A surpreendente decisão do governo de enviar ao Congresso uma proposta de Orçamento que prevê mais gastos que receitas, algo inédito na história brasileira, empurrou a nota de crédito do Brasil para a zona de rebaixamento. Para economistas, o fato de o Executivo admitir que não consegue fechar suas contas – e que, portanto, a dívida pública crescerá ainda mais rápido que o esperado – representa um passo decisivo rumo à perda do grau de investimento, espécie de selo de bom pagador que o país ostenta desde 2008.
INFOGRÁFICO: entenda quais são os indicadores fiscais que ameaçam o rating do país
Sabe-se que as agências de rating perderam credibilidade após o estouro da bolha imobiliária norte-americana, e também que a decisão de investir no Brasil não depende apenas do “cadastro positivo”. Mas regredir à condição de aplicação especulativa após sete anos certamente não melhora as coisas e pode adiar o início de uma recuperação da economia.
Há quem preveja a queda para 2016, como o banco JP Morgan e a gestora Franklin Templeton. Há quem diga, como o especialista em finanças públicas Mansueto Almeida, que o Brasil só não caiu até agora porque as agências “reagem com extrema lentidão”. Mas a Fitch – uma das três grandes, ao lado de Standard & Poor’s e Moody’s – deu a dica dias atrás, quando uma analista avisou que a tendência para o cenário fiscal ficou “muito abaixo” das condições que, em abril, levaram a agência a revisar de “estável” para “negativa” a perspectiva da nota brasileira.
Devedor de grife
O Brasil deve mais hoje do que na época em que não tinha grau de investimento – em março de 2008, um mês antes de a Standard & Poor’s atribuir o status ao Brasil, a dívida equivalia a 57,1% de toda a riqueza produzida em um ano. O governo também está pagando juros mais altos. A taxa básica (Selic), de 11,75% ao ano pouco antes do investment grade, está hoje em 14,25%.
Reflexos
A seu modo, o mercado financeiro se antecipa. Os reflexos aparecem na queda dos preços das ações, na alta dos juros dos títulos públicos e na disparada da taxa de câmbio. Captar dinheiro lá fora está ficando mais caro, para o governo e para as empresas. O prêmio do Credit Default Swap (CDS) brasileiro, uma espécie de seguro contra calote, chegou a 360 pontos-base no início da semana, o maior nível desde 2009. Para países com o mesmo rating do Brasil, o prêmio é de menos da metade. Também saem mais baratos os títulos de países sem grau de investimento, como Turquia, Indonésia, Croácia e Hungria.
“A perda do rating seria apenas a cereja de um bolo que está se desmanchando”, diz o economista Thiago Biscuola, da RC Consultores. Mesmo assim, é muito provável que a situação piore um pouco se a nota for cortada, avalia: “A partir do momento em que se perde o grau, há uma pressão adicional”.
Para Claudio Felisoni, presidente do Instituto Brasileiro de Executivos de Varejo e Mercado de Consumo (Ibevar), a retirada do selo de qualidade criaria a convicção de que a crise será ainda mais longa. “A perda não modificaria substancialmente o quadro atual, mas afastaria ainda mais o investidor, com efeito sobre o investimento produtivo, o que no futuro teria consequências sobre PIB, emprego, nível de produtividade, salários”, diz.
O relator do Orçamento, o deputado federal paranaense Ricardo Barros (PP), disse na tribuna da Câmara na quarta-feira (2) que o eventual rebaixamento custará muito mais caro para as empresas que um aumento da carga tributária –referência à tentativa de ressurreição da CPMF.
Aval
Uma consequência da perda do grau de investimento seria a saída de bilhões de dólares investidos no Brasil por fundos de pensão estrangeiros. Por mais generosos que sejam os juros pagos pelo governo brasileiro, boa parte desses fundos só pode investir em países que tenham investment grade atribuído pelas três grandes agências (Moody’s, Fitch e Standard & Poor’s).
Dívida se aproxima de 70% do PIB, “gatilho” para corte na nota
A dívida do setor público chegou a R$ 3,68 trilhões em julho, o equivalente a 64,6% do Produto Interno Bruto (PIB). É o maior nível da série histórica, iniciada em 2006. A trajetória dos indicadores fiscais sugere que a dívida pode chegar rapidamente à casa de 70% do PIB, patamar que, para alguns analistas, seria o “gatilho” para o rebaixamento do rating brasileiro.
Meses atrás, quando ainda perseguia superávits primários (poupança para pagar os juros), o governo calculava que a relação dívida/PIB se aproximaria de 70% apenas em 2018. Mas o Planalto agora fala abertamente em déficit primário, o que levou o mercado a refazer suas contas. O Itaú, por exemplo, espera agora que a dívida chegue a 71,9% em dezembro de 2016. O Banco Fibra projeta 70,2%.
O rebaixamento representaria a maior derrota do ministro da Fazenda, Joaquim Levy. Em várias ocasiões ele defendeu que o programa de ajuste fiscal poderia estabilizar a trajetória da dívida e assegurar a manutenção do investment grade, colaborando para o resgate da confiança e dos investimentos.
Mais que o nível a que a dívida chegou, chama atenção a velocidade com que ela está crescendo. Quando Dilma Rousseff assumiu a presidência, em 2011, o débito equivalia a 51,8% do PIB. A relação ficou estável no primeiro ano de governo e depois subiu aos poucos até meados de 2014, quando chegou a 55%. A partir daí, disparou.
Três fatores explicam a escalada da dívida. O primeiro é a incapacidade do governo de controlar seus gastos e fazer superávit primário. O segundo é a escalada da taxa Selic. E o terceiro, a recessão – com a economia encolhendo, a relação dívida/PIB sobe ainda mais rápido.
“Falta de crescimento é a maior ameaça”
Mais que o déficit do Orçamento de 2016, o que deve pesar para um eventual rebaixamento do rating brasileiro é a falta de crescimento da economia. Por isso, a maior preocupação do governo não deveria ser o ajuste fiscal, e sim a retomada da expansão do PIB. A avaliação é de André Perfeito, economista-chefe da Gradual Investimentos.
A opinião destoa em meio ao quase consenso do mercado financeiro, e se alinha ao pensamento do ministro do Planejamento, Nelson Barbosa, cuja ascendência sobre a presidente Dilma ficou evidente com a tentativa de recriar a CPMF e a resistência em cortar gastos no Orçamento.
“Tentar fazer superávit primário com a economia em retração não faz o menor sentido, porque a arrecadação está caindo”, diz Perfeito. “Além disso, o aumento da taxa Selic elevou os gastos com os juros da dívida. Para dar conta deles, precisaríamos de um superávit muito forte.”
No período de 12 meses até julho, o setor público gastou R$ 452 bilhões com juros, o equivalente a 7,9% do PIB, o maior desembolso desde 2004. No período, o déficit das contas públicas chegou a 8,8% do PIB, um recorde. Quanto maior o déficit, mais dinheiro o governo precisa pegar emprestado, o que só aumenta a dívida.
A “boa notícia”, avalia o economista, é que de alguma forma a deterioração da economia acabará ajudando. “O ajuste vai ocorrer pelos salários reais [descontada a inflação], que estão caindo. O consumo das famílias diminui, o que reduzirá a pressão sobre a inflação”, diz.
Gastos obrigatórios
Para o economista, a discussão sobre a necessidade de reduzir os gastos obrigatórios – Barbosa promete propostas para conter despesas de Previdência, folha de pagamento e saúde – é importante, mas não deve ser a prioridade: “Antes é preciso retomar o crescimento”. Esse tipo de gasto, que já consome 90% da receita do Executivo, é o principal obstáculo a programas de ajuste fiscal.
RISCO MAIOR
As três principais agências de classificação de risco pioraram suas avaliações sobre o “rating soberano” do Brasil neste ano:
FITCH
Abril
Manteve a nota em BBB (segundo menor nível do grau de investimento), mas rebaixou a perspectiva de “estável” para “negativa”.
STANDARD & POOR’S
Julho
Manteve a nota em BBB- (nível mais baixo do grau de investimento), mas rebaixou a perspectiva de “estável” para “negativa”.
MOODY’S
Agosto
Baixou a nota de Baa2 para Baa3 (nível mais baixo do grau de investimento). Porém, mudou a perspectiva de “negativa” para “estável”.
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