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Impulsionado pelo sucesso do auxílio emergencial – que tanto ajudou brasileiros que ficaram desamparados na crise da Covid-19 quanto colaborou para manter a economia nos eixos e alavancar a popularidade do presidente Jair Bolsonaro –, o governo quer criar o Renda Brasil, novo programa de transferência de renda. A proposta, que unifica Bolsa Família, abono salarial e seguro-defeso, tem dois grandes desafios para sair do papel.
O primeiro é fiscal: precisa caber num orçamento apertado. O modelo do auxílio emergencial não tem como ser replicado porque faltam recursos ao governo para manter tal socorro permanentemente.
Pagando um benefício de R$ 600 mensais a trabalhadores informais e população vulnerável, cinco meses de programa custaram R$ 254,2 bilhões ao governo, que atendeu mais de 65,5 milhões de pessoas diretamente.
A junção de recursos do abono e do seguro-defeso ao Bolsa Família daria ao novo programa um orçamento de R$ 50 bilhões para o ano todo. Esse valor foi gasto em um mês de auxílio emergencial.
Além disso, a gestão Bolsonaro tem um grande desafio político. Como vai viabilizar, em pouco tempo, um projeto tão ambicioso num Parlamento que já estará sobrecarregado por outros projetos também prioritários para o governo?
Até o fim do mês, a equipe econômica precisa apresentar a proposta de Orçamento para 2021 – o que permitiria até tentar encaixar a tramitação para criação do Renda Brasil com tempo para discussão, fundamental em um Congresso que tem reforçado o discurso de compromisso com o teto de gastos. Não bastasse, Paulo Guedes ainda sonha em ver a primeira fase de sua reforma tributária sair do papel neste ano.
O ministro da Economia também trabalha com outra possibilidade, conforme registrado pelo Estadão Conteúdo: emplacar a sua proposta "DDD". A ideia é desvincular (retirar os "carimbos"), desindexar (eliminar a concessão automática de reajustes) e desobrigar o pagamento de parte de despesas no Orçamento. Isso já consta de propostas enviadas anteriormente, como as PECs do Plano Mais Brasil, mas há possibilidade de serem ajustadas em novos projetos.
Outra dificuldade para o governo é o apelo político dos dois benefícios que podem acabar. O Executivo já tentou mexer no abono salarial durante a reforma da Previdência, sem sucesso – a restrição à concessão do benefício até passou pela Câmara, mas acabou barrada no Senado, onde ainda há resistências.
E o seguro-defeso, ainda que mal focalizado, atende uma parcela de população vulnerável. Isso torna o assunto sensível aos parlamentares, que temem deixar pescadores desassistidos.
Como encorpar o Bolsa Família para criar o Renda Brasil
Não é de hoje que o governo está de olho no abono salarial e seguro-defeso, e a possibilidade de criar um novo programa de assistência social, mais focalizado, seria uma boa alternativa para eliminar problemas já detectados. Mas, em termos orçamentários, o dois não seriam suficientes para engordar o Bolsa Família o suficiente para que o Renda Brasil viesse a se tornar, de fato, um programa de renda básica.
O Bolsa Família, que atende mensalmente a 14,2 milhões de famílias, tem orçamento de cerca de R$ 30 bilhões anuais. Em 2019, com o pagamento de um 13.º benefício, o programa custou R$ 33 bilhões, de acordo com dados do Tesouro Nacional – equivalente a 0,5% do PIB.
No mesmo ano, o abono salarial custou R$ 17,6 bilhões, e a estimativa inicial do governo era de atingir até 23,6 milhões de trabalhadores. O seguro-defeso, por sua vez, pagou R$ 2,8 bilhões a cerca de 700 mil pescadores – em 2019, o governo prorrogou o pagamento do auxílio por causa do vazamento de óleo que contaminou inúmeras praias do Nordeste.
Ou seja: os três programas juntos teriam orçamento de R$ 53,4 bilhões, seguindo o que foi efetivamente pago em 2019, que teve dois eventos extraordinários engrossando esse valor.
E o governo precisará mais. Se quiser aumentar o valor médio do Bolsa Família, de pouco menos de R$ 200 para perto de R$ 300, e ampliar o número de famílias beneficiadas, de 14 milhões para até 21 milhões, como tem sido aventado, será preciso perto de R$ 60 bilhões por ano.
Focalização dos programas é fundamental
A focalização do Renda Brasil pode ser o maior entrave ao programa e é por isso que é urgente que a ideia seja apresentada, para que se conheçam o público-alvo da proposta e seus custos – e, principalmente, se a União terá condições de arcar com essa despesa.
O Bolsa Família é elogiado por custar pouco e ser bem focalizado, ou seja, o dinheiro chega de fato par quem precisa – os valores médios pagos a cada família são inferiores a R$ 200 mensais. Mas, não é o que ocorre com os outros dois programas.
O abono já é um benefício voltado ao trabalhador formal, que ganha mais um salário-mínino a depender da quantidade de tempo trabalhada no ano anterior. Ainda que voltado para um público que possui renda baixa, está atendendo a uma parcela da população que tem carteira assinada, quando a realidade do país é a do trabalho informal.
Uma análise feita pela secretaria do Tesouro Nacional no ano passado ponderava que o abono foi criado para incrementar a renda dos trabalhadores que ganhavam menos, além de “devolver” uma parcela substancial da carga tributária – em tese, isso deveria estimular a formalização. Mas, não foi isso que aconteceu.
“A análise da focalização do abono salarial, entretanto, mostra uma elevada e crescente concentração do benefício nas faixas de renda mais elevadas da população”, aponta o documento. Entre 1997 e 2017, houve uma piora na focalização do programa. Em 1997, os 30% mais pobres recebiam cerca de 24% do abono. Depois de 20 anos, essas famílias mais pobres recebiam apenas 17% do benefício. A avaliação é que isso ocorreu por causa da valorização do salário mínimo.
O Tesouro ainda alertou para o crescimento das despesas com o abono, vinculado aos reajustes do salário mínimo. Uma projeção apontava que no período entre 2018 e 2030, haveria um aumento real da despesa de 41,6%, considerando a expansão no número de trabalhadores formais – isso num cenário que avaliava apenas a saída da recessão de 2015/2016, sem contar com a crise do coronavírus.
Já o seguro-defeso, voltado para pescadores artesanais que ficam impossibilitados de trabalhar durante o período de reprodução das espécies, é um benefício previdenciário que viu seu valor multiplicar ao longo dos anos em virtude do aumento do número de beneficiários. É considerado um “reduto” de fraudes, pois é um programa de difícil governança.
A Secretaria de Avaliação, Planejamento, Energia e Loteria da Secretaria Especial da Fazenda do Ministério da Economia, publicada no ano passado, fez uma avaliação especial diagnosticando esses problemas em documento publicado no ano passado. No período de 20 anos, entre 1998 e 2018, as despesas da ação passaram de R$ 13 milhões para R$ 2,54 bilhões.
Além de fatores como inflação e aumento do salário mínimo, pesou o aumento de benefíciários: dos 31 mil em 1998, o seguro-defeso alcançou 970 mil pescadores em 2012, movimento que foi seguido de uma redução até ficar na casa das 700 mil pessoas.
A equipe considerava que o programa acabava provocando um “retorno” à atividade pesqueira artesanal, para que mais pessoas obtivessem o benefício, e que a focalização do programa impedia a sua correta fiscalização. A principal recomendação era de reformulação do programa, para que deixasse de ser benefício de natureza trabalhista e adotasse um modelo de transferência direta de renda.
“A complementação de renda só seria devida às famílias pobres, que realmente necessitassem de suplemento de renda do seguro-defeso no período de proibição de pesca, e teria montante adequado à queda de renda durante o defeso. Este novo formato permitiria a mitigação de vazamentos e maior grau de focalização em grupos vulneráveis”, aponta.
O desafio de apresentar o Renda Brasil ao Congresso
Não bastasse a dificuldade de articular a proposta do Renda Brasil em si, o governo precisa se preparar para uma discussão ampla no Congresso. Embora a proposta de ampliar o programa de transferência de renda encontre muito apoio tanto na Câmara quanto no Senado, os parlamentares estão fincando o pé em relação ao compromisso com a manutenção do teto de gastos, ainda mais que o deslumbre de Jair Bolsonaro com a possibilidade de conversão de apoiadores e votos com a medida já chamou a atenção. A extinção dos benefícios também traz um apelo político sensível aos parlamentares.
"Não poderemos incorrer no risco do caminho fácil e propor gastos sem medir as consequências sobre quem vai pagar a conta. Cortar, por exemplo, o abono salarial ou o seguro-defeso vai impactar enormemente a população também vulnerável, também de baixa renda. Um sofrimento não compensa o outro", disse à Gazeta do Povo a senadora Simone Tebet (MDB-MS), presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa.
Isso reforça que a discussão da questão não é tão simples, e faz rememorar o episódio da restrição na concessão do abono salarial, proposta pelo governo junto com a reforma da Previdência. O objetivo era liberar o pagamento do abono apenas para quem recebesse até um salário mínimo (na época, R$ 998). Os deputados aprovaram a mudança, mas elevaram a faixa de salário para R$ 1.364,43 por mês. Na sequência, no entanto, a iniciativa acabou rechaçada pelos senadores, que suprimiram o trecho do texto aprovado e mantiveram o pagamento do abono para quem ganha até dois salários mínimos.
A demora entre o anúncio e envio da proposta pelo governo também provoca alguns ruídos com os parlamentares. Em entrevista à TV Tropical, do Rio Grande do Norte, na segunda-feira (17), o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), ressaltou que os deputados estão esperando a apresentação da proposta do governo para que seja possível fazer um debate já de olho em 2021. “O que precisamos é, olhando o próximo ano, organizar algo que garanta as famílias mais vulneráveis uma condição mínima, uma renda mínima, que de ser emergencial e se torne permanente”, avaliou.
Para isso, Maia cobrou dados técnicos para que não haja erros na formulação do novo programa. “Nós temos que entender que parte da sociedade é essa, quantos milhões de brasileiros, quem são e qual é o valor que o governo federal tem condições de manter do auxílio, da transformação do Bolsa Família, para um programa mais amplo que o atual”, defende.
Na terça (18), em conversa com jornalistas, o presidente da Câmara reforçou o pedido para que o projeto seja enviado logo. "Governo quer acabar com o seguro-defeso, o abono salarial, cortar os recursos do sistema S. O governo tem base para fazer isso? Isso é que precisa avaliar primeiro", disse.
A avaliação da senadora Simone Tebet segue a mesma linha: o governo precisa apresentar alternativas de onde vai tirar o dinheiro para bancar o novo programa. "Não podemos 'inovar' com mais despesas, aumentar investimentos, furar o teto de gasto e achar que é só colocar tudo no bolo da reforma tributária que estará resolvido. A conta não fecha", resume.
Ela é taxativa ao frisar que o Congresso não vai aprovar mais impostos para a classe média. A expectativa da senadora é de que o Executivo apresente alternativas de ampliação da arrecadação que fujam da simples criação de novos tributos. Como exemplos, ela cita a discussão da taxação de lucros e dividendos, importante para migrar a tributação de consumo para renda e patrimônio, de ações efetivas contra sonegação e análise do contencioso (judicial e administrativo).
"Todos os números necessários à concepção da necessária Reforma Tributária estão nos computadores do Governo Federal, a quem cabe, por isso, a 'espinha dorsal' da proposta, e não apenas 'vértebras' isoladas. É o que ainda estamos aguardando", ressalta.