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Apesar da pandemia e de toda a atipicidade a renda do brasileiro avançou em 2020, sobretudo por causa de benefícios para mitigação da crise implementados pelo governo federal, em especial o auxílio emergencial. Só que o efeito de turbinar o rendimento médio ficará restrito a este ano. Sem a continuidade do auxílio ou a ampliação do Bolsa Família, especialistas já alertam para a queda da massa de rendimentos em 2021. Na contramão, o governo está confiante na retomada da economia e do mercado de trabalho e não acredita que haverá uma retração tão acentuada.
A elevação dos rendimentos em 2020 teve efeitos concretos de aumento do consumo, avanço na taxa de poupança e até mesmo redução do indicador de extrema pobreza. Manter esses efeitos no próximo ano depende da concretização de apostas do governo – o que não será simples, na avaliação de analistas ouvidos pela Gazeta do Povo.
O cenário para 2021 ainda é marcado por muitas incertezas, tanto as relacionadas à evolução da Covid-19 quanto aos rumos que o governo tomará na política fiscal. Esses pontos serão determinantes para a trajetória de recuperação da atividade econômica e do mercado de trabalho, fundamentais para dar alguma estabilidade à renda.
A edição de novembro do monitoramento do Centro de Estudos de Microfinanças e Inclusão Financeira da FGV (FGVcemif) mostra, com base nos dados da Pnad-Covid do IBGE, que a perda média da renda do trabalho por causa da pandemia, que chegou a ser de 20% no auge das medidas de restrição, estacionou no patamar de 10%.
Levando em consideração todos os rendimentos da população, que incluem o auxílio emergencial e outros benefícios além dos salários, o cenário é totalmente distinto. O ganho médio de renda, na comparação ao período pré-pandemia, que era de alta de 29% no momento mais crítico, chegou a uma elevação de 39% na parcial de outubro.
Na avaliação do pesquisador Daniel Duque, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), o auxílio teve o mérito de mostrar que era possível criar um benefício progressivo e com regras menos rígidas que as estabelecidas em outras ações de transferência de renda, como o Bolsa Família. “Mas seu valor foi muito elevado, levando a um grande desequilíbrio fiscal nesse ano, e causará uma grande frustração de renda na população nos próximos meses”, afirma.
Para ele, milhões de brasileiros perderão parte da renda em breve, pelo fim do auxílio emergencial e do Programa de Manutenção de Emprego e Renda (BEm), que complementa a renda de trabalhadores formais que tiveram o salário reduzido. “Sem esses programas, devemos ver no início do ano uma reação negativa inicial da economia, a partir da qual veremos a real velocidade de acomodação da economia pós-pandemia”, diz.
Baque na renda virá em 2021 e será diferente em cada região
A elevação da renda já teve impactos distintos em cada região do país, e a redução também terá. O professor da FGV/EAESP e coordenador do FGVcemif, Lauro Gonzalez, lembra da diferença que os R$ 600 mensais recebidos como auxílio emergencial representam em termos de poder de compra. A capacidade de consumo de uma pessoa que recebeu o benefício e vive em uma grande cidade ou capital é menor do que daquela que mora no interior ou nos rincões do país.
Os recursos do auxílio emergencial foram mais efetivos para os moradores das regiões Norte e Nordeste do que para quem mora no Sul e Sudeste. A interrupção desse pagamento também afetará mais fortemente o primeiro grupo, já que a informalidade nessas regiões é mais forte do que no restante do país, que poderá aproveitar a já desenhada retomada do mercado de trabalho formal.
Esse cenário aparece nas análises da Tendências Consultoria, que projeta um avanço de 4,5% da massa de renda total em 2020, seguido de uma queda de 4,3% no ano que vem. Conforme o economista Lucas Assis, tanto a elevação quanto a retração serão sentidas de formas diferentes a depender da região e da classe social.
Enquanto neste ano a classe A viu a renda total encolher, em 2021 ela deverá ser beneficiada com um incremento. As classes D e E, em contrapartida, tiveram avanços de 27,1% na massa de renda em 2020, mas sofrerão com uma redução de 18,9% no próximo ano.
A consultoria avalia a movimentação da massa total de rendimentos, que inclui, além do salário, ganhos com auxílios do governo (como transferências do Bolsa Família e do auxílio emergencial), aposentadoria, aluguel, rendimento de aplicações, aluguel e bolsas de estudo. A diferença para a renda média "convencional" é que esta normalmente só olha para os ganhos obtidos com o trabalho.
“As pessoas ocupadas que pertencem às classes D e E estão em postos de trabalho de maior vulnerabilidade econômica. São pessoas com ocupações mais informais, que habitam domicílios em extrema pobreza, trabalham em setores mais atingidos pela pandemia, como serviços e comércio, ou trabalham em empresas de menor porte. No próximo ano, a expectativa é de lenta retomada do mercado de trabalho, o que para as pessoas em situação de vulnerabilidade é mais negativa, e corrobora a tese que vão ter queda de renda”, avalia o economista.
Assis comenta que os cenários do Norte e Nordeste são semelhantes, porque foram as regiões mais beneficiadas pelos auxílios. No Norte, a projeção mostra que a massa de renda deve fechar 2020 com um avanço de 16,7%, mas irá recuar 10,8% no ano que vem. Entre as classes D e E dessa região, a situação é mais acentuada: os rendimentos totais crescem 44,2% este ano e se retraem 27% no próximo.
No Nordeste, a expectativa sobre os rendimentos totais é de alta de 13,6% esse ano, seguida de retração de 12,3% em 2021. Nas classes D e E nordestinas, deve haver um avanço de 42,2% no volume de rendimentos em 2020, seguido de uma queda de 26,8%.
Cenários são mais negativos para as classes mais vulneráveis
“Os cenários para as classes mais vulneráveis são mais negativos, com a expectativa de fim dos repasses e reestruturação do Bolsa Família. Isso não deve ser suficiente para manutenção”, diz o analista da Tendências. A consultoria projeta que deve haver migração da classe C para as mais pobres, já que muitas dessas pessoas não foram atendidas pelos programas emergenciais e perderam renda este ano.
A classe A, por sua vez, viu a massa de rendimentos total cair 5% neste ano, mas ela deve avançar 3,9% no ano que vem. Assis explica que isso se deve à estrutura da classe A, composta por empregadores e donos de negócios, que têm rendimentos ligados ao desempenho de lucro das empresas.
“Em momentos de crise, a classe A tende a ter pior desempenho em relação a outras classes, mas na retomada ela toma dianteira no processo de recuperação, porque as empresas buscam retomar ao patamar histórico de lucro antes de voltar a contratar”, diz.
Governo vê retomada com otimismo
Na nota informativa “Considerações sobre a política econômica: objetivos e desafios para 2021”, publicada em 5 de novembro, o Ministério da Economia reconhece que analistas têm dúvidas sobre a capacidade de a economia brasileira manter a retomada, tanto pela redução do auxílio emergencial, que no último trimestre será de R$ 300 e não mais de R$ 600, e também pelo fim dos estímulos governamentais.
Além do auxílio, o governo trabalhou com a manutenção de empregos pelo programa BEm, que permitiu redução de jornada e salário com a premissa de manter o emprego formal, e outras ações de financiamento de pequenos negócios e até mesmo saques do FGTS.
A avaliação da pasta é de que todas essas ações acabaram por injetar valores significativos na economia. “Uma conta conservadora nos leva a concluir que em decorrência do AEI [auxílio emergencial], da extensão do AEI e do saque emergencial do FGTS ainda podem ingressar mais de R$ 130 bilhões na economia até o final do ano”, diz o texto, que considera o montante suficiente para fechar este ano.
Para 2021, o governo está contando com a poupança formada especialmente pelas classes média e alta e a retomada do emprego. E pondera que o avanço da taxa de desemprego ocorreu no setor informal, que usualmente era menos afetado por crises no país – em tese, a recuperação das ocupações informais tende a ser mais rápida.
Em crises anteriores, a “economia do bico” é que absorvia as pessoas que perdiam seus empregos formais. O Ministério da Economia considera essa informação relevante porque “o setor informal apresenta muito mais flexibilidade do que o setor formal, então espera-se uma queda desse desemprego com a reabertura da economia”.
A aposta na redução do desemprego, principalmente no setor informal em razão da redução de medidas de distanciamento social, ainda conta com o retorno da taxa de ocupação da mão de obra para os patamares pré-crise. Com emprego, a renda estaria mantida e garantiria uma retomada mais robusta, avalia a pasta.
O coordenador do FGVcemif, Lauro Gonzalez, vê com reservas esse otimismo do governo. Se, por um lado, esse é o comportamento natural de governos, que tentam “semear” essa ideia de bonança para colher avanços à frente, por outro, a realidade é dura.
“O efeito benéfico do auxílio é grande e eu não vejo, no curtíssimo prazo, a menos que a economia volte à normalidade, uma compensação para seu término”, diz.
Ele também lança luz sobre o cenário do emprego antes da pandemia. “Se, tecnicamente, o Brasil não estava em um cenário recessivo, não dá pra dizer que a gente estava num cenário expansivo. Estávamos em um voo de galinha, com a economia crescendo muito pouco”, diz.
Para ele, a atual conjuntura demonstra falta de estratégia do governo em várias frentes, incluindo a indecisão sobre a reformulação do Bolsa Família e conflitos internos pela questão fiscal, já que há um racha entre a ala fiscalista, que defende o cumprimento do teto de gastos, e a desenvolvimentista, que aposta no investimento público como estímulo da economia. “O que nós vemos é uma gangorra em torno do assunto, cheia de idas e vindas, mas não temos nada”, diz.