Os países ricos não se entendem nem sobre como lidar com a fome no mundo nem com a posição dos países emergentes. Neste domingo (19), a primeira reunião entre ministros da Agricultura da história do G8 (países industrializados) com as economias em desenvolvimento, entre eles o Brasil, se transformou em um grande fiasco e uma demonstração de mal-estar com os países emergentes. Depois de horas negociando uma nova estratégia para lidar com o setor agrícola no planeta, a declaração final do G8 exclui a posição dos países emergentes. Mesmo assim, a estratégia não passa de uma lista de boas intenções sem qualquer compromisso político entre os governos dos países ricos.

CARREGANDO :)

A posição de cada país emergente será apenas citada em um resumo feito pelos italianos, que organizam o evento em Treviso. Segundo diplomatas de países emergentes, o fiasco na reunião é uma demonstração da crise de identidade que vive o G8 depois do estabelecimento do G-20 e do surgimento das economias emergentes no cenário internacional. Diante da recessão internacional, ficou claro que o G8 já estava ultrapassado e que um novo bloco estava ganhando força.

Mas os países ricos insistem em manter os encontros do G8, apesar das acusações de que já está ultrapassado. Para tentar dar um sinal de abertura, a Itália, que preside o grupo, convidou os países emergentes para a reunião. Eles só não sabiam que suas posições ficariam de fora do texto final.

Publicidade

Um negociador revelou que o presidente da conferência, o ministro da Agricultura da Itália, Luca Zaia, sequer deu um motivo para a exclusão dos países emergentes da declaração. O Brasil não escondeu sua irritação com o processo e o resultado do encontro.

Além dos países do G8 e do Brasil, China, India, México, Argentina, Egito e África do Sul foram convidados ao evento, que prometia um diálogo real entre emergentes e países ricos. "Não sabem ainda o que fazer com nossas posições", disse um negociador sul-americano.

A declaração será anunciada apenas na segunda-feira (20). Mas nenhum novo financiamento para investimentos na agricultura dos países pobres foi aprovado, nem a criação de uma administração de um estoque mundial de alimentos, como pedia Itália e França. Até mesmo a referência à palavra "protecionismo" foi alvo de polêmica. O Brasil cobrou uma resposta coerente por parte dos países ricos para lidar com a fome no mundo.

A ambiciosa meta do encontro era fechar uma estratégia para evitar a volatilidade dos preços das commodities, garantir estoques aos países mais pobres, reduzir barreiras e distorções e garantir meios para dobrar a produção mundial de alimentos até 2050. Mas europeus e americanos deram sinais de que não se entendem sobre o assunto, nem mesmo entre eles.

Todos concordam em um ponto: a crise alimentar, aliada à recessão, está gerando mais de 1 bilhão de famintos pelo planeta e ameaça desestabilizar o cenário político e de segurança internacional. Mas o que ninguém se entende é como lidar com isso.

Publicidade

Italianos e franceses tentaram convencer os demais países a criar um estoque mundial de alimentos, como forma de combater os ataques especulativos no setor e que teriam elevado os preços em 2007 e 2008. Para Michel Barnier, ministro de Agricultura da França, um sistema internacional para administrar as reservas de alimentos deveria ser criado. Mas o governo americano tentou frear a ideia.

O resultado foi uma referência vaga no texto, pedindo que a ideia de um estoque mundial fosse estudada com mais cuidado. Washington, contrário à administração de qualquer setor agrícola, alertou que o sistema não funcionaria.

Outro problema é a falta de recursos para a compra de alimentos para enviar aos países mais pobres. Ativistas apontam que apenas uma fração dos US$ 22 bilhões de doações prometidos na cúpula contra a fome, realizada em 2008, foi concretizada. A FAO alertou que o que necessitaria para atacar a fome seria menos de 1% do que os bancos ganharam durante a crise.

O Brasil cobrou os países ricos para que não reduzam seu financiamento ao desenvolvimento e nem o envio de alimentos aos países mais pobres. Para a FAO, a produção de alimentos terá de dobrar até 2050 no mundo para que possa alimentar a todos. "Declarações não alimentarão os famintos. Apenas ações o farão", disse o diretor da FAO, Jacques Diouf.

Protecionismo - Outro ponto de desacordo foi a liberalização dos mercados. Americanos, países emergentes e as organizações internacionais defenderam uma redução das distorções e barreiras ao comércio. O Brasil, que não enviou o ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, pediu a conclusão da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC) e alertou para a alta nos subsídios agrícolas nos últimos meses.

Publicidade

Mas, nos bastidores, países admitiram que estão em uma situação complicada diante da recessão e não teriam como explicar ao lobby agrícola a abertura de seus mercados.

As barreiras às exportações, adotadas por alguns países para evitar a alta nos preços dos alimentos internamente, também foram atacadas. "Temos de atacar o protecionismo. Isso só aumentará os problemas", disse a comissária de Agricultura da UE, Mariann Fischer Boel.

Mas Zaia, o anfitrião, deixou claro que não hesitaria em adotar novas barreiras para proteger seu agricultores. "Se decidirmos acabar com taxas de importação, grande parte da agricultura europeia desaparecerá. Estamos negociando na OMC. Mas se isso quer dizer acabar com as tarifas e fazer nossos agricultores passar fome, bem, não estamos aqui para ir ao funeral da agricultura italiana", disse.

Até o início da noite, não se sabia ainda se o termo "protecionismo" entraria ou não na declaração final. O Brasil foi um dos que lutava por isso, além de um ataque frontal contra as distorções geradas pelos subsídios.

Diante de tantos desencontros, o texto final será vago. Pedirá um aumento no volume de recursos para a ajuda ao desenvolvimento, maior produção e maior controle da volatilidade dos preços.

Publicidade

A declaração se limita, mais uma vez, a fazer constatações da gravidade da situação. Com a recessão, os preços das commodities caíram. Mas não de forma suficiente. O resultado é que o número de famintos voltou a crescer em 2009. O grupo admite que dificilmente conseguirá reduzir o número de famintos pela metade até 2015.

Comilança

O encontro quase se transformou em um escândalo. O governo italiano, que sediava o encontro por presidir o G8, organizou uma série de jantares e almoços, além de festas de gala em um castelo em Treviso. Isso, enquanto o mundo soma 1 bilhão de famintos. O governo ainda havia reservado meio dia de reuniões para um tour de degustação dos produtos típicos da região para os ministros e diplomatas.

As organizações que participaram do encontro ficaram inconformadas e alertaram os italianos a mudar a programação. Roma acatou o pedido, mas manteve o tour de degustação.

Publicidade