na mesa, concretamente."
O especialista vai mais a fundo e sugere, ainda, que na discussão sobre a privatização pouca atenção está sendo dada à questão do uso da água. "A água é muito mais importante para vários outros usos do que para geração de energia elétrica, que possui outras alternativas. Mas esse tópico tem passado despercebido dos debates. Na minha perspectiva, por exemplo, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) é que deveria se ajustar ao que a Agência Nacional de Águas (ANA) propõe, e não o contrário", diz.
Investimento em projetos de revitalização não têm caráter de "política pública"
Pelo menos R$ 8 bilhões oriundos da privatização serão destinados à revitalização de programas regionais, segundo prevê a MP. O Ministério de Minas e Energia será responsável pela gestão e definição dos projetos. Serão beneficiárias: a bacia do Rio São Francisco, os reservatórios de Furnas, a bacia do Rio Parnaíba e o Rio Madeira.
A medida, apesar de uma política "justificada", foi vista como estratégia para angariar apoio político ao processo de privatização da Eletrobras e amenizar resistências nas regiões Norte e Nordeste, sobretudo.
"É fundamental recuperar os reservatórios, mas será que é a prioridade nacional? São pontos que têm mérito, mas o método mais adequado para se discutir a política não seria esse", afirma Luciano Losekann. "E, além de tudo, parece muito como se fosse um benefício, mas, na verdade tem um custo. Quando se destina recursos de um lado, está tirando de outro. O ônus fica na tarifa."