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Retratos da economia

Com demissões e pedido de recuperação, aéreas negociam “sociedade” com o BNDES

Aviões no Aeroporto Internacional Afonso Pena, em Curitiba, antes da pandemia.
No início da pandemia, companhias aéreas viram demanda por voos domésticos caírem 93%. (Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo)

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A queda vertiginosa da circulação de pessoas, uma consequência das medidas de distanciamento social para enfrentamento do coronavírus, provocou um choque sem precedentes no setor aéreo do mundo todo. No caso brasileiro, a crise já provocou a inclusão da Latam no pedido de recuperação judicial iniciado pela companhia nos EUA. O anúncio de que a Latam brasileira faria parte do acordo foi feito pela própria companhia nesta quinta-feira (9).

O pedido de recuperação, que envolve o acesso mais fácil a financiamentos e a elaboração de um plano de recuperação em até 120 dias, está em sintonia com as projeções para o setor. Com a maior parte da frota parada e a reabertura caminhando a passos lentos, a perspectiva é de que o retorno “à normalidade” também demore a acontecer: segundo a consultoria Bain & Company, as aéreas devem sofrer os efeitos do coronavírus ao menos até o fim de 2023.

A expectativa é de que, entre os fabricantes de aeronaves, as maiores dificuldades sejam sentidas entre os que produzem aviões de grande porte. Do lado das companhias aéreas, os efeitos também tendem a ser devastadores: segundo a Bain & Company, a demanda global por voos deve cair entre 40% e 55% em 2020.

No Brasil, a crise precipitou o rompimento do acordo entre Embraer e Boeing, avaliado em US$ 4,2 bilhões. Com o negócio desfeito, o governo deve voltar a fazer aportes na empresa, por meio da emissão de ações pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). A ideia é dar liquidez à Embraer enquanto a crise durar para, depois, voltar a pensar em parcerias com outras empresas do mercado. Nesse sentido, um empréstimo de R$ 1,5 bilhão para a empresa já foi aprovado pelo BNDES.

Entre as companhias aéreas que operam no país, por sua vez, a perspectiva é de que os voos domésticos só voltem a ser como antes da pandemia em 12 ou 18 meses – isso se não houver mudanças drásticas no cenário. No pior momento, o do início da crise, a demanda por voos caiu 93% para rotas domésticas, e 100% para rotas internacionais. Os dados são da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear).

Aos poucos, ainda de acordo com a Abear, o número de voos diários está aumentando – mas, ainda assim, está longe de ser o que era antes do coronavírus. A pior média foi registrada em abril, quando houve apenas 180 voos diários. Em maio, o número aumentou para 263; e, em junho, se aproximou dos 400. Para julho, a previsão da Abear é de que o setor registre 595 voos por dia – ainda assim, muito menos do que os cerca de 2,7 mil registrados no período pré-crise.

“Sentimos que estamos, devagar, recolocando os voos porque a demanda começa a reaparecer. Para o final do ano, a previsão é de que estaremos ao redor de 65% do que éramos antes da crise”, diz Eduardo Sanovicz, presidente da Abear.

Latam pede recuperação, e Azul deve reduzir operação pela metade

Diante dos números ruins, o valor de mercado das companhias despencou. Na Bolsa de Valores de São Paulo, as ações da Azul caíram de R$ 45,19 no início de março para R$ 21 no início de julho. As da Gol, por sua vez, foram de R$ 26,11 para R$ 20 – mas chegaram a valer apenas R$ 5,60 na metade de março.

A Latam não tem papéis comercializados na Bolsa brasileira desde 2016, mas viu seu valor de mercado derreter na Bolsa de Valores de Santiago, no Chile – e não só pela pandemia. No final de maio, o braço da companhia nos EUA entrou com um pedido de recuperação judicial, que incluiu afiliadas no Chile, Peru, Colômbia e Equador. A princípio, o pedido não havia incluído as operações no Brasil.

Mas, nesta quinta-feira (9), a companhia anunciou que fará parte do processo. O objetivo é ter acesso mais facilitado a financiamentos, por meio do mecanismo DIP (debtor-in-possession, em inglês), previsto pela legislação norte-americana para os casos de recuperação judicial.

Diante do cenário, além disso, as companhias aéreas tiveram que refazer planos e cortar gastos. De acordo com a Abear, as primeiras medidas das empresas incluíram a revisão das relações de trabalho, em negociações com os sindicatos. Antes mesmo da publicação da medida provisória 936, do governo federal – que permitiu a realização de acordos de redução de jornada e suspensão de contratos de trabalho –, as companhias já haviam costurado a revisão de salários. Todas as medidas, porém, não evitaram que houvesse demissões entre os mais de 60 mil postos de trabalho diretos oferecidos pelo setor.

A Azul, por exemplo, cortou o pagamento de fornecedores e fez acordos de redução de jornada logo no início da pandemia, buscando conservar caixa. Mas, no fim de junho, em acordo com sindicatos, a companhia estabeleceu um plano que inclui licenças não remuneradas, incentivos à aposentadoria e demissões voluntárias.

“É provável que isso não seja suficiente. Se não for, precisaremos fazer demissões. Em março, tínhamos 14 mil funcionários para voar 140 aviões. A companhia terá que ser reduzida para metade desse tamanho por algum tempo”, explicou Marcelo Bento Ribeiro, diretor de relações institucionais da Azul, em entrevista à Gazeta do Povo.

No início de julho já ocorreram as primeiras demissões. De acordo com o Sindicato Nacional dos Aeroviários, a companhia já dispensou mais de mil funcionários de terra.

A Latam, por sua vez, informou em nota que, como tem operação majoritariamente internacional, tem “negociações diferentes” com os trabalhadores. Afirmou, porém, que elas estão acontecendo ativamente, e que as propostas oferecidas aos sindicatos têm como foco principal “a preservação dos empregos e a sustentabilidade da empresa a longo prazo”.

As negociações da companhia com o Sindicato dos Aeronautas, para reduzir o salário de tripulantes por 18 meses, entretanto, ainda não foram concluídas.

A Gol informou, também em nota, que firmou com os sindicatos dos trabalhadores um "acordo inédito no mercado de aviação", com validade para os próximos 18 meses. "Os objetivos primordiais são a manutenção dos empregos e a preservação do caixa nesse momento desafiador", diz o texto. A medida abrange comandantes, copilotos e comissários de bordo, que terão redução de jornada e salários até dezembro de 2021. Além disso, o acordo também possui planos de demissão voluntária e aposentadoria. O acordo foi referendado pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST).

Companhias aéreas compartilham rotas para manter presença no mercado

Em outra medida para tentar sobreviver ao pior da crise, Azul e Latam estabeleceram um acordo de compartilhamento de rotas domésticas que não são superpostas. “As duas empresas foram obrigadas a encolher, porque a situação exige. Mas, com esse acordo, ambas são capazes de manter uma presença maior nos mercados, ao compartilhar voos umas das outras", disse Ribeiro, da Azul.

Com a parceria, que deve ser implantada em agosto, também haverá compartilhamento dos programas de milhagem. Assim, quando viajar nas rotas incluídas no acordo, o cliente poderá escolher em qual programa de fidelidade deseja pontuar. De início, o plano envolve 50 rotas domésticas para Brasília (BSB), Belo Horizonte (CNF), Recife (REC), Porto Alegre (POA), Campinas (VCP), Curitiba (CWB) e São Paulo (GRU).

BNDES deve oferecer empréstimos e se tornar sócio de companhias aéreas

Além dos cortes de custos, o setor também negocia empréstimos com o BNDES para ter acesso a capital de giro. “O banco acenou com um pacote em que as empresas captam parte dos recursos no mercado, com bancos privados, e o BNDES complementa o valor, exigindo algumas garantias relacionadas às ações das empresas”, explicou o diretor da Azul.

Na prática, trata-se do que o ministro da Economia, Paulo Guedes, falou na reunião ministerial de 22 de abril, divulgada a partir de uma decisão do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), no âmbito do inquérito que investiga uma possível interferência política do presidente Jair Bolsonaro na Polícia Federal.

"Não vai ter ‘molezinha’ para empresa aérea, para nada disso. É dinheiro que nós vamos botar usando a melhor tecnologia financeira lá de fora. Nós vamos botar dinheiro, e vai dar certo e nós vamos ganhar dinheiro. Nós vamos ganhar dinheiro usando recursos públicos pra salvar grandes companhias", afirmou o ministro.

Segundo Marcelo Bento Ribeiro, da Azul, o BNDES “pode acabar tendo uma participação acionária” nas empresas aéreas, já que parte das garantias devem ser lastreadas nos papéis. “Não é que o BNDES vai virar dono. O banco deve passar a ter ações que vão valorizar na medida em que as empresas se recuperarem, e vai tirar parte do resultado dele com essa operação”, disse o diretor à Gazeta do Povo.

Ainda de acordo com ele, o desenho dos financiamentos deve se prolongar pelo mês de julho, já que trata-se de um arranjo “complexo”.

No caso da Latam, as negociações com o BNDES continuam. Mas, a adesão ao pedido de recuperação judicial nos EUA pode ser um indício de que as definições sobre os financiamentos estão demorando demais – e que, por isso, a empresa decidiu tentar ter acesso a liquidez por outra via.

Prorrogação de reembolso de passagens agradou setor, mas veto de Bolsonaro é criticado

No início da pandemia, outra medida do governo socorreu as companhias aéreas: a autorização para que os reembolsos de passagens que não foram utilizadas sejam feitas em até 12 meses. De acordo com as companhias, a medida foi importante porque, se todos os consumidores tentassem pedir o reembolso de uma só vez, elas não teriam caixa para honrar os pagamentos.

A prorrogação, prevista na medida provisória 925, já foi aprovada pela Câmara dos Deputados. Os parlamentares, porém, aumentaram para 18 meses o período de vigência dos créditos de passagens canceladas. O texto ainda precisa ser aprovado no Senado e sancionado pelo presidente para que tenha vigência em definitivo.

De outro lado, o setor não gostou do veto do presidente Jair Bolsonaro ao trecho da Lei 14.002 (originada da medida provisória 907) que previa alíquota zero de Imposto de Renda sobre o leasing – o aluguel de aeronaves – até 2022.

“A aviação brasileira é muito mais cara do que a internacional por conta dos tributos e do ambiente jurídico brasileiro. Se uma empresa estrangeira viesse operar aqui, gastaria 27% mais do que em seu país de origem. Isso acaba nos preços”, critica o presidente da Abear, Eduardo Sanovicz.

Esta reportagem é parte da série "Retratos da economia", que detalha os efeitos do coronavírus sobre a economia brasileira. Os demais textos da série estão aqui.

Conteúdo editado por: Fernando Jasper

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