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A aprovação do novo marco legal do saneamento – que abre espaço para a inciativa privada explorar serviços de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto – gera expectativa para ampliação de investimentos no Brasil em 2021. Esse tipo de obra não custa pouco e, embora seja fundamental, o país ainda precisa avançar para universalizar o acesso ao saneamento básico.
Um levantamento feito pelo Ipea revela que 961 dos 5.570 municípios brasileiros, principalmente no Norte e Nordeste, têm grau de prioridade máximo para promover acesso a recursos públicos e melhorias na área de saneamento.
Para elaborar esse ranking, os pesquisadores Julio Issao Kuwajima, Gesmar Rosa dos Santos, Valéria Maria Rodrigues Fechine e Adrielli Santos de Santana analisaram dados sobre a estrutura de saneamento (como o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento e o Atlas de esgotos da Agência Nacional de Águas) e o Índice de Vulnerabilidade Social.
Dessa forma, foi possível traçar um diagnóstico preciso sobre a situação dos municípios – por que possuem redes insuficientes, o que impede a expansão e como isso atinge a população. O resultado está no texto para discussão “Saneamento no Brasil: proposta de priorização do investimento público”.
A nova regulação do setor é uma das grandes apostas da equipe econômica para retomada no pós-pandemia. Se os investimentos foram colocados em xeque pela crise, que também serviu para expor inúmeros problemas que o país enfrenta na área, as necessidades de saneamento podem servir para movimentar a economia. As estimativas da equipe econômica do governo apontam que o novo marco pode atrair até R$ 700 bilhões em investimentos, o que seria suficiente para cumprir as metas de universalização.
O país investe pouco na área: apenas o equivalente a 0,2% do PIB, de acordo com o Banco Mundial, que estima a necessidade de dobrar esse montante para ampliar o acesso. O Instituto Trata Brasil já estimou, também, que o país deixa de ganhar R$ 1,1 trilhão ao longo de duas décadas – com aumento da produtividade, valorização imobiliária e melhoria das condições de saúde da população – apenas por ignorar as obras de saneamento.
Falta de saneamento afeta os mais vulneráveis
Ao unir as duas avaliações – vulnerabilidade social e acesso universal ao saneamento –, os pesquisadores dividiram as cidades brasileiras de acordo com seus níveis de prioridade. Pelos critérios do estudo, 961 municípios são considerados prioridade máxima, porque sofrem com baixa cobertura de serviço e baixos indicadores sociais. A maior parte dessas cidades é pequena – juntas, elas somam 19,2 milhões de brasileiros desassistidos, o que equivale a 9,8% do total de habitantes do país.
A pesquisa ainda mostra que outros 2.463 municípios estão numa situação intermediária: alguns têm problemas com esgotamento, outros com o abastecimento de água, mas há menos riscos sociais envolvidos. Essas cidades somam 61,4 milhões de moradores.
O grupo de cidades cuja situação é considerada não prioritária soma 1.712, o que compreende 121,6 milhões de brasileiros. Já 434 cidades necessitam aprimorar dados e gestão, pois não foi possível avaliar os quadros locais. Elas reúnem 6,3 milhões de pessoas.
Saneamento sofre com abismos regionais
O Ipea mostrou que, ao longo dos últimos anos, o Brasil avançou muito lentamente rumo à universalização do saneamento básico. O atendimento com rede de abastecimento de água passou de 83,3% em 2016 para 83,6% em 2018, de acordo com dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS). Já a coleta de esgoto passou de 52% para 53,2% no período, enquanto o percentual de tratamento de esgoto, que era de 44,9%, alcançou 46,3%.
No entanto, a distribuição regional é muito desigual. Norte e Nordeste apresentam os piores indicadores tanto para água quanto para esgoto, inclusive abaixo da média nacional. Nas regiões Sul e Centro-Oeste a situação de abastecimento de água é confortável, mas a coleta de esgoto é um problema. Os pesquisadores alertam que, no caso do Centro-Oeste, o resultado positivo é impulsionado pelos resultados do Distrito Federal, que possui ótimos índices. Apenas a Região Sudeste possui índices confortáveis nos dois quesitos.
Além da diferença regional, o tamanho das cidades e a condição de vulnerabilidade de seus moradores impõem mais dificuldades para ampliação do acesso ao saneamento básico. Se é notório que a cobertura é mais deficiente nas regiões Norte e Nordeste, também é sabido que há mais restrições nas áreas rurais e periferias de todo o país.
O levantamento aponta que, nas cidades com mais de 50 mil habitantes (que concentram 69% da população brasileira em 650 cidades), 89,9% dos moradores têm abastecimento de água e 62,3% de esgoto. Já nas cidades com menos de 50 mil habitantes (que somam 31% da população, mas representam 4.625 municípios), o abastecimento de água chega a 66,1% dos habitantes, enquanto o esgoto alcança apenas 26,9%.
“Superar as dificuldades para atacar os déficit, em municípios pequenos e pobres e periferias de médios e grandes centros urbanos, são aspectos centrais para a universalização do saneamento no Brasil. Isso se deve aos limites e às dificuldades de medidas estruturais e estruturantes dos municípios, diante das amplas responsabilidades que lhes cabem”, observa o documento.
Faltam recursos para financiar investimentos
O fornecimento de água e o tratamento de esgoto são responsabilidade das prefeituras, ainda que haja compartilhamento de obrigações com estados e União. O problema é que muitas não possuem recursos suficientes para investir nessas áreas. O Ipea considera que um grupo de 1.959 municípios, onde vivem 35,7 milhões de brasileiros, deve ser considerado prioridade para a alocação de recursos.
A avaliação é de que a baixa capacidade de execução orçamentária das cidades é histórica, e já foi comprovada pelos dados do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que foi criado em 2007 para promover investimentos no setor de infraestrutura. Os autores do estudo citam que, entre 2007 e 2016, dos R$ 50,3 bilhões contratados para obras de esgotamento sanitário, apenas 36% das ações foram finalizadas. Para obras relacionadas a água, dos R$ 24,3 bilhões contratados, apenas 31% chegaram ao fim.
O levantamento do Ipea mostra que 69% dos municípios são atendidos por companhias estaduais de saneamento, 27% contam com serviço municipal e apenas 4% com empresas privadas. A presença do setor privado é mais significativa em cidades dos estados do Rio de Janeiro, do Mato Grosso e do Tocantins.
O problema da escassez de recursos públicos para investimento em obras de saneamento é um ponto que pode ser solucionado com o marco legal do setor. A expectativa é de que pequenas cidades consigam se organizar em blocos ou consórcios para se tornarem mais atrativas para esse tipo de investimento, uma vez que o poder público não consegue suprir essas deficiências.
A pesquisa aponta que essa união por blocos ou bacias hidrográficas pode ser uma solução para o problema do saneamento, mesmo sem qualquer intenção de buscar investimento privado.
Os autores defendem que essa associação “deve pautar-se em mecanismos que facilitem os investimentos e os subsídios cruzados entre usuários e municípios. Esse aspecto tem grande importância para viabilizar não somente obras, como também a operação dos sistemas de água e esgotos. Desse modo, os investimentos podem ser um impulso à autonomia financeira dos sistemas de água, com resultados administrativos e impactos socioambientais consideráveis”.