Lideranças petistas assumiram, no último fim de semana, a intenção de abrir as torneiras dos cofres públicos e sacrificar a meta fiscal para ganhar as próximas eleições municipais e permanecer 20 anos no poder. A estratégia foi explicitada no sábado (9), em Brasília, durante a conferência eleitoral do partido para 2024.
“Eu estava conversando com a presidente [do PT] Gleisi [Hoffmann] que, se tiver que fazer déficit, vamos ter que fazer. Senão a gente não ganha a eleição em 2024. É claro que o governo Lula tem uma responsabilidade fiscal, mas temos um problema”, disse o líder do governo na Câmara, deputado José Guimarães (PT-CE).
A presidente do partido, deputada Gleisi Hoffmann (PT-PR), reafirmou a tese em seu discurso aos militantes e pré-candidatos do partido presentes ao evento. Ela pregou um rombo de até 2% do Produto Interno Bruto (PIB) nas contas públicas para "não deixar a economia desaquecer".
Defendendo empenho para eleger vereadores e prefeitos em 2024 e fortalecer o PT no Congresso mais adiante, Gleisi disse que o partido "não pode correr risco". "Se nós errarmos, se nós tivermos problema, quem volta é a extrema-direita", afirmou.
"Do ponto de vista econômico, o instrumento que temos hoje para usar é a política fiscal", prosseguiu Gleisi, dirigindo-se ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, sentado perto dela. "Para mudar a realidade do país, a gente vai precisar de, pelo menos, 20 anos para fazer tendência histórica", completou.
As declarações, embora previsíveis em época de eleição, chamaram atenção por serem tão explícitas no uso do dinheiro público para fins eleitorais.
"Ele estão achando que vão contar com a ignorância do povo, né? Porque estão dizendo, olha, nós vamos é comprar a eleição. Com o dinheiro dos seus impostos. De forma descarada, infelizmente", afirma o deputado Gilson Marques (Novo-SC).
Para Marcelo Faria, presidente do Instituto Liberal de São Paulo (Ilisp), além do uso político do dinheiro do contribuinte, a estratégia, recorrente nas gestões do partido, no longo prazo representa um tiro no pé.
"A política do PT sempre foi de gastar. Com a eleição, o déficit vai aumentar e as consequências vão chegar no bolso das pessoas, por meio da inflação e juros altos. O fiscal vai deteriorar e a população vai sentir. Em economia, a conta sempre chega. Pode demorar, mas chega", afirma o economista.
"Tem contas que estamos pagando até hoje, como a do setor elétrico", acrescenta, referindo-se a políticas equivocadas do governo Dilma Rousseff (PT), que culminaram na profunda recessão iniciada no fim de 2014.
Quando há déficit primário, como querem as lideranças petistas, significa que o governo gasta mais do que arrecada em impostos – e isso antes mesmo de pagar os juros da dívida. Em outras palavras, o Estado precisa pegar dinheiro emprestado para bancar suas despesas, o que leva a mais endividamento. À exceção de 2022, o governo federal tem registrado déficits primários desde 2014, no governo Dilma, que apostou em aumento de gastos e concessão de subsídios para fazer a economia crescer a qualquer custo.
Quando um governo deficitário sinaliza não ter compromisso com a busca do reequilíbrio das contas públicas, a percepção de risco aumenta e os investidores que o financiam passam a cobrar mais caro para emprestar dinheiro – o que por si só eleva os juros futuros, independentemente da atuação do Banco Central, e ao mesmo tempo desencoraja o BC a promover cortes mais fortes na taxa de curto prazo, a Selic.
Contraditoriamente, os mesmos petistas que pregam mais gasto e mais déficit público atacam o BC por não reduzir a taxa básica de juros na velocidade em que eles gostariam (leia mais abaixo).
Gleisi e Haddad em lados opostos na política econômica
A estratégia defendida por Gleisi Hoffmann e José Guimarães vai contra a decisão do governo de manter – ao menos por enquanto – a meta fiscal de déficit zero para 2024, prevista no arcabouço fiscal.
O embate sobre o tema dentro do PT consumiu todo o segundo semestre. Em outubro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) chegou a anunciar que poderia flexibilizar a meta, pressionado pela ala do partido liderada por Gleisi e o deputado Lindbergh Farias (PT-RJ).
A proposta defendida pelas lideranças mais à esquerda era de que o governo adotasse um déficit de ao menos 0,5% do PIB na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Haddad conseguiu vencer a disputa e convenceu Lula a manter o objetivo de déficit zero por ora.
Durante o evento do fim de semana, em meio às discussões, Gleisi fez críticas diretas ao ministro da Fazenda sobre a insistência na perseguição da meta. “Para mim, faria um déficit de 1%, de 2% [do PIB]. Não podemos deixar a economia desaquecer. Não podemos ter contingenciamento no Orçamento, nem de investimento, nem nos programas sociais. Isso que vai dar condição de colocarmos a economia no eixo", disse. "É o Estado forte, é o Estado indutor, é o Estado que gasta", prosseguiu.
O ministro rebateu, dizendo que "déficit aparece em momento de desaceleração econômica" e "não gera crescimento". Haddad citou rombos recentes que não necessariamente resultaram em aquecimento da economia.
No domingo (10), o deputado federal Lindbergh Farias (PT-RJ) saiu em defesa de Gleisi, sua namorada, e rebateu a declaração do ministro.
“De fato, déficits aparecem com mais frequência em momentos de desaceleração econômica. Agora é inquestionável que estímulos fiscais em situações de baixo crescimento como devemos enfrentar em 2024 tem sim um papel enorme no crescimento do PIB. Meta de déficit zero em 2024 pode levar a um contingenciamento de 53 bi em obras do PAC. Vamos cortar Minha Casa, Minha Vida? Cortar investimentos públicos?”, escreveu Lindbergh no X (antigo Twitter).
Lindbergh chegou a apresentar duas emendas à LDO, uma autorizando déficit de 0,75% do PIB no ano que vem e outra permitindo saldo negativo de até 1% do PIB. As propostas não prosperaram.
Debate expõe descompromisso com a responsabilidade fiscal
Para o economista Claudio Shikida, do Instituto Millenium, o debate explicitou "tudo o que não se gostaria de ver" em termos de responsabilidade fiscal.
"Você tem um arcabouço fiscal que é bem frágil. A gente percebeu desde o primeiro semestre que ele é bem mais frágil para conter gasto do que a gente imaginava. Tem um ministro da Fazenda com uma proposta de pouca solidez. E tem um partido desse próprio ministro que traz uma proposta de modelo econômico que já se provou um problema, do Estado indutor da economia", salienta.
Para Shikida, o Estado indutor é ineficiente por definição. "Ele [o Estado] pode até regular alguma atividade, sem intervenção. Mas induzir o crescimento econômico não dá certo, sobretudo se o governo não puder se financiar sem sufocar a atividade privada. Precisa ter capacidade de pagamento, o que não temos", avalia.
Por outro lado, ressalta o economista, não se vê nenhum empenho em deixar o ambiente de negócios mais saudável e propício aos investimentos da iniciativa privada.
"Você não ouve falar em melhoria de gestão para um Estado mais eficiente, tornar a máquina pública mais eficaz, menos burocrática. Nem da reforma administrativa para cortar gastos. Tem uma secretaria para o tema, mas ninguém sabe o que faz. Você só ouve falar em gastar", diz.
A lógica eleitoral, segundo Shikida, cria um ciclo perverso. "O poder público se financia para ganhar o pleito e passa todo o mandato tendo que segurar as contas para pagar o que gastou. Ou deixa a dívida para os governos seguintes", afirma.
Faria, do Ilisp, lembra que antes mesmo de assumir Lula articulou a aprovação da PEC da Transição, para "poder gastar mais".
"A ideia do Estado 'gastador', como admitiu a Gleisi [Hoffmann] é assegurar a conquista do poder, e depois ver como resolve. Normalmente, a conta sobra para um governo mais liberal, que vai tomar a medida impopular para resolver o problema criado pelo governo de esquerda gastadora anterior. Como na Argentina agora", diz Faria, citando a eleição do libertário Javier Milei à presidência.
Na avaliação de Faria, o atual governo está tendo uma "folga" para gastar, em parte, devido à situação fiscal herdada do governo anterior, com as medidas liberais de controle de gastos e de privatização. "A próxima herança será de maior déficit", diz.
O deputado Gilson Marques resume a lógica petista. "Eles não pensam nas próximas gerações, mas nas próximas eleições. Têm a falsa ideia de que a política, o Estado, é indutor da economia. Só que para isso, é precisa ter recursos. O Estado não gera riqueza, só tira dinheiro da população em uma quantidade cada vez muito maior. E os contribuintes continuam pagando o intermediário [Estado] que não para de crescer", afirma o parlamentar do Novo.
Críticas ao Banco Central unem o partido
As divergências entre as alas do PT sobre a meta fiscal convergem para o consenso quando se trata da atuação do Banco Central.
Gleisi salientou, em sua fala na conferência eleitoral, que o governo não pode "ficar na mão do Banco Central, na mão desses liberais de mercado" e acusou o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, de “sabotar o país”.
Haddad, por sua vez, caracterizou a atual diretoria do Banco Central como “durona” e pouco “arejada”. “A diretoria do BC começou a reduzir a taxa de juros só em agosto”, destacou.
Em texto aprovado pelo Diretório Nacional na sexta-feira (8), o partido defende a necessidade de o Brasil “se libertar urgentemente da ditadura do Banco Central ‘independente’ e do ‘austericídio fiscal’” para o governo ter condições de aumentar os gastos públicos e incrementar a economia do país.
As críticas ao BC são rechaçadas por economistas ouvidos pela Gazeta do Povo. Claudio Shikida afirma que, graças à política do Banco Central, a queda da inflação foi mais rápida que se esperava. "A política monetária do BC sempre foi muito correta. Não diria nem liberal, apenas correta para preservar o valor da moeda", afirma.
Marcelo Faria acredita que Gleisi e o PT deveriam agradecer a Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central. "Se dependesse do PT, ele já tinha 'canetado' a taxa de juros para muito mais baixo para dar aquele incentivo na economia e facilitar a vida do governo. Só que a gente sabe que o efeito disse longo prazo é inflação", diz.
Centrão e jogo de forças no Congresso
No documento aprovado, proposto pela corrente “Construindo um novo Brasil”, mesma tendência de Lula, o PT critica o Centrão, grupo político de partidos com que o governo formou aliança para conseguir aprovar projetos no Congresso.
Para o PT, o Centrão é composto por forças “conservadoras e fisiológicas” e foi fortalecido “pela absurda norma do orçamento impositivo num regime presidencialista”. Em setembro, Lula trocou o comando dos ministérios do Esporte e de Portos e Aeroportos para acomodar o Republicanos e o PP no governo.
O perfil conservador do Congresso é também assunto de preocupação petista. O partido diz que o seu “campo político” é minoritário no Congresso e afirma ser “urgente” alterar a correlação de forças.
A presidente do partido disse aos militantes que as eleições municipais de 2024 serão definidoras para "o futuro do partido no Congresso Nacional porque pode fortalecer candidaturas a deputados federais e senadores".
O ministro Haddad vem enfrentando dificuldades para aprovação das medidas de seu interesse, em especial as que visam aumentar a arrecadação para zerar o déficit em 2024.
O governo corre contra o tempo para a aprovação das pautas antes do recesso do Congresso, em 23 de dezembro, data-limite para as votações. “Não temos uma base progressista no Congresso. Não estou falando mal ou bem, estou constatando um fato”, disse Haddad na conferência.
Alexandre Padilha (PT-SP), ministro das Relações Institucionais, também participou do evento e destacou a importância das eleições de 2024 para fortalecer a base do governo. “Se a gente quiser mudar a realidade do Congresso Nacional, precisamos pensar a eleição municipal dessa forma e eleger lideranças [em 2024]”, disse.
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