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BNDES empréstimos Lula
Mercado avalia os riscos do BNDES retomar empréstimos a obras em países em desenvolvimento, como anunciou Lula na Argentina ao lado do presidente Alberto Fernández| Foto: Enrique Garcia Medina/EFE

O anúncio feito nesta segunda-feira (23) pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de que bancos estatais brasileiros, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES ) e o Banco do Brasil, voltarão a financiar obras e serviços em outros países repercutiu mal no mercado financeiro.

Se já não bastasse a desconfiança de investidores quanto a indicações políticas para presidir estatais, como o ex-ministro petista Aloízio Mercadante no próprio BNDES e o senador Jean Paul Prates (PT) na Petrobras, o anúncio de Lula trouxe à tona a memória de calotes e escândalos do passado.

Nos 14 anos em que o PT esteve no poder, entre 2003 e 2016, o BNDES financiou empréstimos na ordem de US$ 11,8 bilhões para empresas brasileiras tocarem obras de infraestrutura em outros países, principalmente empreiteiras que depois foram envolvidas nas investigações da Operação Lava Jato, como Odebrecht, OAS, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão, entre outras.

As empresas venceram licitações para obras em países latino-americanos como Argentina, Venezuela, Cuba e Costa Rica, entre outros, além de nações africanas como Angola e Moçambique. E, para cumprirem com as propostas vencedoras, recorreram a recursos do BNDES com juros subsidiados, mais acessíveis do que em outros bancos privados.

Relatório oficial com dados até 30 de novembro de 2022 (veja aqui) mostra que, dos US$ 11,8 bilhões concedidos em financiamento entre 2003 e  2016, o BNDES recebeu de volta US$ 9,6 bilhões até o momento. Ainda há mais US$ 2,1 bilhões a receber, do qual US$ 1,3 bilhão corresponde a empréstimos feitos à Venezuela que pararam de ser pagos.

Além do governo venezuelano, Cuba também tem uma dívida de US$ 40,8 milhões com o BNDES, dos mais de US$ 696 milhões emprestados para obras diversas, principalmente na ampliação do porto de Mariel, a cerca de 40 quilômetros de distância de Havana.

Embora os valores devidos não comprometam o caixa do BNDES e estejam dentro da margem de inadimplência comum a todos os bancos, economistas e especialistas do mercado financeiro veem a volta do financiamento para obras e serviços em outras nações em desenvolvimento com muitas ressalvas e cautela neste momento. Luciano Bravo, especialista em estruturação de negócios com foco em aporte de capital internacional e CEO da Inteligência Comercial, vê que a realidade nesta década é bem diferente daquela vivida há anos, com economias se deteriorando e o mundo caminhando para uma recessão.

"Estamos em um momento que precisamos focar no mercado interno, principalmente nas médias e pequenas empresas. E colocar dinheiro em outros países, principalmente naqueles que estão em notória dificuldade financeira, é um risco que não se deveria correr", explica.

De acordo com o especialista, um fundo não empresta para um agente que esteja em dificuldade ou que corre o risco de não pagar, e o BNDES "vai ser colocado a esse risco não apenas na Argentina, mas também no Chile e no Peru, visto as discussões da criação de uma moeda comum para negociações entre os países do Mercosul", destaca. Ele explica, ainda, que o dinheiro usado pelo banco é proveniente do Tesouro Nacional, que pode acabar comprometido em eventuais calotes – dependendo do montante, pode afetar diretamente a inflação e a taxa básica de juros (Selic).

A percepção de Bravo é a mesma de muitas das principais corretoras brasileiras de capitais e do mercado financeiro, que não receberam bem o anúncio do presidente Lula. A Infinity Asset Management relatou que as falas do presidente e da equipe econômica “confundem o investidor, assustam, pois rementem a um passado de custo fiscal proibitivo e faz com que a economia fique em segundo plano, dada a dificuldade em se gerar cenários para o atual momento”. A Nova Futura relatou que houve uma “indigestão com notícias sobre o possível uso do BNDES para financiar operações comerciais com a Argentina”.

O analista Matheus Spiess, da Empiricus, foi mais enfático em seu boletim matinal, dizendo que as falas de Lula “ressuscitaram fantasmas antigos, como o papel mais desenvolvimentista do BNDES e dos demais bancos públicos, que foram tietados pelos Chefes-de-Estado [presentes em Buenos Aires] – a ideia de voltarmos a financiar projetos faraônicos no exterior gera calafrios”.

Tônica semelhante à visão de Luciano Bravo, de que a viagem de Lula à Argentina não foi apenas para a reabertura de relações comerciais que estavam estremecidas, como ele próprio relatou no primeiro pronunciamento ao lado do presidente Alberto Fernández. Foi também para posicionar o Brasil como um “líder” das nações em desenvolvimento, para fazer um crescimento em conjunto das economias.

No entanto, Bravo vê um erro nessa estratégia que o mercado financeiro já está ciente. Ao abrir uma conversa de ajuda para a retomada do desenvolvimento econômico da Argentina, que está com uma inflação galopante de 94,8% no ano passado e desvalorização de 40% do peso argentino, Lula abre um precedente para que outras nações em situação igual ou pior venham atrás de ajuda.

E, ao se posicionar como um líder destas nações, fica mais difícil dizer não para alguns pedidos. “O Brasil hoje é o único país de grande porte que tem as portas abertas a esses países que estão em dificuldade. Mas, o Brasil não pode ‘se tornar um Messias’ deles, não temos nem condições pra isso”, completa.

A opinião de Bravo encontra reflexo na análise de Diogo Catão, mestre em gestão e economia internacional e CEO da Dome Ventures, de que o Brasil sabe que precisa avançar no comércio internacional. No entanto, este avanço não pode ser benéfico apenas para estas nações com graves problemas econômicos.

“O Brasil não pode se isolar externamente, e essa política de aproximação e de construção de pontes é boa e salutar. Mas, o grande receio é de que essas pontes beneficiem apenas esses países em situação mais crítica na América do Sul, principalmente. Vai ser preciso analisar os pedidos feitos e, se possível, com o chanceler [Mauro Vieira, ministro das Relações Exteriores] e o Alckmin [Geraldo Alckmin, vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços”, analisa.

Há, ainda, o receio de que o BNDES volte a ser usado para outras medidas político-econômicas questionáveis que não deram certo no passado, segundo Paulo Uebel, ex-secretário especial de desburocratização, gestão e governo digital do Ministério da Economia e colunista da Gazeta do Povo. De acordo com ele, há o receio de que se tente, mais uma vez, “incentivar campeões nacionais, concorrer deslealmente com o mercado de capitais e financiar a exportação de serviços para ditaduras com baixo nível de transparência e governança”.

Liderança regional para proteger a indústria nacional

Embora o anúncio do presidente Lula tenha repercutido negativamente no mercado financeiro, há um fator a mais que está pesando na retomada dos investimentos do BNDES nas empresas brasileiras que operam em outras nações: o avanço da China nas economias da América Latina.

Igor de Lucena, economista e doutor em relações internacionais pela Universidade de Lisboa, vê que a decisão do presidente pendeu muito mais para a questão geopolítica do que necessariamente para ajudar no desenvolvimento das nações próximas.

Ele explica que a China está buscando ampliar e diversificar os negócios pelo mundo, com relações bilaterais que podem impactar diretamente nas exportações brasileiras para outros países da América Latina. Assim, ao aproximar o Brasil dessas nações, Lula forma um grande bloco que pode impor melhores condições sem perder mercado.

O próprio presidente já viu isso acontecer no passado, quando foi contra a criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). No fim, os países latinos firmaram acordos bilaterais com os Estados Unidos, enfraquecendo o Mercosul – que Lula tenta fortalecer nesta nova investida.

“Uma coisa é o Mercosul todo unido negociando com a China, onde cada um dos membros vai colocar na mesa os pontos que para eles são mais sensíveis do que para os outros, e isso dá uma vantagem para o Brasil. Seria ruim a China negociar individualmente com os países da região, passando por cima dos interesses brasileiros, porque a partir do momento que ela faz propostas cada vez mais vantajosas e os países aceitam, há o risco real de o Mercosul não existir mais”, analisa.

Para ele, esse movimento já começou, e o Brasil precisa se apressar se quiser ser relevante e ter mercado para os bens produzidos por aqui. Igor de Lucena vê que a China está avançando cada vez mais rapidamente e que os primeiros acordos em bloco podem ser fechados já a partir de 2024.

BNDES precisa diversificar os investimentos no exterior

Assim como um banco comum, o BNDES também trabalha com diferentes carteiras e aplicações financeiras, o que inclui o investimento em ativos como empresas brasileiras que operam em outros países. E isso é aceitável, segundo Diogo Catão.

A grande questão que precisa ser mudada nesta nova fase é onde o banco vai concentrar os empréstimos. Nos 14 anos no poder, os governos do PT concentraram 89% dos financiamentos em apenas seis países dos 13 em que as empresas brasileiras venceram licitações: Angola, Argentina, Venezuela, República Dominicana, Equador e Cuba.

Embora a Argentina venha pagando o que deve às empreiteiras, há a preocupação de que novos contratos não sejam honrados por conta da situação econômica do país.

“Se a gente seguir uma política de gestão de portfólio de investimento como numa bolsa de valores, deveríamos distribuir esses recursos em mais países para que eventuais calotes fossem supridos com os juros gerados de outros. Estamos em um momento que não dá para sair distribuindo assim em apenas algumas nações”, explica.

Há, ainda, a necessidade de se analisar mais criteriosamente quais países podem receber os empréstimos. Relatórios do BNDES apontam que alguns pedidos chegavam ao banco já aprovados por Lula e pela ex-presidente Dilma Rousseff a países como Cuba e Venezuela.

Garantias robustas para evitar calote

Luciano Bravo complementa lembrando que além de analisar quais países realmente podem receber investimentos sem comprometer o caixa do BNDES, também é preciso ter um amplo e complexo sistema de garantias contra o calote. Logo após o anúncio feito pelo presidente Lula, o ministro Fernando Haddad agiu como um bombeiro para apagar o fogo e explicar ao mercado.

Em conversa com jornalistas no final da tarde, o ministro da Fazenda afirmou que, no caso do primeiro financiamento brasileiro, o gasoduto de Vaca Muerta, o gás produzido na região central argentina e trazido ao Brasil será “a garantia do próprio investimento”.

Segundo a agência Bloomberg, fontes a par da negociação afirmam que o financiamento seria coberto por garantias de ambos os governos, e que a Argentina teria de fornecer ativos líquidos, como contratos de commodities, para obter os empréstimos.

“O BNDES tentará se proteger pegando os recebíveis argentinos. O problema é que esses já estão muito comprometidos com uma série de outras tomadas de empréstimos. E, no caso de uma insolvência da Argentina, serão executados como no passado, em que o país já foi alvo dos chamados ‘fundos abutres’ de execução imediata gerando disputa entre credores”, ressalta Bravo.

Para minimizar esse risco, Lucena explica que será necessário construir um arcabouço completo e robusto de garantias para a concessão de empréstimos e financiamentos às outras nações do continente sem correr o risco de um calote. “A gente não pode pegar dinheiro público do nosso Tesouro e colocar nesses países. É diferente de se investir em nações como o Chile e o Uruguai, que tem as contas mais organizadas. A Argentina está numa situação muito ruim há muito tempo”, completa.

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