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Um dos primeiros atos do novo governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a edição da medida provisória nº 1154/2023 (que define as atribuições dos 37 ministérios) e de um decreto que detalha a estrutura do recém-criado Ministério das Cidades ampliou o temor de retrocessos no marco legal do saneamento. As medidas vinculam a Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA) a duas pastas diferentes (Meio Ambiente e Cidades) e retiram do órgão o papel de editar normas de referência para o segmento de água, esgoto e resíduos, o que contraria a legislação em vigor.
Sancionado em julho de 2020, o marco legal do saneamento trouxe estímulos à concorrência no mercado de coleta e tratamento de esgoto e de fornecimento de água potável, com dispositivos como a vedação a contratos sem licitação de estatais com municípios. O marco também estabeleceu metas de universalização dos serviços de saneamento até 2033, com atendimento mínimo de 99% da população com fornecimento de água e de acesso a coleta e tratamento de esgoto a pelo menos 90% dos domicílios.
Em dezembro, ainda antes de tomar posse, o ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, adiantou em entrevista coletiva que o novo governo pretendia revisar a legislação – que, segundo ele, teria travado obras na área. Costa ressaltou que as mudanças seriam feitas com diálogo amplo com o setor privado e com as empresas públicas estaduais, “que representam mais de 85% do saneamento do Brasil”. Mas não foi o que aconteceu nas edições da MP e do decreto.
A situação pode gerar insegurança jurídica, pois toda a redação do marco legal do saneamento foi construída a partir do papel da ANA na regulação do setor e tudo o que a lei estabelece continua em vigor, ou seja, não pode ser sobreposto por um decreto. “À Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental [do Ministério das Cidades] compete instituir as normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico e acompanhar o seu processo de implementação”, diz o texto publicado em edição especial do Diário Oficial da União.
Isso é visto como uma sinalização de que mais mudanças estão por vir, com a revogação de decretos do governo anterior. “O que nós queremos é destravar os investimentos. Entendemos que, no formato feito anteriormente, isso ficou engessado e, desde que foi votado e regulamentado, não vimos uma explosão, como se esperava, de investimentos em saneamento. Na condição de governador [da Bahia], lá atrás, eu havia dito isso: que a regulamentação engessou ainda mais a lei que foi votada”, disse o ministro da Casa Civil em dezembro.
O que dizem os decretos sobre saneamento que Lula pode revogar
Desde a entrada em vigor do marco legal do saneamento, o governo de Jair Bolsonaro (PL) editou dois decretos para regulamentar o texto. Um deles estabeleceu a metodologia de comprovação da capacidade econômico-financeira das empresas de saneamento. O ato acabou invalidando contratos de 1.141 municípios (20,5% das 5.570 cidades do país), a maior parte de pequeno porte, baixo IDH, em estados do Norte e Nordeste e atendida por empresas estaduais ou municipais.
O objetivo do regulamento é garantir que a prestadora do serviço tenha condições de cumprir as metas de universalização, mas o grupo dentro do governo que defende sua revogação considera que o ato discrimina empresas estaduais e municipais, dificultando até mesmo parcerias público-privadas.
Outro decreto que pode ser revogado regulamenta os requisitos para o acesso a recursos federais, decorrentes do novo marco, como a regionalização dos serviços.
No relatório final do grupo técnico de Cidades do gabinete de transição governamental, seus integrantes sugeriram ainda que fosse retomada a possibilidade de estatais de saneamento fecharem contratos sem licitação com municípios – os chamados contratos de programa. A proibição desse tipo de contrato foi um dos pontos centrais do novo marco de saneamento.
O documento foi entregue ao presidente Lula, que pode ou não seguir as recomendações. Participaram da comissão, entre outros nomes, o deputado federal eleito Guilherme Boulos (Psol-SP) e o atual ministro de Portos e Aeroportos, Márcio França (PSB).
No relatório, os membros do grupo afirmaram que a nova lei causou desequilíbrio ao extinguir os contratos de programa no setor, uma vez que, dessa forma, teria “proibido” a cooperação federativa, causando “insegurança jurídica” e obstaculizando “a prestação privada”.
A permissão para que prefeituras possam celebrar contratos sem concorrência com companhias estaduais de saneamento, no entanto, não depende apenas da revogação de decretos, uma vez que a vedação está prevista no texto da lei. Para mudar a lei, será necessária a aprovação do Congresso.