A proposta da equipe de transição de retirar da regra do teto de gastos cerca de R$ 198 bilhões em despesas previstas para 2023 caiu mal para o mercado, mas, se aprovada, será apenas mais uma entre diversas manobras já realizadas para gastar acima do limite previsto constitucionalmente.
Somados, os valores dispendidos fora da regra desde 2019 chegam a R$ 840 bilhões e vão ultrapassar o patamar de R$ 1 trilhão caso a nova licença para gastar venha do tamanho pretendido pelo governo eleito.
Ao longo dos quatro anos do governo de Jair Bolsonaro (PL), foram criadas ao menos cinco exceções que resultaram em R$ 839,95 bilhões gastos acima do teto, em valores correntes. A maior parte das despesas feitas além do permitido pela Emenda Constitucional 95/2016 foi autorizada pelo Congresso para ações de enfrentamento à pandemia de Covid-19.
Antes disso, no entanto, o teto já havia sido furado – a primeira vez apenas poucos meses após o início do governo Bolsonaro. Com a chamada PEC da Cessão Onerosa, apresentada em maio de 2019, cerca de R$ 46,1 bilhões, referentes à repartição de áreas do pré-sal, foram transferidos para estados e municípios sem que fossem contabilizados na regra.
Sem a mudança constitucional, o valor seria considerado despesa discricionária, com impacto no resultado primário, o que reduziria o espaço para outros gastos em valor equivalente.
No mesmo ano, o governo fez um aporte de R$ 7,6 bilhões na Emgepron que tampouco foi contabilizado para fins de apuração do cumprimento do limite de despesas. A Emgepron é uma estatal do Ministério da Defesa que tem como função gerenciar projetos aprovados pelo Comando da Marinha e manter atualizados os materiais militares navais.
Despesas com aumento de capital de estatais não dependentes não entram na regra do teto desde que sejam feitas com o objetivo de não comprometer os níveis de investimento de empresas que atuam no mercado concorrencial.
“Os aportes em tela, todavia, se destinaram a capitalizar a empresa tão somente para aquisição, no mercado, de corvetas e de navio de apoio antártico para uso da Marinha do Brasil”, registrou em seu voto o ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União (TCU), que emitiu parecer pela aprovação com ressalvas das contas do presidente em 2019.
Na mesma análise, Dantas citou ainda obrigações contraídas sem autorização orçamentária suficiente em 2019. Embora não afetassem o teto de gastos naquele ano, como havia uma “rolagem” dos compromissos, gerariam impacto em exercícios futuros.
O teto de gastos foi instituído em 2016, durante o governo de Michel Temer (MDB), como principal âncora fiscal do país. O dispositivo limita o crescimento das despesas do governo aos mesmos valores gastos no ano anterior, corrigidos pela inflação. Originalmente, a validade da medida era de 20 anos, mas o texto previa uma revisão, por meio de lei complementar, na metade desse prazo, ou seja, em 2026.
Diversos economistas, no entanto, consideram o teto ultrapassado. “O orçamento público, o grosso dele, são itens que vão crescer de todo modo: Previdência, assistência social e pessoal. Se há uma situação assim e não se quer zerar rapidamente as despesas discricionárias, você tem de aceitar que não vai ter teto, a não ser por pouco tempo”, disse o economista Raul Velloso, especialista em contas públicas, em entrevista à revista Veja.
Ainda em 2018, em meio à campanha eleitoral que viria a eleger Bolsonaro, já se previa a necessidade de rompimento da âncora fiscal. “Mesmo na hipótese de eleição de um candidato extremamente fiscalista, respeitar o teto até 2022 será uma missão quase impossível”, escreveu Luiz Guilherme Schymura, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), em agosto daquele ano.
Em 2020, com a explosão da pandemia de Covid-19, o Congresso promulgou uma nova emenda à Constituição que instituiu o chamado Orçamento de Guerra, liberando despesas para o enfrentamento ao coronavírus da regra do teto de gastos.
Segundo relatório do TCU, foram pagos R$ 520,9 bilhões com impacto no resultado primário em ações voltadas ao combate à pandemia naquele ano. Em valores atualizados em dezembro de 2020, a cifra correspondia a R$ 539,4 bilhões.
Já em 2021, com a aprovação da chamada PEC dos Precatórios, o governo adiou o pagamento de dívidas já transitadas em julgado que deveriam ser quitadas no ano seguinte, além de mudar a metodologia para cálculo da correção do teto.
Até aquele momento, o limite de gastos primários da União era calculado com base no Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acumulado em 12 meses até junho do ano anterior. Com a promulgação da PEC, a atualização passou a ser feita a partir do indicador acumulado até dezembro.
Como a variação de preços vinha em trajetória ascendente, a mudança permitiu a abertura de um espaço maior para despesas primárias em 2022. O IPCA até julho de 2021 foi de 8,4%, enquanto até dezembro chegou a 10,1%.
A manobra permitiu já para 2021 a abertura de um espaço de R$ 15 bilhões, voltado exclusivamente para a compra de vacinas contra a Covid-19. Ao fim do ano, apesar de ter havido folga de R$ 27,5 bilhões para gastos, outros R$ 145,6 bilhões destinados ao enfrentamento à pandemia de coronavírus não tiveram alcance da regra do teto, de acordo com parecer do TCU.
Em 2022, as mudanças promovidas pela PEC dos Precatórios permitiram ao governo deixar de pagar R$ 43,8 bilhões dos R$ 89,1 bilhões originalmente comprometidos para de precatórios, além de ganhar um espaço adicional de mais R$ 62,2 bilhões com a atualização da regra do teto.
A mesma troca no índice de correção do teto que abriu espaço no Orçamento de 2022 levou a uma redução no limite de gastos para 2023. Segundo relatório do Instituto Fiscal Independente (IFI), órgão vinculado ao Senado, o teto para o próximo exercício ficaria em R$ 1,803 trilhão caso fosse corrigido pelo IPCA até junho de 2022 (11,9%). Com a atualização pelo indicador projetado até dezembro (5,6%), deve ficar em R$ 1,773 trilhão – R$ 30,2 bilhões a menos.
Em junho de 2022, às vésperas do início da campanha eleitoral, a base do governo de Bolsonaro conseguiu aprovar uma PEC que excluiu mais R$ 41,25 bilhões da regra do teto. O montante foi utilizado para financiar o adicional temporário de R$ 200 à parcela do Auxílio Brasil, além de auxílios a caminhoneiros e taxistas, todos com validade até dezembro.
“Vocês violaram o teto? A resposta é sim, nós violamos o teto”, disse em setembro o ministro da Economia, Paulo Guedes, outrora ferrenho defensor do mecanismo. “Chega uma doença, eu tenho que transferir dinheiro para as pessoas. Eu estou fazendo o governo crescer? Não, eu estou dando um auxílio para os mais frágeis”, defendeu.
Ao longo da campanha eleitoral, Lula também deu diversas declarações contrárias ao teto de gastos. “Não haverá teto de gastos no nosso governo. Não que eu vá ser irresponsável, gastar para endividar o futuro da nação. É porque nós vamos ter que gastar aquilo que é necessário na produção de ativos produtivos, de ativos rentáveis, e a educação é um ativo rentável”, disse em maio. “Quem vai derrubar o gasto com relação ao PIB é o crescimento econômico.”
Já após a eleição, para justificar a apresentação da PEC fura-teto, que prevê a retirada integral do Bolsa Família da regra do teto a partir de 2023, o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin (PSB), relembrou os “dribles” feitos à regra nos últimos anos.
“Nós vamos chegando num entendimento, que também é do Tesouro [Nacional] e do mercado, de que, embora a intenção seja boa, o teto de gastos, do jeito que está hoje, é mais problema do que solução. Tanto que não foi cumprido ano nenhum”, disse Alckmin, que é coordenador da equipe de transição, em entrevista à CNN Brasil no dia 18.
Apesar disso, ele defendeu um modelo com âncora fiscal, o qual levaria em conta “superávit primário com a perspectiva de curva da dívida e gastos do governo”.
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