O mercado financeiro reagiu mal ao Renda Cidadã, proposta do novo Bolsa Família do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) apresentada na segunda-feira (28). Três indicadores principais explicitam o mau humor dos investidores em relação ao anúncio do governo: queda na Bolsa de Valores, alta do dólar (que já estava impulsionado por fatores internacionais) e a disparada na taxa de juros futuros.
Apontado como um dos fiadores do governo, especialmente por apostar nas ideias liberais do "superministro" Paulo Guedes (Economia), o mercado vem dando sinais de que a complacência com a gestão está no limite e a preocupação maior é com o quadro fiscal do país para os próximos anos.
Esse movimento, que começou no dia do anúncio do Renda Cidadã, prossegue. Mas há indícios de que essa mensagem incomodou o presidente Jair Bolsonaro. Na terça (29), ele mandou um recado ao “pessoal do mercado”. “Se o Brasil for mal, todo mundo vai mal. Aquele ditado ‘estamos no mesmo barco’ é o mais claro que existe no momento. O Brasil é um só, se começar a dar problema, todos sofrem. O pessoal do mercado não vai ter mais renda. Vocês vivem disso, de aplicação. Nós queremos obviamente estar de bem com todo mundo, mas eu peço: ajudem com sugestões, não com críticas”, declarou a apoiadores.
Não adiantou: o mau humor persistiu na terça e nesta quarta-feira (30), a abertura do mercado começou em baixa. Uma reação positiva veio após o anúncio do cancelamento da sessão do Congresso que avaliaria vetos presidenciais, como a desoneração da folha de pagamento. Era esperada a derrubada de um veto, que provocaria um impacto de R$ 5 bilhões nas contas públicas. O resultado do Caged, indicador de emprego formal que será anunciado nesta tarde, pode ajudar a conter os ânimos, caso confirme o cenário de retomada do mercado de trabalho iniciado há poucos meses.
Os três principais recados do mercado na reação ao Renda Cidadã
A complacência com que o mercado reage aos anúncios do governo parece estar acabando, e os movimentos que demonstram essa insatisfação estão se tornando mais frequentes. Para isso, não basta só avaliar o movimento de sobe e desce do Ibovespa e dólar. O recado mais forte aparece na forma das taxa dos contratos de Depósito Interfinanceiro (DI), que indicam os juros futuros.
A volatilidade da Bolsa e do dólar, primeiros reflexos da insatisfação com as propostas apresentadas, demonstram a reação mais imediata dos investidores, mas também estão sujeitas a variações internacionais – como a eleição presidencial dos Estados Unidos, que afeta diretamente o câmbio.
Mas os juros futuros são os mais preocupantes. O governo Bolsonaro sempre ressalta que atualmente o Brasil tem a taxa de juros básica, a Selic, no menor patamar histórico – está fixada em 2% ao ano. A questão é que essa não é a única taxa que vigora.
Os juros futuros estão atrelados a investimentos de longo prazo, inclusive títulos da dívida pública, como os do Tesouro Direto. O aumento dessas taxas futuras indicam aumento dos riscos e uma desconfiança do mercado em relação a capacidade de o governo manter o compromisso fiscal e honrar o pagamento dos títulos, e o movimento já vinha se intensificado desde agosto também.
O que causa o mau humor do capital
Esse mau humor do mercado é causado pela proposta de financiamento do Renda Cidadã. O governo quer usar recursos dos precatórios – dívidas que a União tem com pessoas e empresas, reconhecidas definitivamente pela Justiça – e do Fundeb, o fundo para educação básica que passou por recentes modificações.
A maior parte dos analistas viu nessa alternativa uma tentativa de “pedalada”, de drible no teto de gastos, mecanismo que limita o avanço das despesas da União à inflação. A situação fiscal do país, que vinha melhorando com as medidas de austeridade adotadas após a última recessão, piorou muito por causa do enfrentamento à pandemia da Covid-19. Porém, nesse caso, o aumento do gasto público é compreendido como necessário e justificável.
O que desagrada o mercado é a falta de um compromisso claro de responsabilidade fiscal para os anos vindouros e tentativas de furar ou burlar o teto de gastos são muito mal recebidas – esse movimento já ocorreu em agosto. Por outro lado, o comprometimento com agendas reformistas e responsabilidade fiscal provoca o efeito inverso, como ocorreu com o anúncio da reforma administrativa.
Enquanto a ala política do governo se apressa em defender a proposta – as principais lideranças do Congresso, como o deputado Ricardo Barros (PP-PR) e o senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), avalizam a ideia –, a avaliação econômica já não é tão boa.
Há relatos de que o anúncio incomodou a ala mais liberal do Ministério da Economia, e o secretário do Tesouro Nacional, Bruno Funchal, declarou publicamente que a opção por limitar os precatórios para financiar o Renda cidadã foi uma “solução política”, ainda que tenha negado que o mecanismo seja um tipo de “contabilidade criativa”.
O Banco Fibra, em relatório assinado pelo economista-chefe, Cristiano Oliveira, manifestou preocupação com essa forma de financiamento, associada a um agravamento do quadro fiscal, especialmente em relação ao uso dos precatórios. “Na prática, haveria um aumento de gasto, uma vez que as despesas com sentenças judiciais não podem ser canceladas, apenas adiadas”, diz o economista.
Enquanto isso, os recursos do Fundeb, que são um tipo de transferência constitucional, não estão sujeitos ao cumprimento das regras do teto de gastos. “Com isso, o aumento de despesa com o Renda Cidadã, além de não ser financiado por novas receitas ou corte de gastos, também 'driblaria' a regra do teto”, afirma Oliveira.
A avaliação do analista de contas públicas da Tendências Consultoria Fábio Klein é de que não há uma saída fácil para a questão fiscal do país, mas esse tipo de sugestão – de usar recursos dos precatórios e Fundeb para financiar um programa de transferência de renda – gera a avaliação negativa do governo, que indica estar perdido e demonstra incapacidade em resolver um problema.
O cenário concretiza o embate entre a cabeça política (que obviamente avalia o peso político e eleitoral das ações que serão tomadas) e a cabeça econômica (mais presa à tentativa de manutenção do equilíbrio fiscal com as restrições existentes e pouco sensível às reações sociais de medidas de austeridade) do governo.
“Ao não conseguir encontrar solução para esse dilema, aparecem soluções esquisitas, ruins. Isso não é bom, gera uma avaliação negativa a respeito da capacidade de o governo efetivamente fazer suas escolhas de uma maneira efetiva, responsável e convincente”, avalia Klein.
A economista da Coface para América Latina, Patricia Krause, lembra que o mercado já aguardava o anúncio da forma de financiamento para a ampliação do programa de transferência de renda do governo e, realmente, a forma não agradou. “Com os precatórios, você está deixando de pagar uma dívida, que é devida, para financiar outro programa. Você não encontrou uma forma de financiamento para o Renda Cidadã. Isso é extremamente negativo e vai totalmente contra a responsabilidade fiscal”, analisa.
A avaliação é semelhante à de Gustavo Akamine, analista fundamentalista da Constância Investimentos. Para ele, a reação do mercado ocorreu por dois fatores principais, relacionados à sugestão de financiamento do Renda Cidadã: sinalização ruim do governo em relação ao compromisso com o equilíbrio fiscal a médio e longo prazo, e a manobra heterodoxa se tornar um novo flanco para questionamentos por tribunais superiores.
“Isso mostra que o governo não procurou uma maneira clara, reduzindo despesa ou procurando alguma outra forma, de viabilizar esse programa. Foi uma artimanha”, avalia. Para ele, no longo prazo o governo gastará e se endividará mais, principalmente com os precatórios, porque estará apenas trabalhando a rolagem da dívida.
“Se tem dificuldade para viabilizar esse programa, de maneira convencional, que não aumente despesa, é uma sinalização que o resto do ajuste que precisa ser feito para o equilíbrio fiscal será mais difícil e não é prioridade do governo. A prioridade é encontrar alguma forma viável para fazer um programa popular”, analisa. Esse ruído sobre a prioridade – popularidade ou equilíbrio fiscal – afeta a movimentação de mercado.
O estrategista da Terra Investimentos, Marco Harbich, pontua que a sugestão de financiamento acabou confirmando que o governo não tem os recursos para honrar os pagamentos do novo programa.
Além disso, as reformas que estão sendo propostas, em geral, não têm sido satisfatórias. Ele cita como exemplo a reforma administrativa, que não abrange membros de poderes e atuais servidores e que, na prática, não diminuirá imediatamente os gastos com pessoal.
“Para que o governo criasse esta despesa recorrente teria que criar uma receita recorrente, o que não foi feito e não tem a expectativa de onde seria. Isso gera muita incerteza”, diz.
Nos últimos dias, o governo vem reafirmando publicamente que manterá essa proposta para levar ao Congresso. Mas é fato que a reação geral de desagrado – além do mercado financeiro, vários parlamentares e entidades da sociedade civil demonstraram descontentamento e discordância em relação à sugestão – aumentou a tensão.
O governo tem feito reuniões de avaliação sobre o Renda Cidadã, pensando em eventuais ajustes em relação ao desenho do novo programa. Resta saber o que será apresentado. E quando.
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