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A prolongada baixa no índice de chuvas nos reservatórios de hidrelétricas, que recentemente colocou cinco estados brasileiros em alerta de emergência hídrica, pode ter consequências pesadas para o bolso do consumidor, com contas travadas na bandeira vermelha durante todo o segundo semestre e chance de alta na inflação.
As chuvas registradas de setembro passado até maio deste ano representam escassez histórica: é a pior seca em 91 anos de acordo com o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Com pouca água armazenada para atender as geradoras, cresce a pressão sobre o sistema elétrico.
O alerta hídrico, que se estenderá até setembro, atinge a bacia do rio Paraná e foi anunciado pelo Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE, comandado pelo Ministério de Minas e Energia) com base em uma previsão do tempo bastante desfavorável. Já caracterizado pela baixa umidade, o inverno de 2021 chega com perspectivas de seca severa, especialmente no Sudeste e Centro-Oeste, onde ficam os principais reservatórios de armazenamento do Sistema Integrado Nacional (SIN). Na atualização de domingo (30), os lagos do subsistema ocupavam 32,2% da capacidade máxima.
A medida emergencial alcança os estados de Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraná e São Paulo, de olho em manter sob controle o nível dos reservatórios. Para isso, além de ações de monitoramento, devem ser adotadas restrições a usos da água não voltados à geração de energia. O foco é afastar ao máximo o risco de falta de energia para atender a demanda nacional e a necessidade de impopulares medidas de racionamento que, entretanto, não estão descartadas.
Na avaliação de especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, ações pontuais devem começar nos próximos meses, mas o efeito mais rapidamente perceptível da crise no setor elétrico será mesmo o encarecimento da fatura.
Apesar do cenário delicado, o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, diz que não há risco de racionamento. "Todos os nossos modelos, nossos acompanhamentos indicam que não há risco de racionamento, de apagão, no ano de 2021", disse em entrevista publicada pelo jornal "O Globo" nesta segunda-feira (31).
"Essa crise hidrológica independe da nossa vontade, é um fenômeno da natureza. Mas a população pode ficar tranquila. Nós estamos adotando todas as ações para que os impactos sejam os menores possíveis e para que nós possamos dar continuidade na retomada da atividade econômica", afirmou. Ele defendeu, no entanto, que o consumidor faça uso mais racional da energia.
Seca pressiona sistema elétrico e encarece a conta
Responsáveis pela maioria da geração de energia no país, as hidrelétricas já vinham sendo poupadas, como demostra a adoção da bandeira vermelha nas contas de luz. Ela sinaliza o acionamento de geradoras de energia mais cara (como as termelétricas) e significa cobrança de adicional tarifário para arcar com esse custo mais elevado de produção.
Em maio, a conta de luz do brasileiro esteve na bandeira vermelha 1 (com taxa extra de R$ 4,169 para cada 100 quilowatts/hora consumidos) e a partir de junho passa a vermelha 2 conforme definição da Aneel, patamar tarifário mais caro do sistema (com adicional de R$ 6,243 por 100 kWh).
Esse custo nas alturas deve se manter pelo menos até o fim do ano e ainda puxar a inflação, conforme admitido dentro do próprio governo federal. Segundo o secretário de Política Econômica do Ministério da Economia, Adolfo Sachsida, há risco de inflação em decorrência do risco hidrológico atual.
"Temos um problema não apenas conjuntural de chuvas localizadas, mas temos um problema estrutural também", afirmou Sachsida, em entrevista coletiva, ao defender a necessidade de avanço nos processos de concessões e privatizações e de marcos legais mais eficientes. "É uma agenda importante e tem que estar no nosso radar porque tem implicações sobre o crescimento econômico e sobre a inflação."
Saídas para os reservatórios vazios podem prejudicar retomada
Por ora o governo nega risco de falhas no fornecimento (ou apagões) apesar da falta de nuvens no horizonte capazes de aumentar de forma consistente os níveis de armazenamento de água. O plano federal para driblar o desabastecimento soma usinas de geração térmica, energia comprada de países vizinhos e "torneiras apertadas" nos reservatórios.
Atualmente, todas as usinas termelétricas disponíveis estão em atividade para fornecer energia ao sistema, e o governo busca maneiras de ampliar essa oferta, como o acionamento de usinas sem contrato – opção ainda em estudo, de acordo com o jornal "Folha de S.Paulo".
Existe também preocupação com a disponibilidade das unidades já contratadas durante os próximos meses. Está em avaliação a possibilidade de adiar manutenções programadas e também desligamentos temporários que comprometeriam a geração.
Para além do parque termelétrico, foi assinado na sexta-feira decreto de regulamentação de leilões para aquisição de reserva de capacidade. O governo também tem importado energia de países vizinhos (com demanda atendida por geração argentina e uruguaia) e, agora, sinaliza medidas para priorizar o uso da água "de forma otimizada e com vistas a garantir o devido atendimento à carga", informou via MME.
O problema é que ações para poupar o volume armazenado nos reservatórios podem aliviar a crise no setor elétrico, mas afetar atividades econômicas. A preocupação se volta em especial para o agronegócio, em decorrência de eventuais restrições à irrigação, uma vez que a área atingida pelo alerta de emergência hídrica é, também, polo de produção do segmento. O reflexo pode ser o encarecimento de preços, com ainda mais pressão sobre a inflação.
Além de um gargalo para os negócios do campo, a escassez de água para a geração de energia pode representar uma pedra no caminho da retomada econômica em meio à pandemia da Covid-19, a depender da velocidade de vacinação.
Um crescimento pujante da demanda e do PIB pode acelerar a necessidade de racionamento, avalia o economista-chefe da Ativa Investimentos, Étore Sanchez. E as projeções para o crescimento econômico tem melhorado rapidamente. Em apenas uma semana, o ponto médio das projeções de bancos e consultorias para 2021 saltou de 3,52% para 3,96%. Pouco mais de um mês atrás, a taxa mediana esperada estava mais próxima de 3%.
O risco é de falta de energia para abastecer setores que ganhem tração na comparação com o consumo reduzido de 2020 e do primeiro semestre de 2021 – cenário que, mesmo assim, não impediu a chegada à situação crítica causada pelo baixo nível de armazenamento.
A atual seca é histórica, mas escassez não é novidade
O registro de regime de chuvas aquém do padrão histórico não é inédito, tampouco raro no país. Os reservatórios se encontram no menor nível desde 2015, mas estações mais secas que a média têm sido a regra dos últimos anos, diz Nivalde de Castro, coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (GESEL/UFRJ).
Segundo o especialista, desde 2013 a hidrologia tem sido ruim e os reservatórios permanecem relativamente esvaziados mesmo após as estações caracterizadas por maior afluência (a chegada de água aos lagos das hidrelétricas). "A energia natural afluente tem ficado cronicamente abaixo da série histórica, provocando níveis menores ano a ano", completa.
Apesar de uma situação crítica no panorama mais imediato, Castro destaca que o crescimento da capacidade instalada de outras fontes de energia independentes da chuva deve tirar pressão das hidrelétricas, mas não representam solução imediata.
Enquanto o problema da seca se impõe, há ainda uma dificuldade adicional: o fato de que as térmicas, em grande parte, "são muito caras e não são usadas para preservar os níveis das usinas [hidrelétricas]" apesar da alta capacidade instalada. A avaliação é de Roberto Pereira D'Araújo, do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da UFRJ, que também percebe nas fontes solar e eólica a saída para poupar água mesmo em momentos de seca.
D'Araújo resume: "O Operador Nacional do Sistema monitora os níveis e vai ligando as térmicas por custo crescente. Como contratamos muitas térmicas caras, elas fazem parte da oferta, mas não geram na maioria do tempo. Quem gera no lugar dessa oferta que não é usada são as hidráulicas. Assim é viável dizer que térmicas caras esvaziam reservatórios", diz.
O risco político de uma crise no setor elétrico
A atual crise no setor elétrico, com eventual necessidade de rodízios e os riscos – ainda que remotos – de falhas no fornecimento de energia elétrica, é nada confortável para o governo, especialmente em ano pré-eleitoral. Ainda em maio, o presidente Jair Bolsonaro se referiu à crise hidrológica como "mais um azar" e admitiu "dor de cabeça" pela frente ao comentar a falta de água nos reservatórios.
A preocupação remete ao apagão seguido de racionamento em 2001, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), apontado como elemento importante na chegada de Luís Inácio Lula da Silva (PT) à presidência.