As perspectivas econômicas em meio à crise do novo coronavírus são as piores: no Brasil, segundo o Boletim Focus, do Banco Central, já há analistas que preveem uma queda de mais de 10% no Produto Interno Bruto (PIB) em 2020. A recessão pode acabar não sendo tão profunda quanto esperam os mais pessimistas, mas é fato que a atividade econômica sofrerá forte retração neste ano – resultado de uma combinação que vai além de fatores econômicos e envolve, também, questões políticas.
O impacto da crise, entretanto, não será homogêneo entre os distintos setores da economia. Até aqui, enquanto as exportações levaram a ganhos em setores como o agronegócio, segmentos como o de comércio e serviços ainda sangram após mais de quatro meses da chegada do vírus em território brasileiro.
Os motivos não são difíceis de compreender: para combater a pandemia, muitos estados e municípios optaram por determinar o fechamento de estabelecimentos comerciais, buscando evitar aglomerações e a disseminação da Covid-19. Na outra ponta, mesmo em locais em que o comércio permaneceu aberto, os consumidores ficaram receosos em gastar naquilo que não é essencial, com medo da perspectiva de piora da economia e do aumento do desemprego.
Os números do setor revelam o tamanho do baque. A projeção da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), com base em dados do IBGE, é de retração de 10,1% no volume de vendas em 2020. Desconsiderando os setores automotivo e de materiais de construção, a queda prevista é de 8,7%.
Dados da Pesquisa Mensal do Comércio (PMC), produzida pelo IBGE, mostram que houve recuperação em maio, com aumento de 13,9% nas vendas em relação a abril – a maior alta registrada em 20 anos. O crescimento, entretanto, ocorreu sobre uma base de comparação fraca: em abril, houve queda recorde no volume de vendas do varejo, de 16,8%, segundo o próprio IBGE. Com isso, desde o início do ano, o varejo acumula queda de 3,9%. Nos últimos 12 meses, o cenário é de estabilidade.
“Foi um crescimento grande percentualmente [em maio], mas temos que ver que a base de comparação foi muito baixa. Se observamos apenas o indicador mensal, temos um cenário de crescimento, mas ao olhar para os outros indicadores, como a comparação com o mesmo mês do ano anterior, vemos que o cenário é de queda”, disse Cristiano Santos, gerente da PMC, à agência de notícias do IBGE. Em relação a maio de 2019, a queda nas vendas foi de 7,2%.
Outra pesquisa, realizada pela empresa de serviços financeiros Cielo, acompanha o comportamento das vendas semana a semana. De acordo com os dados, o faturamento do varejo caiu em média 27,5% desde março, quando foi iniciado o levantamento, na comparação com o período equivalente de 2019. No setor de serviços, o impacto foi ainda mais brutal, com média de queda de mais de 60%.
Gabriel Mariotto, diretor da Cielo responsável pela pesquisa, explica, porém, que os efeitos da crise tampouco foram homogêneos se considerados os segmentos englobados pelas empresas de comércio e serviços. No que diz respeito ao varejo, os piores resultados, se considerado o acumulado desde o início das medidas de isolamento social, vêm ocorrendo na venda de bens duráveis, como itens de vestuário, móveis, eletrodomésticos e materiais para construção. “Muita gente ou perdeu o emprego ou ficou preocupada e deu uma segurada nos gastos. Quem podia, atrasou as compras”, explica.
Vendas online ajudaram algumas empresas, mas ainda são exceção
Em algumas empresas desses segmentos, os efeitos do isolamento social e da cautela dos consumidores foram contornados, ao menos em parte, por meio das vendas online. Nesse quesito, há exemplos de sucesso, em que o e-commerce chegou a promover um aumento de vendas mesmo em meio à pandemia.
É o caso do Magazine Luiza. Em abril, o crescimento de 138% nas vendas online compensou, com sobra, a queda de 84% no faturamento das lojas físicas. O resultado foi de um incremento de 7% nas vendas totais do mesmo período. Em maio, os resultados foram ainda mais impressionantes: o crescimento de 203% no e-commerce colaborou para um avanço de 46% nas vendas totais, com a ajuda da reabertura de lojas em parte do país.
Os números são expressivos, mas o Magalu já tinha forte presença digital. Leandro Soares, diretor de marketplace da empresa, explica que 50% das vendas já eram realizadas online. “Com a pandemia, tivemos que mudar rapidamente para poder atender à nova demanda. Internamente, a gente brinca que fizemos 50 semanas em cinco. Acabamos antecipando uma série de iniciativas que já íamos implementar”, explica o diretor.
Uma dessas iniciativas foi o lançamento da plataforma Parceiro Magalu, que permite que outros negócios utilizem a estrutura online do Magazine Luiza para realizar suas vendas. A ideia, de acordo com Soares, foi ajudar as lojas que tiveram que fechar e os profissionais autônomos que ficaram sem renda. “Queremos crescer muito nessa direção e digitalizar o varejo brasileiro. Temos muito interesse em oferecer ferramentas para que o pequeno varejista possa fazer suas vendas online”, afirma.
A pandemia, porém, mostrou como o objetivo do Magalu, de digitalizar o varejo brasileiro, é ousado. Mesmo que seja uma tendência e esteja cada vez mais presente na vida do consumidor, o e-commerce ainda não é regra – e, por isso, mesmo que tenha havido crescimento nas vendas pela internet, na maioria dos casos o aumento não compensou as perdas com o comércio presencial.
“Aqueles segmentos que conseguem operar por e-commerce estão sofrendo menos, mas a representatividade ainda não é relevante. As pessoas que não estão operando com bens essenciais não estão tendo volume de vendas compatível na venda online. Ainda existe uma certa insegurança das pessoas em comprar pela internet”, diz Ricardo Balkins, sócio-lider da indústria de consumer business da Deloitte Brasil.
Além da insegurança, o Brasil também tem outros entraves para o desenvolvimento de compras online, como as dificuldades no acesso à internet e o alto índice de cidadãos que não têm conta em banco – um em cada três brasileiros não têm vínculo com nenhuma instituição financeira, conforme pesquisa divulgada pelo Instituto Locomotiva em agosto de 2019. “A estratégia [de vendas online] ajudou, mas não foi o suficiente”, avalia Fabio Bentes, economista da CNC.
A tendência ruim se refletiu em datas comemorativas tradicionalmente importantes para o comércio. Só no Dia das Mães, por exemplo, a queda nas vendas foi de 60%, na comparação com o ano passado. De acordo com o cálculo mais recente divulgado pela CNC, na metade de junho o novo coronavírus já havia feito os comerciantes perderem um mês inteiro de vendas. Em julho, os prejuízos já somavam R$ 210 bilhões em 90 dias.
Na contramão do restante do comércio, supermercados cresceram na crise
Em meio à avalanche de indicadores negativos, no entanto, há, também no varejo, um segmento em que os resultados positivos não foram pontuais. As boas notícias vêm da venda de bens não duráveis, especialmente de supermercados e hipermercados. Entre esses estabelecimentos, houve aumento na procura, com média de 16% de crescimento no faturamento desde março, ainda de acordo com a pesquisa da Cielo.
João Sanzovo, presidente da Associação Brasileira de Supermercados (Abras), explica que o aumento das vendas foi promovido pelo isolamento social, que mudou os hábitos de consumo das pessoas e impulsionou a alimentação no lar.
“De acordo com o estudo Consumer Insights da Kantar, entre as mudanças mais significativas geradas pela pandemia está a inclusão de novos canais na rotina de compra da população, que agora busca fazer o abastecimento em mercadinhos de bairro, pequenos varejos e varejos tradicionais para evitar aglomeração. Também houve crescimento expressivo do mercado digital englobando todos os formatos (aplicativo, WhatsApp ou site de supermercados). Esse movimento tem revolucionado a relação dos consumidores com as marcas e produtos, e veio para ficar”, diz Sanzovo.
As mudanças no padrão de consumo se revelam em alguns dos produtos mais procurados na pandemia. A prioridade são produtos básicos, de higiene e limpeza doméstica, mas houve aumento nas compras de itens que tradicionalmente eram mais consumidos nos fins de semana, como pipoca, massa para bolos, doces e salgadinhos, além de bebidas alcoólicas.
O impulso das vendas em supermercados fez com que uma das datas comemorativas mais importantes do ano para o varejo – a Páscoa – apresentasse indicadores ruins, mas não tão impressionantes quanto os do Dia das Mães. Na ocasião, houve redução de 35% nas vendas em relação a 2019, segundo a CNC. “A queda foi muito menor na Páscoa porque o produto típico dessa data, o chocolate, é comercializado em lojas que estavam abertas”, destaca o economista Fabio Bentes.
Setor de serviços tem quadro deteriorado e reclama de inércia do governo
No setor de serviços, por outro lado, é difícil encontrar motivos para comemoração. Segundo o IBGE, em abril o setor apresentou o pior desempenho desde 2011, com queda de 11,7% na comparação com o mês anterior. Em maio, a retração foi menor, de 0,9%. A última edição da Pesquisa Mensal de Serviços aponta, ainda, para 19,7% de perdas acumuladas em quatro meses de crise – considerando o intervalo até maio.
Na pesquisa da Cielo, que considera todas as semanas desde março e as compara com seus equivalentes em 2019, a média de queda no faturamento das empresas do setor foi de 62,3%. Os segmentos mais afetados são os de transporte e turismo (-79%) e bares e restaurantes (-62%).
Com restrições de funcionamento em muitos municípios, bares e restaurantes reclamam da falta de acesso a crédito – e apontam que o governo federal tem demorado a agir de modo a garantir caixa para estabelecimentos que estão cheios de contas a pagar, mas sem faturamento.
“A retomada é mais lenta no nosso setor do que em todos os outros. Isso tem causado uma situação de desespero. Uma em cada quatro empresas que existiam até o fim de março não existirão até o fim de dezembro. Um terço da força de trabalho já foi embora, e quatro em cada dez pessoas que trabalhavam no setor não estarão mais trabalhando em julho”, diz Paulo Solmucci, presidente executivo da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel).
Segundo ele, o governo vem cometendo “erros sucessivos” ao modelar programas para oferecer crédito aos empresários durante a pandemia. O programa mais recente, que oferece garantias do Tesouro para os financiamentos, é criticado por privilegiar as micro e pequenas empresas. De acordo com Solmucci, a maior parte das empresas do setor de serviços continua desassistida.
“Foi uma promessa não cumprida. A conta que o setor está pagando em benefício da sociedade é desproporcional. Deveria haver um plano de socorro específico, mas não vemos essa movimentação. Com certeza, três em cada dez empresas não vão voltar. O que for feito a partir de agora é para que essas outras sete tenham alguma chance de permanecer”, avalia o presidente da Abrasel.
Um alívio: alguns ramos do comércio esboçam reação, mesmo que lenta
Apesar dos indicadores deteriorados, alguns segmentos do varejo vêm apresentando melhoras nas últimas semanas. Lojas de móveis, eletrodomésticos e de departamento, por exemplo, tiveram aumentos de 19,9%, 3,5% e 0,6% nas vendas nas três últimas edições da pesquisa da Cielo. O segmento de materiais para construção também vem apresentando bons resultados, e registrou crescimentos de 20,3%, 18,4% e 28,3% nos últimos levantamentos. Na média, o segmento fica, até, com crescimento de 0,9% nas vendas desde o início da crise.
Segundo Fabio Bentes, economista da CNC, entretanto, é preciso ter paciência: a retomada deve ser lenta e gradual, sem euforia. “Uma coisa é a autorização para a ida das pessoas ao comércio. Outra é o consumidor ter dinheiro no bolso e confiança para circular e comprar”, conclui.
Esta reportagem é parte da série "Retratos da economia", que aborda os efeitos da crise do coronavírus sobre a economia brasileira e também os planos do governo para a retomada. Leia aqui os demais textos.
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