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Destino

Para onde vai o dinheiro que o governo pretende arrecadar com as privatizações

Governo espera privatizar Eletrobras em 2022. (Foto: Divulgação)

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O governo do presidente Jair Bolsonaro, que tinha como meta vender dezenas de estatais e subsidiárias até o fim do mandato, ainda não conseguiu privatizar nenhuma empresa de controle direto. De acordo com o 16º Boletim das Empresas Estatais Federais, com base em dados do 4.º trimestre de 2020, existem 187 estatais federais, das quais 46 são diretamente controladas pela União.

Embora ainda não tenha sido concluído, o processo de privatização de pelo menos uma grande estatal já está bem encaminhado. O governo já obteve a autorização do Congresso e espera vender a Eletrobras no início de 2022.

O Planalto também pretende privatizar os Correios no ano que vem. Nesse caso, no entanto, ainda depende da aprovação legislativa – esperada para novembro – e da definição de pendências no Judiciário. Mais recentemente, o presidente revelou ter vontade de privatizar a Petrobras, e fontes do governo admitem que um projeto de lei está sendo preparado para isso.

Mas se e quando essas privatizações forem concluídas, para onde vão ou podem ir os recursos obtidos com as vendas?

Lei proíbe gastar dinheiro de privatizações com despesas correntes

Não existe na Constituição a determinação de qual deve ser o destino desses recursos. Mas, em seu artigo art. 44º, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) – tida como o principal marco regulatório dos gastos públicos – define que o governo só pode utilizar receitas oriundas da alienação de bens e direitos para financiar as chamadas despesas de capital.

Isso significa que a arrecadação das privatizações deve ser usada exclusivamente em investimentos públicos na ou amortização da dívida pública. Segundo dados do Tesouro Nacional, a Dívida Pública Federal (DPF) ultrapassa os R$ 5,3 trilhões.

A LRF, portanto, veda a aplicação de recursos oriundos da alienação de patrimônios públicos – a venda de estatais, por exemplo – para o financiamento das chamadas "despesas correntes". Isto é, os gastos do dia a dia.

Fazem parte dessa categoria, por exemplo, despesas com pessoal, aquisição de bens de consumo, serviços de terceiros, manutenção de equipamentos, despesas com água, energia, telefone e demais pagamentos que estejam relacionados ao custeio da máquina pública. Gastos com programas sociais, como o Auxílio Brasil, substituto do Bolsa Família, também são considerados "correntes".

Há uma única exceção. A LRF permite o uso do dinheiro de privatizações em apenas uma despesa corrente bem específica: o pagamento de benefícios previdenciários, tanto no regime geral de Previdência (o INSS) quanto no regime dos servidores públicos. Mas essa autorização não é genérica: para usar o dinheiro na Previdência, é preciso que esse destino esteja previsto em uma lei específica.

Leonardo Ribeiro, economista e analista do Senado Federal, explica a situação utilizando o exemplo do orçamento doméstico. "É como se você vendesse ou liquidasse o investimento ou ativo que tem, pegasse esse dinheiro e gastasse com uma viagem, com conta de luz, água", afirma. Do ponto de vista das financias públicas e da economia, isso fere a chamada "regra de ouro".

O ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou recentemente que o plano do governo em dez anos é privatizar as estatais de maneira "irrestrita", incluindo a Petrobras e o Banco do Brasil. A meta até o fim de 2021, segundo o governo federal, é privatizar 115 bens públicos, com potencial de arrecadação de R$ 367 bilhões.

Como lembra a economista Juliana Inhasz, professora do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), o governo pode realizar uma privatização para aumentar a concorrência e dar mais dinamismo a determinado setor ou, simplesmente, porque precisa ter caixa. "Já que ele está perdendo patrimônio, é importante que esse recurso seja aplicado de uma forma produtiva. O ideal seria que, de fato, o recurso fosse para investimentos e formas de tornar a economia mais produtiva", diz.

Se o país "queimar" patrimônio hoje com despesas correntes, que crescem e são elevadas, perde a possibilidade de ter algum tipo de "colchão". "Bem ou mal, essas empresas representam algum tipo de segurança na economia, na medida em que são recursos que, quando bem geridos, podem ajudar a sociedade", afirma.

O resultado líquido das estatais federais variou bastante nos últimos anos. Segundo o Boletim das Empresas Estatais Federais, o lucro líquido apurado nos últimos exercícios foi de:

  • R$ 4,4 bilhões em 2016;
  • R$ 24,9 bilhões em 2017;
  • R$ 71,3 bilhões em 2018;
  • R$ 101,9 bilhões em 2019; e
  • R$ 60,6 em 2020.

O que o governo pretende fazer com os recursos da Eletrobras

A primeira e única grande proposta – considerando as empresas de controle direto da União – de privatização aprovada na gestão do presidente Jair Bolsonaro foi a da Eletrobras. A MP que autoriza a venda foi aprovada no Parlamento em 21 de junho. E, se a expectativa da União se concretizar, a operação deve ser finalizada em janeiro de 2022.

O governo espera que a privatização da Eletrobras gere uma arrecadação de R$ 100 bilhões aos cofres públicos. Ela ocorreria da seguinte forma: R$ 20 bilhões viriam da chamada "outorga à vista", isto é, a oferta primária – emissão de novas ações da Eletrobras, a serem adquiridas pelo setor privado, processo chamado de "capitalização"; e R$ 80 bilhões em oferta secundária de ações – ou seja, a venda de papéis que hoje estão em poder da União, a ser feita após a capitalização.

Até o momento, o governo esclareceu o destino de parte dos recursos da privatização. O detalhamento deve ocorrer após os estudos do BNDES. Os recursos serão divididos da seguinte maneira: R$ 3,5 bilhões em 10 anos vão para a revitalização dos recursos hídricos das bacias do Rio São Francisco e do Rio Parnaíba; R$ 2,95 bilhões em 10 anos serão destinados à diminuição do custo de geração de energia na Amazônia Legal e melhoria na navegabilidade do Rio Madeira e do Rio Tocantins; R$ 2,3 bilhões em 10 anos para a revitalização dos recursos hídricos das bacias hidrográficas na área de influência dos reservatórios das usinas hidrelétricas de Furnas; e R$ 28,8 bilhões para a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE).

Nas projeções do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) 2022, entregue ao Congresso Nacional em agosto, o governo foi conservador e decidiu não levar em conta na peça orçamentária as eventuais receitas com a privatização da Eletrobras. "Se [a privatização] vier ano que vem, será surpresa positiva e melhoraria a projeção do resultado primário", disse Bruno Funchal, secretário especial do Tesouro, em entrevista coletiva.

"O governo tem se mostrado, em alguns aspectos, muito tradicional no Orçamento. Não colocar essa receita, por um lado, é bom, porque ele consegue trabalhar com o que de fato ele tem. Essa privatização pode sair ou não", diz a professora do Insper.

Para além da Eletrobras, o Executivo também espera que a proposta de desestatização dos Correios avance no Congresso ainda este ano. A privatização já foi autorizada na Câmara dos Deputados. No Senado, onde a proposta tramita agora, o debate deve ser mais acalorado, mas o governo conta com a aprovação já em novembro.

O projeto autoriza a venda dos Correios em um leilão e, pelo calendário do BNDES, deveria ter sido aprovada até o fim de agosto para que o certame pudesse ser realizado em abril de 2022. Se alterada, a proposta volta à Câmara.

Até o momento, o governo não informou quanto espera arrecadar com a privatização dos Correios e nem onde investirá os recursos oriundos da desestatização.

No caso dessa estatal, segundo Ribeiro, parte do dinheiro envolvido na desestatização poderia ser gasto em despesas correntes – mais especificamente, os recursos obtidos com a concessão dos serviços postais. Isso porque, além de autorizar a privatização da empresa (cuja arrecadação não pode ser usada em gastos do dia a dia, segundo as regras da LRF), o projeto de desestatização também determina que os serviços postais serão concedidos à companhia que comprar os Correios.

"A discussão em torno da privatização dos Correios é ter mais eficiência, redução de gastos etc. Mas, apesar de se ter esse pano de fundo, no geral, o governo está fazendo porque precisa de dinheiro", opina Juliana Inhasz.

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Outras propostas

O governo estuda um outro destino para as receitas obtidas com privatizações. Na PEC que prevê o parcelamento dos precatórios da União, o governo propôs, entre outras coisas, a criação de um fundo de liquidação de passivos, de propriedade exclusiva da União, e que estará sujeito às regras de controle da administração pública – como do Tribunal de Contas da União (TCU) e Controladoria Geral da União (CGU). Esse fundo serviria para bancar os precatórios parcelados e dívidas ativas fora do teto de gastos.

Ele seria composto, segundo a PEC, por recursos oriundos da "alienação de imóveis da União, da alienação de participação societária de empresas, dividendos recebidos de empresas estatais deduzidas as despesas de empresas estatais dependentes, da outorga de delegações de serviços públicos e demais espécies de concessão negocial, da antecipação de valores a serem recebidos a título do excedente em óleo em contratos de partilha de petróleo e da arrecadação decorrente do primeiro ano de redução de benefícios tributários".

No caso de uma PEC, todas as regras relativas ao destino do dinheiro da privatização seriam afastadas, pois a Constituição está acima da LRF. "Estamos falando de dispositivos que estão em lei infraconstitucionais. São importantes. Mas a PEC pode dizer que nada disso vale. Isso seria péssimo. A Constituição do país estaria violando dispositivos que se referem à responsabilidade fiscal, responsabilidade no uso dos recursos públicos", explica Leonardo Ribeiro.

O governo também chegou a cogitar destinar parte dos recursos das privatizações ao Auxílio Brasil, novo programa de transferência de renda que substitui o Bolsa Família. O ministro da Economia, Paulo Guedes, insistiu na ideia de "devolver as estatais ao povo brasileiro". No entanto, a proposta esbarra na LRF, que proíbe a utilização dessas receitas com gastos correntes, nos quais se enquadra o programa social.

Ribeiro lembra que o movimento do governo de privatização não pode ser considerado um "esforço fiscal". Esse entendimento não está definido por lei, mas faz parte do que os especialistas conhecem como manual de estatísticas fiscais do Banco Central, órgão que divulga o resultado fiscal do governo olhando para a variação da dívida pública. Por outro lado, podem ser considerados esforços fiscais ações como redução de despesas ou aumento de tributos.

"Quando há privatização, esses créditos ou até dinheiro que entra no caixa do Tesouro não são considerados esforços fiscais. O que o governo fez foi simplesmente vender bens e direitos, mas não promoveu um esforço fiscal", afirma o especialista.

Isso significa, portanto, que os recursos das privatizações não abrem espaço no teto para gastos com programas sociais – a exemplo do Auxílio Brasil – ou salários, por exemplo.

"Privatizações podem ser considerados ajustes que promovem a redução da dívida pública sem abrir espaço para gastos tradicionais do Orçamento. A privatização está muito associada à redução de gastos. E não aumento de gastos. O que vemos, porém, é o governo com propostas para usar os recursos da privatização para criar um programa social. Isso não pode, de forma nenhuma. Para criar esses programas, precisa do esforço fiscal, seja aumentando impostos ou reduzindo despesas, mas não usando recursos da privatização", explica.

Se destinar os recursos para programas sociais ou outras despesas correntes, o governo poderá incorrer em crime de responsabilidade. Em declarações à imprensa, Guedes chegou a afirmar que o governo pretendia utilizar 8% dos recursos arrecadados para abater a dívida pública e 20% para programas sociais. Mas a ideia não prosperou, ao menos por ora.

Guedes falou várias vezes, desde o ano passado, em destinar parte das receitas de privatização aos mais pobres. Voltou a repetir a ideia dias atrás, ao comentar que o governo poderia vender parte de suas ações na Petrobras e outras estatais e pôr o dinheiro em fundo que depois destinaria recursos a beneficiários de programas sociais. Esse fundo também seria composto por parte dos dividendos de estatais que continuarem controladas pela União.

Embora Guedes mencione tal intenção há mais de um ano, em nenhum momento a proposta foi formalizada pelo governo.

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