Com o empenho do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), a proposta de reforma tributária apoiada pelo governo Lula pode ir à votação no plenário da Casa ainda nesta semana. Mas o texto que será analisado pelos parlamentares, um substitutivo do deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PI) à proposta de emenda à Constituição (PEC) 45/2019, tem uma série de pontos controversos que colocam em conflito interesses da União, estados e municípios e de setores da economia.
O ponto central da proposta é a criação de um único tributo sobre consumo, no modelo de Imposto de Valor Agregado (IVA), a partir da unificação de cinco tributos: IPI, PIS e Cofins, hoje de competência federal; ICMS, administrado pelos estados; e ISS, de responsabilidade dos municípios.
O IVA brasileiro receberia o nome de Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e teria regras únicas, mas duas gestões distintas, uma em nível federal e outra compartilhada entre estados e municípios – daí ser chamada de “IVA dual”.
Haveria três alíquotas: a padrão; uma reduzida em 50% para alguns setores (transportes, saúde, educação, produtos agropecuários, alimentos, higiene pessoal, atividades artísticas e culturais);e uma zerada (medicamentos, Prouni e produtor rural pessoa física). Caberia à lei complementar fixar os percentuais.
Além disso, é proposta a criação de um imposto seletivo, que incidiria sobre bens e serviços considerados prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, como forma de desestimular seu consumo. Cigarros e bebidas alcoólicas, por exemplo, poderiam entrar na lista de produtos tributados.
Para compensar perdas com o fim de benefícios fiscais e reduzir o desequilíbrio econômico entre as unidades federativas com a reforma, é previsto ainda um Fundo de Desenvolvimento Regional (FDR), que teria uma contrapartida também da União.
O governo espera alguma folga na aprovação do texto na Câmara. “Não queremos votar essa PEC com apenas 308 votos. Queremos votar com bastante apoio porque é uma coisa para a sociedade, para o Brasil”, disse o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, na semana passada.
No domingo (2), Lira reuniu-se com líderes partidários para debater a reforma tributária. Embora não esteja totalmente alinhado ao governo, o presidente da Câmara tem defendido a aprovação da matéria, que ele diz considerar importante para o país.
Aumento de carga sobre agronegócio e serviços
Uma das preocupações de alguns segmentos da economia tem a ver com a alíquota única do IVA, com possibilidade de diferenciação em casos específicos. Embora a premissa sirva para simplificar o atual sistema de impostos, a mudança poderia prejudicar setores como o de serviços e o agronegócio.
A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) calcula que a alíquota única para bens e serviços poderia elevar em mais de 22% o preço da cesta básica. “Considerando que a população nacional está concentrada nas classes C, D e E, se a carga tributária de impostos sobre o consumo subir para 25% ou mais, os brasileiros teriam menos acesso aos serviços e alimentos”, diz nota assinada pela entidade.
No sábado (1º), o presidente da Associação Brasileira de Supermercados (Abras), João Galassi, apresentou a Haddad uma estimativa de que a reforma tributária pode provocar um aumento de 59,83%, em média, nos impostos sobre a cesta básica e itens de higiene.
O número é questionado pelo governo. À Agência Brasil, o secretário extraordinário da reforma tributária, Bernard Appy, disse que o patamar de tributos que incidem sobre a cesta básica deverá permanecer na mesma linha atual.
Já a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) calculou que, caso a alíquota do IVA seja de 12%, o aumento de carga tributária para o setor de serviços pode chegar a 84%. A proposta que será votada na Câmara nesta semana prevê que haja tratamento diferenciado apenas para as áreas de saúde, educação e transporte público, mas não para todo o setor de serviços.
O discurso do governo é de que não haverá aumento de carga tributária. Na semana passada, o argumento foi destacado pelo vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin, em evento com empresários na Federação das Indústrias do Estado do Paraná (Fiep), em Curitiba.
Temor de perda de postos de trabalho
Em relatório produzido pelo grupo de trabalho da reforma tributária na Câmara, considera-se que as mudanças teriam o potencial de acelerar o crescimento do PIB, de modo que o aumento da atividade econômica compensaria a diminuição percentual do bolo arrecadatório da maioria dos estados e municípios que teriam redução nas receitas.
A tese é colocada em dúvida pelo economista Erik Figueiredo, ex-presidente do Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada (Ipea) e hoje diretor-executivo do Instituto Mauro Borges de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (IMB), ligado ao governo de Goiás. “Isso é baseado em um modelo que ninguém sabe de fato se funciona, se foi calibrado da forma correta”, disse à Gazeta do Povo.
Considerando ainda que a reforma elevará a carga tributária sobre setores que hoje empregam 37,2 milhões de pessoas, Figueiredo calculou que pode haver uma perda de cerca de 500 mil empregos formais. A estimativa parte de um modelo que correlaciona a elasticidade do emprego em relação à carga tributária, calculada para 30 países-membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Insatisfação em relação ao Fundo de Desenvolvimento Regional
Entre os representantes dos estados, há uma insatisfação em relação ao valor que a União teria de repassar ao Fundo de Desenvolvimento Regional. Os recursos serviriam para compensar as unidades federativas pelo fim da chamada “guerra fiscal”, na qual governos estaduais concedem benefícios tributários para atrair fábricas. Como o IVA teria como um de seus princípios o recolhimento no destino, não haveria mais disputa entre estados.
Para compensar perdas com a mudança, o fundo teria participação dos entes subnacionais, mas contaria com uma contrapartida de R$ 40 bilhões da União. O Comitê Nacional de Secretários de Fazenda dos Estados e do Distrito Federal (Comsefaz), no entanto, pede que o valor seja elevado para R$ 75 bilhões.
A entidade também defende uma definição mais clara sobre a distribuição dos recursos no texto da PEC. “Foi uma deliberação quase que unânime que esse critério de divisão do fundo não seja delegado para uma lei complementar e esteja no texto constitucional, para dar segurança aos estados”, disse o presidente do Comsefaz, Carlos Eduardo Xavier, à Agência Câmara.
Apesar de a Confederação Nacional de Municípios (CNM) ter declarado apoio à proposta patrocinada pelo governo, outra entidade que representa as administrações municipais, a Frente Nacional de Prefeitos (FNP), defende outra PEC de reordenação dos sistema tributário, a 46/2022, de autoria do senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR).
A proposta alternativa preserva os atuais impostos sobre o consumo, mas unifica as respectivas legislações. O principal ponto é que o texto preserva o IPTU e o ISS, principais fontes de renda dos municípios.
Imposto seletivo é motivo de dúvidas
A criação do imposto seletivo também é alvo de críticas. O texto dá à União a prerrogativa de se instituir a tributação sobre “produção, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos da lei”.
Sem uma definição clara de quais bens e serviços se enquadrariam no critério, opositores veem o risco da utilização arbitrária do mecanismo e do aumento de carga tributária.
“Os ‘doutores’ petistas resolveram, para o bem da nossa saúde e do planeta, nos cobrar mais impostos”, criticou o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) suas redes sociais. “Carnes (picanha), combustíveis fósseis, refrigerantes, bebidas alcoólicas, entre outros, seriam sobretaxados", disse.
Para Erik Figueiredo, a polêmica seria afastada caso fosse apresentado junto à PEC um rascunho da lei que regulamentará o tema. “Sem uma prévia da lei complementar, não haverá uma discussão transparente”, disse o ex-presidente do Ipea.
Cashback precisa de mais detalhamento
Outro item da reforma que precisa de mais detalhamento é o sistema de devolução de impostos, o cashback. A ideia é que parte do IVA pago embutido no preço de produtos possa ser restituído aos consumidores como ocorre com o ICMS em alguns estados para quem informa o CPF no momento da compra.
O Instituto Millenium, por exemplo, defende que o texto deveria definir as principais premissas do instrumento e que a renda precisa ser o critério principal para a devolução, beneficiando contribuintes de menor renda.
Deixar a questão em aberto neste momento poderia abrir espaço para grupos sociais organizados desvirtuarem o instrumento durante a tramitação do projeto de lei complementar que o regulamente, considera a entidade.
Texto deve enfrentar resistência da oposição
No Congresso, o texto apoiado pelo governo também deve enfrentar resistência da oposição. O deputado federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL-SP) já afirmou que votará contra. Autor de uma PEC alternativa de reforma tributária, inspirada no padrão norte-americano, o parlamentar é crítico do modelo de IVA. Sua proposta prevê a extinção de 15 impostos para dar lugar a apenas três tributos, sobre renda, consumo e propriedade.
Também contrário à adoção do IVA, o senador Oriovisto Guimarães acredita que a mudança elevaria a carga tributária para alguns setores, aprofundando as desigualdades sociais, e afetaria principalmente os brasileiros de baixa renda.
Para ele, a indústria é único setor que seria beneficiado com o IVA. “Mas não vai se beneficiar tanto, porque, já em seguida, vai perder consumidores”, disse recentemente em pronunciamento no plenário do Senado.
Outro parlamentar que questiona a PEC é o deputado federal André Fernandes (PL-CE). “Li o texto preliminar da reforma tributária e afirmo com certeza absoluta: está horrível. Um dos absurdos é o ‘imposto seletivo’, onde o estado vai sobretaxar aqueles produtos que julgar ser prejudicial à saúde e ao meio ambiente”, disse. “Precisamos debater esse assunto.”
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