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Enquanto os esforços do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se concentram em aumentar a arrecadação para equilibrar as contas públicas, projetos que poderiam contribuir para o enxugamento e modernização da máquina administrativa permanecem engavetados no Congresso Nacional, à espera de patrocinador.
São iniciativas legislativas que precisam de aprovação ou regulamentação para endereçar uma reforma administrativa, demanda antiga e necessária para aumentar a produtividade do serviço público no país, melhorar a qualidade das entregas e diminuir o custo da folha no Orçamento.
A ministra Esther Dweck, da Gestão e Inovação em Serviços Públicos, anunciou, em junho, a intenção de fracionar mudanças na legislação em diversas frentes. Mas já foi aprovada a abertura de concurso público para 20 mil vagas até 2026, das quais 9 mil já foram autorizadas. Com isso, novos servidores podem entrar no atual regime, com as distorções existentes.
“Se isso acontecer, será péssimo para a produtividade, para o cidadão, para o quadro fiscal e, logo, para o país”, afirma a economista Cristiane Schmidt, consultora e professora da Fundação Getulio Vargas (FGV).
Discussão de reforma administrativa se arrasta há três décadas
A discussão da reforma administrativa se arrasta desde os anos 1990, quando emendas constitucionais foram promulgadas modificando o capítulo da Constituição que trata da administração pública. Mas, sob pressão do funcionalismo, nunca foram regulamentadas.
“Somente no Executivo federal há 310 carreiras públicas e 270 associações. Se somar as dos poderes, autarquias, empresas públicas dos três entes, a pressão corporativa é colossal”, diz a economista.
Em 2020, uma proposta de emenda constitucional de autoria do Executivo, a PEC 32, foi encaminhada ao Congresso, mas não avançou. O relator, deputado Arthur Maia, incluiu diversas demandas corporativas e choveram críticas sobre o desvirtuamento da proposta, que originalmente focava na eliminação de privilégios, na redução de custos obrigatórios e na mudança do Regime Jurídico Único dos servidores.
No início deste ano, o texto chegou a ser defendido com vigor pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e entrou na lista de prioridades para 2024 também do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Como previsto, enfrentou forte oposição do Executivo. A ministra Esther Dweck chegou a dizer que, da forma como está, a proposta aumenta a despesa com servidores.
"A reforma administrativa que está no Congresso – a chamada PEC 32 – tem um foco punitivista, foco na redução do Estado, no fim da estabilidade do servidor público. São pontos com que o governo do presidente Lula e o Ministério da Gestão discordam absolutamente. Ali era um foco puramente fiscal”, disse Dweck, em entrevista à CNN Brasil.
Gastos com pessoal no país são maiores que os da OCDE
O Brasil é o sétimo país que mais gasta com servidores, segundo estudo da Confederação Nacional da Indústria (CNI). A remuneração relativa do setor público brasileiro está acima da média da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), embora o contingente de servidores seja menor.
Os gastos com pessoal representam 13,4% do Produto Interno Bruto (PIB), mais do que a média de 9,9% de países desenvolvidos e reconhecidos pela participação ativa do Estado. Na Suécia, despesas com o funcionalismo público representam 12,7% do PIB, na França, 12,1% e na Itália, 9,5%.
Além disso, segundo estudo do Banco Mundial, o servidor público brasileiro ganha mais que o da iniciativa privada em funções equivalentes.
Ao mesmo tempo, o índice de satisfação com serviços públicos do Brasil é um dos mais baixos do mundo, principalmente em saúde e educação, segundo o Comitê de Governança Pública da OCDE.
Schmidt destaca o impacto fiscal gigantesco dos gastos com o funcionalismo e as consequências para a redução dos investimentos.
“Como o gasto com a folha é parte relevante do Orçamento, se somado a outras despesas obrigatórias, sobram 10% para gastos discricionários e 1% para investimento”, diz. “É inadiável perseguir o aumento da produtividade do serviço público para aumentar a taxa de investimento e oferecer serviços compatíveis com a arrecadação de 34% do PIB, nível de país desenvolvido.”
Estabilidade "absoluta" do servidor é ponto central
Para Wagner Lenhart, CEO do Instituto Millenium e ex-secretário de Gestão e Desempenho de Pessoal do Ministério da Economia no governo Bolsonaro, o ponto central do debate é o quadro de estabilidade “absoluta” do funcionalismo no país.
Um pontos previstos pela PEC 32, lembra o ex-secretário, era o fim da estabilidade a partir dos próximos concursos.
“Quem passa num concurso público vai ficar vinculado ao Estado por cerca de 60 anos. Independente se a atividade dele se tornou obsoleta ou não, se ele está entregando o resultado ou não, se ele está atendendo bem a população ou não”, explica. “Ao contrário do setor privado, mesmo depois que se aposenta, o servidor continua na folha de pagamento do governo.”
Para ele, embora a maior parte dos servidores tenha boa qualificação, o sistema atual é anacrônico e disfuncional, especialmente pela velocidade das transformações no mundo do trabalho.
“Contratos longos e indissolúveis não fazem sentido no mundo atual. E cada ano que passa aumenta a dificuldade de atender os movimentos que a sociedade moderna demanda”, diz.
Ele admite, porém, que aprovar uma reforma administrativa é desafiador do ponto de vista político. “É um tema espinhoso, sobretudo em ano de eleição."
Reforma administrativa pode avançar via Legislativo
Carlos Ari Sundfeld, da Faculdade de Direito da FGV-SP, avalia que, apesar das resistências, é possível avançar na reforma por meio de leis ordinárias e complementares. Algumas já estão em tramitação e outras podem ser propostas pelo próprio Congresso.
“Dá pra fazer evoluções muito importantes apenas com projetos de lei, sem a necessidade de projeto de emenda constitucional”, diz. “A PEC 32 não vingou porque tem muitos inconvenientes. É tudo muito genérico, muito vago, e nós temos que focar diretamente nos problemas.”
Um dos projetos aguardando apreciação do Senado é o PL 252, que trata dos concursos públicos. Aprovado pelos senadores em 2003 – há mais de duas décadas, portanto –, ele foi alterado na Câmara em 2022 e por isso voltou ao Senado.
Para Sundfeld, a aprovação pelo Senado traria muitos avanços na gestão de pessoal, por introduzir metas de desempenho. Segundo ele, existe hoje uma cultura arraigada que privilegia o conhecimento para o concurso público e não o desempenho do servidor.
“Essa visão tem feito mal para a administração. Mudar essa cultura traria efeitos positivos de longo prazo”, acredita. “É o projeto que tem mais chances. Só dependeria da vontade política do presidente do Senado [Rodrigo Pacheco (PSD-MG)].”
Congresso tem dificuldade para enfrentar supersalários
Outro é o projeto parado no Congresso é o PL 6.726/2016, que trata dos supersalários, estabelecendo critérios de remuneração dos servidores. Levantamento do Centro de Liderança Pública (CLP) apontou que, em 2022, 25,5 mil servidores recebiam acima do teto em todo o Brasil, nos diferentes Poderes.
Apesar do baixo impacto fiscal, o projeto de lei acabaria com a desigualdade salarial entre categorias e poderes. Aprovada pela Câmara dos Deputados em 2021, a proposta ainda aguarda distribuição pelo presidente Rodrigo Pacheco. Ou seja, nem mesmo chegou à Comissão de Constituição e Justiça.
“É um projeto difícil de andar, porque corta na carne da elite do funcionalismo público brasileiro”, avalia o professor.
Pacheco, por sua vez, condicionou o avanço dessa matéria à aprovação de uma emenda constitucional que contempla quinquênios para magistrados e integrantes do Ministério Público, que teriam acréscimo de 5% nos salários a cada cinco anos, limitado a 35% do valor do subsídio. A iniciativa recebeu uma saraivada de críticas.
“É um absurdo voltar essa regra para o Judiciário. Parece que é algo que confronta a sociedade brasileira que paga imposto”, diz Schmidt.
Para a economista, outras leis para regularizar o serviço temporário no funcionalismo, algo que já ocorre em estados e municípios, deveriam ser enfrentadas pelo Parlamento, já que o governo atual não sinaliza com nada neste sentido.
“Seria preciso que o Congresso Nacional patrocinasse as iniciativas. Este governo não vai andar com a reforma administrativa”, acredita Cristiane Schmidt.
Sunfeld destaca que as iniciativas que o governo atual tem promovido em termos de digitalização e modernização são positivas, mas não atacam o nó central da administração pública.
“Diante da situação de crise fiscal, propostas que barateiem a gestão de recursos humanos são urgentes e vitais”, afirma Sunfeld. “Mais cedo ou mais tarde a questão deverá ser enfrentada.”
Governo evita falar em reforma administrativa e prefere "Transformação do Estado"
A Gazeta do Povo solicitou à ministra Esther Dweck uma entrevista sobre o tema, assim como atualizações a respeito da reforma administrativa fracionada que o governo pretende fazer.
A assessoria respondeu, por meio de nota, que as discussões mais recentes sobre as iniciativas para transformação do Estado correram durante o States of the Future, evento paralelo do G-20 e organizado pelo MGI.
Nos releases encaminhados sobre os debates, a ministra não detalha as iniciativas, mas expõe premissas do governo. Segundo Dweck, a transformação do Estado envolve três pilares essenciais: valorizar os servidores como agentes de inovação, fortalecer a transformação digital dos serviços públicos e promover a governança colaborativa através da participação permanente da população.
“Desde a criação do MGI, nós resolvemos trocar o termo Reforma Administrativa pelo termo Transformação do Estado. Temos que repensar o papel do Estado, onde as pessoas que ali trabalham representem a sociedade brasileira. A Lei de Cotas para o serviço público ajudou a mudar a entrada no serviço público, mas precisávamos ir além, e o Concurso Público Nacional Unificado foi pensado na diversidade da entrada regional do Brasil”, disse a ministra.