É recorrente no discurso do ministro da Economia, Paulo Guedes, a importância de a pandemia haver exposto milhões de brasileiros "invisíveis", que estavam fora do radar do governo federal e que agora eram beneficiados com o auxílio emergencial. Nova análise feita por pesquisadores da Fundação Getulio Vargas (FGV) mostra quem são esses 38 milhões de brasileiros, que já estão sendo impactados pela redução do valor do benefício, e ficarão desassistidos no próximo ano sem auxílio, sem poderem ser enquadrados no Bolsa Família e assistindo ao impasse sobre o financiamento do Renda Cidadã sem entender se farão parte do novo programa.
A análise foi conduzida pelo professor Lauro Gonzalez, coordenador do Centro de Estudos de Microfinanças e Inclusão Financeira da FGV (FGVcemif), e pelos pesquisadores do centro Bruno Barreira e Leonardo José Pereira. Eles se debruçaram sobre os dados do próprio governo para entender melhor o perfil dos 38 milhões de brasileiros invisíveis.
“É um grupo de renda relativamente baixa, com baixa escolaridade e que está na economia informal, bastante sujeito às intempéries porque desenvolvem as atividades da economia do bico. É como se costeassem o alambrado da pobreza, mas não são necessariamente detectados pelos programas do governo”, resumo Gonzalez.
Quem são os invisíveis que recebem o auxílio emergencial
Por meio dos dados consolidados da primeira prestação de contas do governo sobre quem recebeu o auxílio emergencial – benefício de R$ 600 e com parcelas até o fim do ano de R$ 300 para trabalhadores informais e população vulnerável –, os pesquisadores constataram que o grupo dos invisíveis representa 61% do total de beneficiários.
Eles não recebem Bolsa Família ou outro tipo de ajuda, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC), tampouco estão no Cadastro Único. A conclusão de que são vulneráveis e estão na margem da pobreza se dá pela análise de três pontos principais:
- 64% vivem de “bicos” e estão inseridos de forma bastante precária no mercado de trabalho;
- 74% declaram ter renda usual que não excede R$ 1.254 mensais, um pouco mais do que o salário mínimo atual (R$ 1.045);
- 55% estudaram no máximo até o ensino fundamental, o que limita algumas opções de trabalho.
Na avaliação de Gonzalez, esse perfil acaba contrariando uma expectativa inicial de que essas pessoas, que não eram detectadas pelos programas de governo, tinham uma posição e condições bastantes melhores que as dos beneficiários de transferência de renda.
Essa vulnerabilidade dos informais também é confirmada pela análise dos efeitos do auxílio emergencial sobre a renda usual deste grupo: a situação é muito semelhante à de quem faz parte de algum programa do governo.
Para esse grupo, se não houvesse esse socorro, a renda teria encolhido, em média, 12% na comparação com os ganhos anteriores à pandemia. Com o auxílio, o ganho médio avança em 38%. A análise também ressalta que o aumento de renda é maior quando se faz o recorte por gênero. Como as mulheres chefes de família poderiam acumular até dois pagamentos por mês, o incremento nos ganhos médios mensais foi de 52%.
“Esse acréscimo de renda é muito parecido para quem está ou não no Cadastro Único”, observa Gonzalez. Uma das primeiras análises dos pesquisadores já apontava que o auxílio emergencial poderia incrementar a renda dos informais em até 50%, na comparação com o período pré-pandemia.
Além disso, a pesquisa também detectou, analisando a movimentação dos pagamentos e do mercado de trabalho em julho e agosto, que a perda de rendimento foi diminuindo à medida que a atividade econômica era retomada – passou de 14% de perda média em julho para 11% em agosto, considerando todos os trabalhadores, e de 21% para 18% no mesmo período, mas considerando apenas os informais.
Ainda assim, o ganho de renda representado pelo pagamento do benefício é significativo. Para os trabalhadores em geral, chegou a 37% de incremento ante 29% dos primeiros levantamentos. Para os informais, o ganho de renda passou de 39% em julho para 43% em agosto.
Boa parte desse dinheiro extra acabou sendo revertido em consumo imediato. Ainda não se sabe quantos desses beneficiários conseguiram poupar algum valor, nem qual será o efeito dessa eventual poupança no futuro.
Indefinição sobre Renda Cidadã embola situação dos invisíveis
Conhecer melhor o perfil desses invisíveis mostra que o desafio para reformulação do Bolsa Família vai muito além da fonte de financiamento, motivo da última polêmica envolvendo o Renda Cidadã, mais recente proposta do governo. A ideia apresentada pelo senador Márcio Bittar (MDB-AC), que será o relator deste projeto, era de incrementar o orçamento do Bolsa Família com recursos de precatórios e Fundeb.
A sugestão de uso dessa verba causou fortes reações negativas no mercado financeiro, entre parlamentares e entidades da sociedade civil. O entendimento é de que o governo estava tentando burlar o teto de gastos – mecanismo que contém o avanço dos gastos públicos limitando aumentos à inflação.
O objetivo principal do governo é de oferecer um novo programa de transferência de renda com pagamento de benefício no mesmo patamar do auxílio emergencial, que foi prorrogado para mais quatro parcelas de R$ 300. O Bolsa Família paga, em média, R$ 190 mensais.
Gonzalez avalia que nesta corrida, cheia de idas e vindas pelo que vai acontecer no ano que vem, os invisíveis estão sendo esquecidos, ainda que lembrados no discurso.
As discussões sobre o Renda Cidadã seguem girando em torno do financiamento, que é extremamente relevante para um país com situação fiscal delicada como é a do Brasil. Mas pouco se fala sobre as condicionalidades do programa. Se a intenção do governo é ampliar o Bolsa Família e acomodar esses invisíveis que hoje recebem o auxílio emergencial, terá de estabelecer os critérios para ingresso na ação. Nada se discutiu publicamente até o momento.
Em que pese a importância do teto de gastos para o equilíbrio fiscal, Gonzalez avalia que ele é um mecanismo inflexível e que pode exigir uma revisão antes do prazo para que seja cumprido. Essa eventual mudança seria feita para poder tonar o equilíbrio das contas públicas crível e compatível com um programa de transferência de renda que leve em consideração as transformações recentes da economia brasileira.
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