A regulamentação da reforma tributária proposta pelo governo pode elevar os custos de contratação de planos de saúde empresariais, fazendo com que muitas companhias desistam de oferecer o benefício a seus funcionários. O alerta é da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), que estima que mais de 31 milhões de brasileiros possam perder a cobertura assistencial diante das novas regras previstas.
O principal motivo, segundo a entidade, é que o Projeto de Lei Complementar (PLP) 68/2024, que regulamenta a reforma, proíbe a geração de créditos tributários dos futuros Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) sobre despesas com planos de assistência à saúde.
A proposta, que ainda passará pelo crivo do Congresso, trata de modo distinto, por exemplo, gastos com automóveis, celulares, vale-transporte e até vale-refeição, disponibilizados por empresas a seus colaboradores.
A justificativa é que esses tipos de despesa são considerados insumos para a atividade da companhia, que poderá abatê-los da base de cálculo dos novos impostos. O plano de saúde, por outro lado, seria um benefício “para uso e consumo pessoal” do empregado, uma espécie de salário indireto.
“Essa diferença de tratamento é um grande desestímulo para que a empresa conceda o benefício”, diz Gustavo Ribeiro, presidente da Abramge. “A proposta apresentada coloca o Brasil na contramão mundial no tratamento tributário dado ao setor de saúde”, afirma.
Marcela Guimarães, advogada tributarista, sócia do escritório Marcela Guimarães Sociedade de Advogados, concorda. “Essa abordagem pode ter consequências negativas para as empresas que vendem planos de saúde corporativos, bem como para os empregadores que os adquirem, uma vez que pode aumentar seus custos e, consequentemente, onerar financeiramente as empresas”, diz.
Ela lembra que, em um projeto alternativo ao PLP 68, a Frente Parlamentar do Empreendedorismo propõe sugestões para amenizar o impacto dessa mudança. “Por exemplo, sugere-se que a restrição ao crédito tributário se aplique apenas a bens e serviços destinados ao uso pessoal das pessoas físicas relacionadas à empresa, excluindo, portanto, os planos de saúde corporativos adquiridos para benefício dos funcionários”, explica.
Ao jornal “Folha de S.Paulo”, duas grandes empresas – uma varejista e outra do ramo de serviços – afirmaram, de modo reservado, que avaliam cancelar planos de saúde de funcionários caso seja mantida a impossibilidade de aproveitamento de créditos tributários.
Segundo Ribeiro, as novas regras devem agravar a situação do sistema de saúde suplementar, que já acumula cerca de R$ 17,5 bilhões em prejuízo operacional nos últimos três anos, além de sobrecarregar o Sistema Único de Saúde (SUS). Atualmente, de acordo com a associação do setor, dos 50 milhões de brasileiros que têm acesso à assistência médico-hospitalar no sistema privado, 60% são cobertos por contratos empresariais.
“A sustentabilidade e complementaridade dos sistemas público e privado é fundamental para que ainda mais pessoas tenham acesso ao sistema de saúde”, diz o presidente da Abramge.
A questão hoje é controversa, mas a Receita Federal já se manifestou em mais de uma ocasião pela impossibilidade de creditamento por despesas com planos de saúde no atual sistema tributário.
Em uma Solução de Consulta de julho de 2023, o coordenador-geral de tributação do órgão, Rodrigo Augusto Verly de Oliveira, afirmou que “dispêndios com assistência à saúde prestada por pessoa jurídica não são considerados insumos e, por conseguinte, não geram créditos da Contribuição do PIS/Pasep, ainda que decorra de norma contida em convenção ou acordo coletivo de trabalho”.
“Não vai ter mudança em relação a como já funciona”, diz João Eloi Olenike, presidente do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT). “Se a empresa está fazendo uma concessão, e essa concessão não traz um benefício operacional para ela, isso está fora de qualquer tipo de crédito”, explica.
Apesar disso, o tema gerou debate já na apresentação do PLP 68 à imprensa, no fim de abril. Na ocasião, Bernard Appy, secretário especial para a reforma tributária do Ministério da Fazenda, afirmou que a proposta procurou tratar de forma isonômica a contratação de planos por pessoas físicas e jurídicas.
“Eu sou um trabalhador, minha empresa não me dá o plano de saúde e aí vou ter que ir lá e contratar. Eu vou pagar imposto. Por que, se a empresa contrata o mesmo plano de saúde para mim, ela não tem que pagar imposto?”, questionou Appy.
Na semana passada, durante audiência pública na Câmara dos Deputados, alguns deputados questionaram o secretário sobre o assunto. Fernando Monteiro (PP-PE) citou o risco de a mudança sobrecarregar o sistema público. “Quando a gente tira as pessoas do plano de saúde, traz para o SUS”, disse. Appy voltou a negar qualquer prejuízo às operadoras.
O PLP 68 prevê um regime diferenciado de tributação para planos de saúde, que inclui uma alíquota reduzida em 60% sobre a taxação de referência. Caso a tributação total de IBS e CBS fique em 26,5%, conforme projetado pelo governo, o porcentual recolhido das operadoras de saúde suplementar ficaria em torno de 10,6%.
Associação de planos de saúde diz que haverá bitributação
O presidente da Abramge diz, no entanto, que o setor será prejudicado ainda pela bitributação, o que feriria a premissa básica do sistema de Imposto sobre Valor Agregado (IVA) de não-cumulatividade. A ideia central do modelo, como o nome diz, é o recolhimento tributário apenas sobre o valor agregado a cada elo de uma cadeia de produção.
Ele entende que uma empresa contratante de plano de saúde deveria ter direito a créditos sobre o valor de IBS e CBS já pagos pela operadora. Sem isso, a companhia acumularia os 10,6% repassados pela prestadora do serviço, mais os 26,5% sobre o valor da contratação da cobertura assistencial, o que resultaria em um imposto final de quase 40% sobre o preço original do plano.
Ribeiro critica ainda o fato de a proposta do governo incluir na base de cálculo do IBS e da CBS, além dos prêmios e contraprestações, a receita financeira das empresas. “Isso é uma coisa que não existe em nenhum lugar do mundo, em qualquer país que adota o IVA”, diz.
“Toda operadora tem guardada uma reserva técnica, por força da regulação, da ANS [Agência Nacional de Saúde Suplementar], para caso a empresa quebre”, explica. “Com a reforma tributária vão passar a ser tributados os juros dessa reserva. Não tem a menor lógica.”
Na audiência da Câmara, Appy garantiu que não haverá aumento de impostos para as operadoras de plano de saúde, ressaltando que o hoje o setor já sofre a incidência de PIS, Cofins e, a depender da classificação do serviço, ISS ou IOF. “[A tributação] vai ficar 1% para cima ou para baixo. Efeito final de custo para empresa é zero”, disse o secretário.
Ele destacou ainda que o setor ainda será beneficiado com a possibilidade de recuperação de créditos com despesas administrativas, o que hoje não é permitido. “Essa questão ganhou uma dimensão que não tem na reforma tributária”, afirmou.
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