Ouça este conteúdo
A reforma tributária aprovada em dois turnos no Senado na quarta-feira (8) muda o atual sistema de impostos que incidem sobre o consumo de bens e serviços. Como teve modificações desde que chegou à Casa, a proposta agora precisa ser reanalisada pela Câmara dos Deputados – onde uma versão anterior foi aprovada em julho – para poder ser promulgada.
A proposta de emenda à Constituição (PEC) 45 foi protocolada em 2019 no Congresso pelo deputado federal Baleia Rossi (MDB-SP) e idealizada pelo economista Bernard Appy, então diretor do Centro de Cidadania Fiscal (CCif) e hoje secretário especial para a Reforma Tributária do Ministério da Fazenda. Sua aprovação representa a primeira grande mudança no arcabouço tributário do país desde a Constituição de 1988.
Confira a seguir os principais pontos para entender a reforma:
Imposto sobre Valor Agregado (IVA) dual
O eixo principal da reforma é a criação de um sistema de Imposto sobre Valor Agregado (IVA), modelo já adotado em 174 países. Significa que o recolhimento de tributos sobre bens e serviços passa a ser calculado apenas sobre o valor acrescido a uma mercadoria a cada elo da cadeia de produção, e não mais sobre o valor total do produto em cada etapa.
No modelo proposto, o IVA será dual, ou seja, composto de dois tributos: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal e que substitui os atuais PIS/Pasep e Cofins; e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), cuja responsabilidade será compartilhada entre estados e municípios e que entra no lugar do ICMS e do ISS.
Simplificação da legislação tributária
A mudança simplifica a atual legislação tributária, hoje composta de milhares de leis que regem os atuais impostos sobre bens e serviços em cada município e cada unidade federativa do país, uma vez que as regras para o IBS serão uniformes em todo o Brasil.
No atual sistema de impostos, o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT) calcula que, desde a promulgação da Constituição de 1988, já foram editadas cerca de 466 mil normas tributárias, das quais 38 mil federais, 154 mil estaduais e 274 mil municipais. Isso significa que foram publicadas, em média, 54 conjuntos de regras tributárias por dia útil ao longo dos últimos 34 anos.
Não cumulatividade e cobrança no destino
Os impostos obedecerão ao princípio de não cumulatividade, o que significa que não haverá mais cobrança “em cascata”, ou tributação calculada sobre tributo. Cada etapa de produção será taxada sobre o valor adicionado ao bem ou serviço.
Outra mudança será o recolhimento do IBS no local de destino, o que, somado à legislação única para todo o país, deve acabar com a chamada “guerra fiscal” entre estados. Hoje, para atrair empresas a investirem em seus territórios, os governos estaduais se utilizam da concessão de benefícios tributários, o que gera desigualdade de concorrência e perda de arrecadação.
Maior alíquota do mundo
Como regra geral, a PEC prevê que alíquotas-padrão de CBS e ISS valerão para a maior parte dos bens e serviços. Na versão do texto aprovada no Senado, o relator, Eduardo Braga (MDB-AM), incluiu uma trava para evitar o aumento da carga tributária total, por meio de uma revisão quinquenal das receitas com os impostos em relação ao Produto Interno Bruto (PIB). Na primeira revisão, prevista para 2030, caso os resultados de 2027 e 2028 sejam superiores à média observada entre 2012 e 2021, as alíquotas devem ser reduzidas.
Mas o próprio ministro da Fazenda, Fernando Haddad, calcula que, somadas, as alíquotas de referência dos dois tributos devem chegar a 27,5%, o que colocaria o IVA brasileiro como o mais alto do mundo, superando o da Hungria, que é de 27%.
Nas projeções de analistas independentes, no entanto, o imposto pode ser ainda maior. O economista-chefe da Warren Rena e ex-secretário da Fazenda de São Paulo, Felipe Salto, por exemplo, calcula que o patamar pode chegar a 33,5%. O porcentual que será cobrado em cada um dos tributos ainda será definido por meio de lei complementar que regulamentará a CBS e o IBS.
Longa lista de exceções
Um dos fatores responsáveis por elevar a alíquota padrão é a quantidade de exceções à regra principal, ou seja, setores ou atividades econômicas que terão desconto em relação tributação padrão. Ainda que não haja aumento de carga tributária total, para que a arrecadação seja mantida, quanto maior o número de categorias isentas ou com alíquota reduzida, maior tende a ser a cobrança do imposto médio para os demais contribuintes.
A ideia original da reforma era extinguir ou reduzir ao máximo as isenções ou desonerações concedidas a determinados setores, mas a pressão de lobbies no Congresso fez com que a lista de exceções crescesse a cada etapa da tramitação da PEC.
A relação de categorias beneficiadas com redução de 60% na alíquota-padrão inclui serviços de saúde e educação, dispositivos médicos, medicamentos, produtos voltados à saúde menstrual, transporte coletivo, alimentos, produtos de higiene pessoal, insumos agropecuários, produções artísticas, entre outros.
Profissionais liberais submetidos a conselho federal, como médicos, advogados, contadores e engenheiros, também terão desconto, porém de 30%, sobre a tributação. Montadoras de automóveis instaladas nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste também terão benefícios tributários prorrogados, segundo o texto da PEC.
Outros itens ficarão isentos dos impostos, como os que compõem a cesta básica; dispositivos médicos no caso de aquisição pela administração pública; carros adquiridos por taxistas, pessoas com deficiência ou transtorno do espectro autista; serviços de educação de ensino superior nos termos do Programa Universidade para Todos (Prouni) e os prestados por entidades de inovação, ciência e tecnologia (ICTs) sem fins lucrativos; entre outros.
Regimes especiais
Há ainda a previsão de regimes especiais de tributação para determinados setores. Combustíveis e lubrificantes, por exemplo, terão incidência do imposto uma única vez, qualquer que seja a sua finalidade. Poderá haver alíquotas diferenciadas por produto, mas elas deverão ser uniformes em todo o país.
Outros setores que terão tributação diferenciada incluem serviços financeiros, operações com bens imóveis, planos de saúde e concursos de prognósticos; cooperativas; hotelaria, parques de diversão e temáticos, agências de viagens e turismo, bares e restaurantes e aviação regional; operações alcançadas por tratado ou convenção internacional; serviços de saneamento e concessão de rodovias; entre outras.
Imposto Seletivo sobre bens ou serviços "nocivos"
O texto prevê ainda a criação de um Imposto Seletivo (IS), de caráter regulatório e natureza extrafiscal, voltado a desestimular o consumo de determinados produtos ou serviços considerados prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, como cigarros e bebidas alcoólicas, por exemplo.
Apelidado de “imposto do pecado”, o IS substituirá o atual IPI, que hoje tem a mesma função e que será extinto. Segundo a proposta, o tributo será cobrado em uma única fase da cadeia e não incidirá sobre exportações nem operações com energia elétrica e telecomunicações. A versão aprovada no Senado prevê a incidência sobre armas e munições, exceto quando os produtos forem destinados à administração pública.
O rol completo de bens e serviços que devem ser sobretaxados, no entanto, ainda deve ser definido por lei complementar.
Cide para proteger Zona Franca de Manaus
A reforma também estabelece a utilização da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) para taxar mercadorias fabricadas pelo Brasil que concorram com a produção da Zona Franca de Manaus. A medida é uma forma de manter o incentivo às indústrias instaladas na região, que hoje contam com descontos ou isenções de PIS, Cofins, IPI e ICMS.
Na versão da PEC aprovada na Câmara, previa-se o uso do Imposto Seletivo para tal finalidade, o que acabaria gerando a controversa sobretaxação de itens como bicicletas com o tributo voltado a desestimular produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. A troca do “imposto do pecado” pela Cide foi feita pelo relator da matéria no Senado, Eduardo Braga (MDB-AM).
Cashback
A PEC também abre a possibilidade de devolução a pessoas físicas de parte do imposto pago com o objetivo de reduzir desigualdades de renda. O mecanismo deve ser semelhante ao que já ocorre com o ICMS em alguns estados, onde, ao informar o CPF no momento da emissão da nota fiscal, o contribuinte pode ter direito a um crédito para desconto no recolhimento de outro tributo estadual ou mesmo para transferência em conta corrente.
O texto prevê mais especificamente hipóteses de cashback para cidadãos de baixa renda no consumo de energia elétrica, cuja reversão pode vir a ser feita na própria conta de luz, na aquisição de produtos da cesta básica e na compra de botijão de gás de cozinha. O modelo de funcionamento, porcentual e outras situações de devolução de valores serão definidos por meio de lei complementar.
Prazo de transição
A transição dos atuais impostos para os IVAs nacional (CBS) e subnacional (IBS) começará ao mesmo tempo, em 2026, com alíquotas de 0,9% no caso do tributo federal e de 0,1% no imposto subnacional.
A CBS deve substituir totalmente os impostos indiretos federais já em 2027, quando ficam extintos PIS e Cofins. No mesmo ano serão zeradas as alíquotas do IPI e passam a vigorar o Imposto Seletivo e a Cide voltada a manter a competitividade da Zona Franca de Manaus.
O IBS permanece com alíquota-teste de 0,1% até 2028. De 2029 e 2032, o IVA subnacional passa a substituir ICMS e ISS na proporção de 1/10 a mais por ano. A partir de 2033, os tributos indiretos de estados e municípios passam a ser integralmente substituídos pelo novo imposto.
Já regras para a distribuição do IBS entre estados e municípios terão um período de transição maior, que totalizará 50 anos, conforme a proposta.
Comitê gestor do IBS
Com a unificação da legislação do imposto subnacional sobre consumo, será criado um órgão responsável por gerir de forma centralizada o recolhimento do IBS. Batizado na Câmara dos Deputados de Conselho Federativo, a estrutura passou a ser chamada de Comitê Gestor na versão aprovada no Senado.
O órgão será responsável por distribuir a arrecadação do tributo e efetuar as devidas compensações. Será formado por 54 membros: 27 representantes dos 26 estados e do Distrito Federal; 14 eleitos, com voto em igual peso, pelos municípios; e outros 13 eleitos, com voto em peso ponderado pelo número de habitantes, pelos municípios.
O presidente do órgão precisará ter notório conhecimento de administração tributária e passar por sabatina no Senado. O Congresso Nacional também poderá convocá-lo e solicitar informações da mesma forma que hoje já ocorre com ministros de Estado.
O controle externo do Comitê Gestor será feito por um colegiado composto de membros de tribunais de contas dos estados, do Distrito Federal e, nos casos em que houver, dos municípios. Optou-se por excluir o Tribunal de Contas da União (TCU) dessa atribuição, para manter a autonomia do órgão em relação à União.
Fundo de compensação para estados
Na reforma serão criados ainda dois fundos financeiros voltados a apoiar governos estaduais, cujos aportes somarão R$ 790 bilhões nos próximos vinte anos.
O primeiro será um fundo de compensação de benefícios fiscais e financeiro-fiscais do ICMS, com o objetivo de substituir os atuais incentivos estaduais que hoje provocam a chamada guerra fiscal.
A trajetória prevista para os aportes da União nesse fundo é a seguinte:
- R$ 8 bilhões em 2025;
- R$ 16 bilhões em 2026;
- R$ 24 bilhões em 2027;
- R$ 32 bilhões em 2028;
- R$ 32 bilhões em 2029;
- R$ 24 bilhões em 2030;
- R$ 16 bilhões em 2031 e
- R$ 8 bilhões em 2032.
As quantias correspondem a valores correntes e, conforme a proposta, ainda serão atualizados anualmente pela variação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).
Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional
O segundo será o Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR), que terá o objetivo de reduzir desigualdades regionais e sociais com a entrega de recursos da União para as unidades federativas.
Segundo o texto, o dinheiro deverá ser utilizado para “realização de estudos, projetos e obras de infraestrutura; fomento a atividades produtivas com elevado potencial de geração de emprego e renda, incluindo a concessão de subvenções econômicas e financeiras; e promoção de ações com vistas ao desenvolvimento científico e tecnológico e à inovação”.
Assim como os aportes para o fundo de compensação, as quantias serão corrigidas anualmente pelo IPCA. Os pagamentos, nesse caso, começam em 2029 e vão evoluir da seguinte forma:
- R$ 8 bilhões em 2029;
- R$ 16 bilhões em 2030;
- R$ 24 bilhões em 2031;
- R$ 32 bilhões em 2032;
- R$ 40 bilhões em 2033;
- R$ 42 bilhões em 2034;
- R$ 44 bilhões em 2035;
- R$ 46 bilhões em 2036;
- R$ 48 bilhões em 2037;
- R$ 50 bilhões em 2038;
- R$ 52 bilhões em 2039;
- R$ 54 bilhões em 2040;
- R$ 56 bilhões em 2041;
- R$ 58 bilhões em 2042; e
- R$ 60 bilhões em 2043.
Fundo de Desenvolvimento Sustentável dos Estados da Amazônia Ocidental
Em um acordo para garantir apoio à aprovação da PEC no Senado, o relator acatou uma sugestão capitaneada pelo senador Davi Alcolumbre (União-AP) que cria mais uma reserva financeira, o Fundo de Sustentabilidade dos Estados da Amazônia Ocidental e do Amapá, que inclui ainda Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima. Os valores destinados ao novo fundo, voltado para o desenvolvimento da região, serão definidos por meio de lei complementar.
IPVA sobre embarcações e aeronaves
Embora a PEC aprovada esteja centrada na reforma dos impostos sobre consumo, o texto prevê alguns dispositivos que alteram a tributação sobre patrimônio. Uma das mudanças, por exemplo, permite que estados possam cobrar alíquotas progressivas do IPVA em razão do impacto ambiental de veículos.
Outro dispositivo inclui veículos aquáticos e aéreos entre os veículos sobre os quais incidirá o IPVA, o que faz com que proprietários de embarcações e aeronaves passem a recolher o imposto como ocorre com os donos de automóveis. Ficam excetuadas do tributo, no entanto, aeronaves agrícolas e embarcações voltadas a transporte aquaviário ou de pesca industrial, artesanal, científica ou de subsistência.
Atualização do IPTU por decreto
Em relação ao IPTU, cobrado por municípios, a atualização da base de cálculo poderá ser feita por meio de decreto, a partir de critérios gerais previstos em lei municipal. Hoje os reajustes precisam necessariamente passar pelo crivo do Legislativo para entrar em vigor.
Imposto sobre herança
A reforma também dispõe sobre mudanças no Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), de responsabilidade dos estados. Hoje, cada unidade federativa pode instituir sua alíquota, com o limite de 8%, e a possibilidade de isenção do imposto. A PEC prevê que o tributo seja progressivo de acordo com o valor da herança ou doação transmitida, como já ocorre em alguns estados, como o Rio de Janeiro. O recolhimento será feito no estado de residência da pessoa falecida.