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Resumo desta reportagem:
- Lula questiona no STF pontos da privatização da Eletrobras, que passou ao controle privado em junho de 2022
- Desde a eleição, ações ordinárias caíram quase 30%
- A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, diz que posição do partido é pela retomada da empresa "como ela era"
- Nos governos petistas, Eletrobras acumulou histórico de prejuízos, ineficiência e episódios de corrupção
No mesmo dia em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) entrou com ação no Supremo Tribunal Federal (STF) questionando dispositivos da lei que autorizou a privatização da Eletrobras, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, afirmou que a posição do partido é pela retomada da empresa "como ela era".
A Eletrobras deixou de ser controlada pela União em junho de 2022, no governo de Jair Bolsonaro (PL). Crítico da iniciativa, Lula venceu a eleição quatro meses depois, prometendo rever o processo de privatização e defendendo uma retomada do protagonismo que as estatais tiveram nos governos do PT.
“Não temos condição de fazer desenvolvimento no Brasil sem uma empresa como a Eletrobras controlada pelo Estado brasileiro”, disse Gleisi ao "Valor Econômico".
Responsável por 23% da capacidade de geração de energia do país, a companhia deixou de ter controle estatal após um histórico de prejuízos, ineficiência e episódios de corrupção nos governos petistas anteriores. A possibilidade de volta da Eletrobras a condição de “como ela era” já fez com que as ações ordinárias da empresa caíssem quase 30% desde a eleição de Lula.
“Na época da capitalização da Eletrobras, os investidores enxergaram o potencial do papel com uma gestão mais eficiente, sem o controle do governo”, diz o economista Bruno Monsanto, sócio da RJ+ Investimentos. “A ação também foi precificada com esse horizonte. Agora, o governo quer aumentar seu poder de voto e influência na empresa, podendo novamente indicar conselheiros e diretores.”
A desconfiança do mercado em relação a um retorno da gerência estatal sobre a empresa vem do histórico recente, especialmente sob os últimos governos petistas. Nesse sentido, o episódio mais notável foi o da medida provisória (MP) 579/2012, editado pela então presidente Dilma Rousseff (PT) para reduzir o preço da tarifa de energia em 20%.
Na época, o governo propôs renovar antecipadamente, por mais 30 anos, concessões para empresas do setor elétrico que estavam por vencer, sob a condição de que as companhias vendessem energia a preço de custo. As maiores companhias do setor, como Copel, Cemig e Cesp, não embarcaram no plano, e a Eletrobras, sob o controle do governo, pagou a conta sozinha.
Naquele mesmo ano, a empresa fechou seu balanço com resultado negativo de R$ 6,8 bilhões, o primeiro prejuízo em quase duas décadas. Com capital aberto, a empresa viu seu valor de mercado derreter nos anos seguintes. Da conta do Tesouro, saíram R$ 20 bilhões para compensar a redução de 20% nas tarifas da Eletrobras.
A edição da MP 579, que ocorreu no dia 11 de setembro de 2012, ficou conhecida como o “11 de setembro do setor elétrico”. Mas não foi a única decisão sob a gestão estatal a gerar prejuízos à Eletrobras, segundo analistas do setor.
Em 2017, a gestora de investimentos 3G Radar divulgou um estudo que apontou perdas de R$ 85 bilhões (valor à época) em razão de ineficiências em geral da Eletrobras. Para chegar ao número, foram comparadas as subsidiárias da estatal com suas concorrentes privadas, levando em consideração gastos, ativos e obras, e quanto os dois grupos de empresas devolveram ao país, fosse em pagamento de impostos, ou em dividendos.
“Três empresas privadas geraram uma receita para o país com pagamento de taxas superior ao que as subsidiárias da Eletrobras pagaram somando as taxas e o dividendo”, afirma o estudo. Ou seja, caso as companhias privadas atuassem no lugar da Eletrobras, o governo federal teria recebido mais impostos e dividendos do que com a companhia sob gestão estatal.
Em um relatório a clientes, a gestora de investimentos afirmou que entre 2002 e 2016, a Eletrobras teria somado R$ 186 bilhões em prejuízos, resultantes de erros, ineficiências e de corrupção, citando indícios levantados pela força-tarefa Lava Jato na construção das usinas de Belo Monte, Jirau e Santo Antônio.
“Concluímos que durante os últimos 15 anos, os verdadeiros acionistas da Eletrobras foram empreiteiras corruptas (...), fornecedores e políticos, juntos com aqueles que se beneficiaram das ineficiências, que criaram valor para eles mesmos sem devolver nada para o país”, escreveram à época os analistas da gestora em uma carta em inglês.
Lula quer aumentar poder de decisão do governo na Eletrobras
Justamente para evitar o controle da Eletrobras por grupos políticos, no processo de capitalização o estatuto da companhia foi alterado de modo que nenhum acionista possa determinar o rumo dos negócios sozinho. As políticas da empresa são definidas por um Conselho de Administração, que tem representação tanto dos sócios majoritários quanto dos minoritários.
Além disso, uma das novas regras do estatuto diz que cada acionista tem um limite de 10% dos votos na Assembleia Geral, independente da quantidade de ações ordinárias que possua. Assim, embora o governo tenha ficado com 40,3% dos papéis da empresa com direito a voto, seu poder de decisão está restrito a um décimo da composição da assembleia.
“Essa limitação evita que qualquer acionista com interesse no setor elétrico possa elevar a participação para influenciar as decisões em detrimento da própria Eletrobras”, diz Monsanto. “Na época da capitalização da Eletrobras, os investidores enxergaram o potencial do papel com uma gestão mais eficiente, sem o controle do governo”, recorda.
É exatamente essa regra que o governo Lula agora questiona no STF. Em março, o presidente classificou o processo de capitalização da Eletrobras de "crime de lesa-pátria". No último dia 11, chamou de "sacanagem".
“Agora veja a sacanagem: o governo tem 43% das ações da Petrobras [Eletrobras], mas no conselho só tem direito a 1 voto. Os nossos quarenta [porcento] só vale 1 [voto]. Quem tem 3% tem o mesmo direito do governo. Entramos na Justiça para que o governo tenha a quantidade de votos para a quantidade de ações que ele tem”, declarou Lula em Salvador, durante cerimônia de lançamento do Plano Plurianual Participativo e da plataforma digital Brasil Participativo.
Na ação direta de inconstitucionalidade (ADI) proposta pela Advocacia-Geral da União (AGU), Lula, representado pelo advogado-geral da União, Jorge Rodrigo Araújo Messias, sustenta que a regra limitadora do direito de voto, junto com outras características do processo de desestatização da Eletrobras, gera “ônus desproporcional à União” e “grave lesão ao interesse público”, em clara violação ao direito de propriedade do ente federativo, “aos princípios da razoabilidade, da proporcionalidade, e de diversos mandamentos constitucionais que regem a atuação da Administração Pública”.
No STF, o relator do processo é o ministro Nunes Marques, que ainda não se pronunciou sobre o caso. Em um comunicado de fato relevante a investidores, a Eletrobras afirmou que seu processo de desestatização “seguiu fielmente todo o trâmite legal previsto”.
Para a empresa, caso seja deferido pedido liminar ou julgada procedente a ADI, “a União e seu grupo potencialmente recuperariam a preponderância nas deliberações da assembleia geral (...), o que contraria as premissas legais e econômicas que embasaram as decisões de investimento do mercado – inclusive os milhares de trabalhadores titulares de contas do FGTS –, a partir de modelagem desenvolvida pela própria União”.
A nota faz referência aos R$ 6 bilhões que foram investidos de 370 mil beneficiários do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) que manifestaram interesse em comprar ações da Eletrobras com recursos do fundo durante a oferta de ações da companhia.
“O que o governo Lula está tentando com a reestatização da Eletrobras é absurdo sob qualquer ponto de vista. Está destruindo valor da empresa, trazendo uma tremenda insegurança jurídica ao ambiente de negócios, e dando um tiro no próprio pé, ao afastar investimentos para o setor”, analisa Monsanto.