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Novo Bolsa Família

Governo quer financiar o Renda Cidadã com Fundeb e precatórios. Mas ideia não é tão boa assim

Para viabilizar o Renda Cidadã, anunciado por Bolsonaro, ministros e parlamentares, governo vai usar recursos do Fundeb e precatórios
Para viabilizar o Renda Cidadã, anunciado por Bolsonaro, ministros e parlamentares, governo vai usar recursos do Fundeb e precatórios (Foto: Alan Santos/PR)

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Criar um novo programa de transferência de renda para substituir o Bolsa Família, que é bem focalizado e referência internacional na área, já é um desafio e tanto. Adicione-se à empreitada uma situação fiscal complexa do país, que não permite o aumento do gasto público, e o veto do presidente Jair Bolsonaro à remodelação de programas considerados ineficientes pelo governo, como abono salarial e seguro-defeso, e a pressão aumenta. A solução apresentada pelo governo para viabilizar o Renda Cidadã foi criativa e esquisita: turbinar o orçamento do programa com recursos de precatórios e do Fundeb, o Fundo para Desenvolvimento da Educação Básica.

A questão do financiamento é primordial para que o Renda Cidadã saia do papel. O desejo de Bolsonaro é viabilizar o novo programa para atender mais pessoas e com uma bolsa maior, de olho no sucesso do auxílio emergencial que fez sua popularidade disparar junto a um público que não compunha seu eleitorado raiz.

Por outro lado, não há recursos para tornar realidade esse desejo sem que isso implique no remanejamento de recursos, e o presidente também sabe da importância em manter o compromisso com a responsabilidade fiscal e respeito ao teto de gastos com parte relevante da sua base de apoio.

Em uma primeira leitura, usar recursos dos precatórios e do Fundeb de fato viabilizam a construção do Renda Cidadã sem desrespeitar as atuais regras fiscais. Mas juristas e economistas apontam aspectos controversos da nova proposta de financiamento do programa de transferência de renda.

Relator da proposta, o senador Márcio Bittar (DEM-AC) deu uma explicação concisa no anúncio feito nesta segunda-feira (28). O Orçamento para 2021 prevê R$ 55 bilhões para o pagamento de precatórios – são valores que a União precisa pagar para cidadãos ou empresas, após sentença definitiva na Justiça.

Atualmente, é possível fixar um valor que varia entre 1% e 2% da receita corrente líquida para pagar os precatórios. A sugestão é fixar esse porcentual em 2% e usar parte dos recursos para efetivamente liquidar os precatórios. “O que sobrar vai para o Renda Cidadã”, explicou.

Já o novo Fundeb, que recentemente foi renovado e passou por modificações no Congresso, destinará 5% do recurso para ajudar famílias com filhos em idade escolar que farão parte do programa. Bittar não detalhou como isso vai ser operacionalizado. O Fundeb não faz parte do cálculo que limita o avanço das despesas do governo para o cumprimento do teto de gastos, porque são transferências constitucionais que formam o fundo.

As recentes alterações feitas no Legislativo ampliaram de 10% para 26% a participação da União no fundo, que se tornou permanente. Durante a votação do novo Fundeb, a equipe econômica chegou a propor que parte do fundo fosse destinada ao então programa da vez, o Renda Brasil, mas a sugestão foi rechaçada pelo Congresso e a falta de opção para financiamento ajudou a sepultar de vez a primeira versão da reformulação do Bolsa Família.

Uso do Fundeb é drible no teto de gastos

A sugestão de usar recursos dos precatórios e, principalmente, do Fundeb foi considerada estranha por muitas pessoas que acompanham de perto a questão do Orçamento e das contas públicas. O analista de contas públicas da Tendências Consultoria, Fábio Klein, lembra que o Fundeb é um fundo com destinação específica, para financiar educação básica.

Ainda que haja estudantes de classe média ou média baixa neste grupo, o analista não deixa de fazer o paralelo repetido exaustivamente por Bolsonaro, de que não "tiraria recursos dos pobres para dar aos paupérrimos".

“Neste caso, estaria tirando do estudante para dar ao paupérrimo, não fugiria à regra. Sendo a educação uma área tão essencial, acho muito esquisita [a escolha]”, pondera. Klein ainda defende que ao se falar em pobreza, não se deve ficar atado apenas à ideia da baixa renda. “Pobreza é questão de baixa educação, baixa saúde, baixa infraestrutura, baixa cidadania. É algo multidimensional, e é claro que entra renda aí”, aponta.

Para ele, a explicação de escolher o Fundeb como fonte de financiamento para o Renda Cidadã passa pelo fato de o fundo ser composto por transferência constitucional federal, e não entrar como uma despesa sujeita ao teto de gastos. Klein explica que, grosso modo, esses recursos não são despesas, mas sim dedução de receita, por isso não entram na conta do teto.

“A preocupação de não furar o teto é boa, mas se for fazer isso dando um drible na educação, uma pedalada, não faz sentido do ponto de vista de política pública”, pondera. O analista ainda considera o drible no teto como uma saída não tão nobre para o governo.

Pelo Twitter, Felipe Salto, diretor executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão ligado ao Senado Federal, externou raciocínio semelhante quanto ao uso dos recursos do Fundeb. “É preocupante, pois pode representar um 'bypass' no teto de gastos”, avalia.

Bruno Dantas, ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), também usou a rede social para chamar a atenção sobre o compromisso com uma gestão fiscal responsável e o uso dos recursos do fundo para educação. “A EC 95 [emenda constitucional que criou a regra do teto] exclui do teto de gastos a despesa com o Fundeb. Inflar o Fundeb para, em seguida, dele tirar 5% para financiar outro programa, é rigorosamente o mesmo que inserir mais uma exceção no parágrafo 6º do art. 107. Por que não fazê-lo às claras”, questiona.

A professora de Economia do Insper Juliana Inhasz vê a escolha do Fundeb como uma forma de contornar e remanejar o orçamento, aproveitando que o fundo não está sujeito ao teto. “É um pedaço pequeno, mas a gente tem que ficar atento. É uma forma de furar o teto no sentido de pegar parte dos recursos para financiar um programa de garantia de renda à população, que será feito dois anos antes da eleição e que vai garantir uma popularidade boa ao presidente com um recurso de fora do teto dos gastos”, opina.

Recursos dos precatórios não impactam gasto público

A solução de usar parte do dinheiro reservado para pagamento de precatórios não é novidade, mas não é uma boa alternativa. “Limitar pagamento de precatórios é eufemismo para dizer que se empurrará com a barriga um pedaço relevante dessas despesas (obrigatórias). Não se cancelou um centavo de gasto”, escreveu Felipe Salto, da IFI, no Twitter.

O ministro do TCU Bruno Dantas também considera o uso dessa verba como um truque para esconder a fuga do testo de gastos. A avaliação é que a medida reduz a despesa primária artificialmente, uma vez que a dívida não desaparece, apenas é adiada para o próximo ano. “Em vez do teto estimular economia de dinheiro, estimulou a criatividade”, lamentou.

O analista da Tendências Fábio Klein considera a alternativa ruim, ainda mais por considerar a gestão dos precatórios péssima e um exemplo de como o Estado brasileiro é ruim. Isso porque essa dívida dos precatórios é gerada a partir de uma omissão do próprio Estado em relação ao cidadão ou a uma empresa, e esse recurso só está “disponível” por causa da demora do Estado em ressarcir a outra parte por essa falha.

“Você pode até ter uma certa volatilidade desse financiamento. Imagina se a gente resolve o problema do precatório?” Para ele, essa questão ainda gera um efeito de bola de neve, ao jogar para o futuro uma dívida que o próprio Estado criou em prejuízo a algum cidadão.

O dilema do financiamento do Renda Cidadã

A grande questão da reformulação dos programas de transferência de renda pela gestão Bolsonaro passa pelo financiamento dessas ações. “O Renda Cidadã é a continuação do auxílio emergencial em nova roupagem. O que o presidente quer é garantir recursos à população com o fim do auxílio, mas em um valor mais baixo. O grande problema continua sendo o financiamento, porque não temos dinheiro”, lembra Juliana Inhasz, do Insper.

Na visão de Fábio Klein, da Tendências, essa é mais uma maneira de o governo dar um jeito para financiar um desejo da política. “Não tem saída fácil e como vem com uma saída dessa, isso gera uma avaliação negativa do governo, de que está meio perdido, e mostra uma incapacidade de resolver um problema”, comenta. Prova disso foi a reação do mercado após o anúncio: bolsa caiu e dólar subiu, típico do mau humor do investidor.

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