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Mais de dois anos após o fim das negociações do acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul, que demoraram mais de 20 anos, não há sinais de que ele sairá do papel tão cedo. Para entrar em vigor, depende da ratificação pelos parlamentos dos mais de 30 países que formam os dois blocos econômicos. E há resistências de ambas as partes para colocá-lo em prática.
A medida ajudaria a dar mais dinamismo e facilitaria os negócios dos negócios entre os dois blocos. Segundo a Secretaria de Comércio Exterior (Secex), nos sete primeiros meses do ano, o Brasil exportou US$ 21 bilhões para a União Europeia, 27,1% mais que no mesmo período de 2020, e importou US$ 21,3 bilhões, 23,9% mais.
O diretor da consultoria Prospectiva, Ricardo Mendes, vê vantagens nesse acordo: ele abre espaço para novos mercados para a região, reduzindo a dificuldade à entrada de produtos; permite o acesso facilitado a novas fontes de insumos e de tecnologias para as empresas do Mercosul, estimulando a competividade; e amplia a organização dos fluxos dos negócios entre as empresas que atuam nos dois blocos.
“A Europa tem um grande capital investido na América Latina, o que beneficiaria o comércio intrafirmas no Mercosul”, complementa o professor Carlos Eduardo Vidigal, do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB).
E, diante do contexto de uma grande transição geopolítica, com a possibilidade de uma “guerra fria” entre a China e os Estados Unidos, a concretização do acordo assume mais relevância. “Isto viabilizaria novos investimentos, já que os custos de produção são menores do que nos países desenvolvidos e há uma base industrial relevante no país”, destaca Mendes.
Ele avalia que há muitos segmentos que podem ser beneficiados, como é o caso do automotivo, que já tem uma cadeia globalmente integrada. Outro segmento que pode ganhar mais importância, apesar do lobby europeu contrário, é o agronegócio, diz. “Os acordos ajudariam a expandir ainda mais os negócios nesta área”, diz César de Castro, da consultoria agro do Itaú BBA.
No curto prazo, o presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro, vê mais ganhos políticos do que econômicos. “Mostraria a capacidade de o Brasil firmar acordos com parceiros relevantes. Não precisamos de acordo para vender soja.”
Atualmente, o Brasil tem acordos com Angola, Guiana, México, Panamá, São Cristóvão e Nevis, Suriname e Venezuela. No âmbito do Mercosul, há parcerias com Bolívia, Chile. Colômbia, Cuba, Egito, Equador, Índia, Israel, Peru e União Aduaneira da África Austral.
Os especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo reconhecem que é um acordo que demanda tempo. Uma série de fatores estão dificultando a sua implementação. “É um acordo muito complexo. Tem muitos senões a serem resolvidos”, cita Vidigal.
Flavio González, professor de Direito da Integração na Universidade de Buenos Aires (UBA), espera que, para pôr o acordo em funcionamento efetivo, seja necessário menos tempo do que foi gasto para negociá-lo – as tratativas demoraram mais de 20 anos.
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Veja a seguir alguns dos principais entraves que dificultam a concretização do acordo:
1. Resistências europeias, principalmente da França
Um dos principais obstáculos é a questão ambiental, aponta Gonzalez. “Questões como a dos incêndios na Amazônia ajudam a criar entraves e alimentam o protecionismo, principalmente em relação ao setor agrícola. O Mercosul tem boas condições para competir quando se refere a carnes e cereais.”
A maior resistência vem da França, um dos principais produtores rurais europeus, e cuja produção é fortemente subsidiada pela UE. O professor da UnB diz que a área agrícola francesa é questão de segurança nacional.
As relações entre Brasil e França não estão em um bom momento. Desde 2019, Bolsonaro acusa o presidente francês, Emmanuel Macron, de querer intervir na soberania brasileira sobre a região. Os choques também incluem ofensas à primeira-dama francesa, Brigitte Macron, feitas pelo presidente brasileiro e pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e o cancelamento súbito de uma reunião de Bolsonaro com o chanceler francês Jean-Yves Le Drian – o presidente decidiu cortar o cabelo no horário do encontro.
Segundo a “Folha de S.Paulo”, em março, o embaixador do Brasil na França, Luís Fernando Serra, ignorou um convite formal da Assembleia Nacional francesa (equivalente à Câmara dos Deputados no Brasil) para comparecer a uma audiência que investiga o garimpo ilegal na Guiana Francesa.
2. Brasil não tem feito bom trabalho de relações públicas na Europa
Mas a resistência ao acordo não vem só dá França. Outros países que têm manifestado ressalvas ao acordo são Irlanda, onde o lobby agropecuário também é forte, e Áustria.
“O Brasil não tem feito um bom trabalho de relações públicas junto à Europa. A diplomacia não tem conseguido convencer a sociedade europeia quanto a temas como o meio ambiente e os direitos humanos”, explica Mendes, da Prospectiva.
O presidente francês, Emmanuel Macron, disse, em janeiro, que depender da soja brasileira é endossar o desmatamento da Amazônia. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), três quartos da produção brasileira do grão vêm de cinco estados: Mato Grosso, Rio Grande do Sul, Paraná, Goiás e Mato Grosso do Sul.
3. Divergência de interesses entre Brasil e Argentina
Outro entrave, segundo Mendes, são as visões que os dois maiores parceiros do Mercosul têm sobre o acordo. Apesar das deficiências nas relações públicas, o Brasil tem focado em adotar uma política comercial mais liberal e tem mais interesses em acordos comerciais. Enquanto isso, para a Argentina não há interesse por um acordo no curto prazo.
Vidigal aponta que uma das razões pelas quais a Argentina está com um pé atrás em relação ao acordo é que não tem condições de expor tanto o agronegócio ao exterior quanto o Brasil.
Outro complicador são as vantagens comparativas que a Europa tem na indústria. Alguns segmentos onde isso é mais evidente, aponta o professor da UBA, são o automobilístico, o de autopeças, o químico e o farmacêutico. “Há muita assimetria entre os dois blocos."
4. Custo Brasil
Castro aponta que, do lado brasileiro, há desafios a serem enfrentados. O principal deles diz respeito ao chamado "custo Brasil". “É preciso resolver esse problema para que o país se possa beneficiar deste acordo que, para determinados segmentos, prevê um período de transição de até 15 anos.”
O presidente da entidade empresarial aponta que, no curto prazo, o acordo traz mais benefícios para a União Europeia do que para o Brasil, pois abre oportunidades para o bloco no setor industrial e lhe dá melhores condições que dois de seus importantes concorrentes: os Estados Unidos e a China.
A indústria vem perdendo importância no PIB e na pauta de exportações brasileira. Em 2000, era responsável por 23% das riquezas geradas pelo Brasil. No ano passado, a fatia foi a 17,7%, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Enquanto isso, a participação do setor nas exportações brasileiras caiu pela metade, de 59,07% em 2000 para 28,97% duas décadas depois.