A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de autorizar o desconto da contribuição assistencial dos trabalhadores não sindicalizados abriu uma brecha para cobranças retroativas e abusivas por parte das entidades.
Em setembro, o STF declarou constitucional a aplicação da taxa para todos os trabalhadores. Porém, a Corte não fez a devida modulação. Na sentença, não foram definidos os parâmetros para a cobrança, que incluem desde a data de validade da nova regra até os percentuais e critérios para o direito de oposição dos trabalhadores ao pagamento.
Desde então, práticas consideradas por especialistas como exageradas começaram pipocar por parte dos sindicatos. São exigências de percentuais elevados e entraves ao questionamento da cobrança.
A convenção coletiva do sindicato de agentes autônomos de Sorocaba (SP), por exemplo, aprovou a cobrança de 12% de contribuição assistencial. Quem se opuser ao pagamento precisa pagar uma taxa de R$ 150. Da mesma forma, os sindicatos de domésticas da Grande São Paulo, Jundiaí e Sorocaba querem a quitação do valor acumulado da taxa dos últimos cinco anos, conforme reportagem da "Folha de S.Paulo".
Na avaliação de Mariana Siqueira, da área trabalhista do Madrona Fialho Advogados e membro da Comissão do Direito do Trabalho da OAB, é temerário permitir uma cobrança sem definir regras específicas para sua execução. "A consequência será uma leva de questionamentos e ações na Justiça do Trabalho", prevê.
Centrais estabelecem regras para as cobranças e sanções a empresas
Sem previsão da modulação pelo STF, as centrais se adiantaram no que chamam de "autorregulação", estabelecendo por conta própria regras sobre a cobrança da contribuição assistencial.
Um documento elaborado pelo Fórum das Centrais, que será entregue nesta segunda-feira (2) ao Senado, propõe sanções para empresas que fizerem algum "incentivo à manifestação individual" contra o desconto no salário. Em hipótese alguma é admitida a entrega de oposição ao desconto de contribuição diretamente para a empresa, prática caraterizada pelo documento como "antissindical".
Sobre a cobrança, o texto prevê que "as assembleias deverão ser convocadas com garantia de ampla informação a respeito da pauta a ser tratada, inclusive sobre a cobrança da contribuição negocial, e promovendo a possibilidade de participação de sindicalizados e não sindicalizados".
Também há recomendações no sentido de proibir "cobranças abusivas e que fujam dos padrões de razoabilidade e proporcionalidade relacionados ao contexto socioeconômico da categoria".
O texto não elenca, no entanto, parâmetros para definição de tais práticas, prevendo que "em havendo abuso, que seja corrigido, sem prejudicar a esmagadora maioria de entidades que se conduzem de boa-fé para a ação sindical protetiva e efetiva".
CLT exige autorização prévia e expressa do trabalhador para desconto
Especialistas explicam que, desde a reforma trabalhista, em 2017, prevaleceu o entendimento, previsto na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de que qualquer desconto de contribuições em folha de pagamento só poderia ocorrer com autorização prévia e expressa do trabalhador.
Algumas entidades incluíam a contribuição assistencial nas normas dos acordos coletivos que eram aprovados em assembleia. Como não havia obrigatoriedade, as empresas não descontavam dos demais trabalhadores não sindicalizados.
Antônio Galvão Peres, doutor em Direito do Trabalho pela USP e professor do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo, IBDA, considera que, com a regra genérica aprovada pelo STF, há risco real dos sindicatos cobrarem as taxas retroativamente.
"O STF não dimensionou os efeitos. A decisão não explica a regra no tempo, não explica como se daria a oposição. Criou uma situação bem controvertida para daqui pra frente", diz.
Cobrança administrativa é primeira opção dos sindicatos
Na avaliação de Thiago Collodel, sócio coordenador do Araúz Advogados, a cobrança retroativa é um "abuso total". "A contribuição é descontada mês a mês em folha de pagamento pelas empresas. Se o desconto não aconteceu, não há de ser cobrado agora", defende.
Collodel acredita que os sindicatos estejam mirando primeiramente os trabalhadores, que são a parte mais fraca, apresentando a cobrança administrativamente. "Se conseguirem negociar com cada trabalhador para pagar 20% do valor devido, já terão arrecadado horrores", analisa.
Mas o ideal, segundo Mariana Siqueira, é que os trabalhadores façam a revisão dos acordos para negociar uma solução que possibilite o não pagamento. "Dificilmente as entidades optarão por cobrança judicial, uma vez que foge totalmente ao papel dos sindicatos, que é de defesa dos interesses do trabalhador", salienta.
A Força Sindical encaminhou comunicado aos sindicatos associados pedindo cautela na cobrança das contribuições. A nota frisa a necessidade da publicação do acórdão da decisão do STF e diz que "não parece razoável que se autorize a cobrança dos últimos cinco anos onerando sobremaneira os trabalhadores representados".
Para evitar desgaste com trabalhador, sindicatos miram empresas
Para fugir do desgaste com os trabalhadores, sindicatos já estão recorrendo contra as empresas para que façam o descontos em folha e lhes repassem os valores.
O Sindicato dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários de Guaíba (RS), por exemplo, já notificou extrajudicialmente o departamento de recursos humanos das empregadoras sobre a decisão, solicitando o valor devido desde 2018.
Para Collodel, os sindicatos sabem que não tem sentido entrar judicialmente contra os trabalhadores, então a alternativa será recorrer contra as empresas. Mas as empresas contam com o respaldo de terem respeitado a CLT ao não descontar a contribuição no período. "Neste caso, será uma briga de 'cachorro grande'", diz.
Siqueira salienta que existem linhas de defesa para os interesses dos dois lados, empresas e sindicatos. "Tudo isso por conta da falta de modulação do STF", lamenta.
Embargos de declaração e críticas ao ativismo do Supremo
A expectativa é que, a partir da publicação da decisão do STF, que precisa acontecer em até 60 dias, as partes envolvidas apresentem embargos de declaração para esclarecer as dúvidas e omissões da sentença.
As regras para o direito de oposição serão as primeiras em pauta, já que as entidades são criticadas por dificultar a manifestação em contrário do trabalhador, com regras muito rígidas.
"Geralmente preveem a presença do trabalhador na sede do sindicato em horários engessados ou mesmo de expediente, não aceitam procuração ou exigem firma reconhecidas, enfim, coisas que não existem na legislação", ressalta a advogada.
Há outros pontos, segundo ela, que exigirão atenção. Um deles é o estabelecimento de quórum da assembleia que vai definir a contribuição. É necessário, acredita Siqueira, definir um número representativo de trabalhadores presentes para deliberar, para evitar percentuais abusivos da taxa.
A advogada ressalta, porém, que ainda não há garantias de resolução dos impasses. "Não podemos prever se o STF vai entrar detalhadamente nestes pontos ou se vai imputar a responsabilidade aos próprio sindicatos".
Para a advogada, essa situação teria sido evitada se o Supremo não tivesse se debruçado sobre temas que devem ser regulados pela lei. Historicamente, relata, a contribuição assistencial era paga pelos filiados para custear despesas sociais do sindicato. "Possibilitar a cobrança aos não sindicalizados vai no caminho inverso do propósito inicial e acaba confundindo a taxa com o antigo imposto sindical", diz.
Ela lembra que existe um PL em gestação no Ministério do Trabalho que cria uma contribuição sindical para todos os trabalhadores. Na sanha de resolver a questão do financiamento dos sindicatos, o STF antecipou a discussão e conseguiu desagradar a todos. "Perdemos a oportunidade de trazer uma proposta com mais robustez, e uma forma de financiamento mais consistente e estruturada", avalia.
O projeto de lei costurado pelo governo e pelos sindicatos, no entanto, vem sendo criticado por não garantir o direito de oposição ao trabalhador. O grupo de trabalho que elaborou o texto, integrado por representantes de trabalhadores e patrões, tenta distinguir a proposta do antigo imposto sindical compulsório incluindo a taxa nos acordos coletivas, aprovados em assembleias das categoria.
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