Está pautado para o próximo dia 15 aquele que é considerado por juristas o julgamento mais importante do ano no Supremo Tribunal Federal (STF). Estarão em análise dois processos de repercussão geral que definirão se mudanças de jurisprudência sobre a incidência de tributos são capazes de alterar decisões já transitadas em julgado, ou seja, para as quais não cabe mais recurso.
As matérias em questão (RE 949297 e RE 955227) dizem respeito à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), instituída em 1988. À época, diversas empresas recorreram à Justiça e obtiveram decisões que consideraram inconstitucional a Lei 7.690/1988, que criou o tributo, e conquistaram o direito, em caráter definitivo, de não o recolher.
Em 2007, no entanto, o STF declarou constitucional a contribuição, autorizando sua cobrança pela Receita Federal. Nos recursos que serão analisados, a União quer a relativização dos efeitos das decisões que livraram a Braskem e a TBM Têxtil Bezerra de Menezes da CSLL. O detalhe é que ambas já transitaram em julgado. Ou seja, dependendo de como entenderem os ministros da Suprema Corte, o julgamento pode abrir uma brecha para a alteração em efeitos de sentenças outrora consideradas definitivas.
“Uma decisão transitada em julgado, qualquer acadêmico de Direito aprende na universidade, é aquela que não pode mais ser reformada”, diz Sandro Wainstein, da Baptista Luz Advogados, para quem o assunto não deveria nem sequer ser objeto de julgamento pelo STF. “É como um manto que reveste de imutabilidade a coisa julgada”, compara.
“Esses recursos vão discutir a quebra de decisões finais, transitadas em julgado, que foram favoráveis a contribuintes. Caso o STF entenda que é possível rescindir decisões finais, haverá uma insegurança jurídica tremenda”, defende. “Se o nosso ambiente de negócios e o nosso sistema tributário já são extremamente complexos, imagine qual será o impacto de uma decisão que considere que um tributo que a própria Justiça julgou indevido se torne devido.”
A Constituição Federal, em seu artigo 5º, dispõe que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. E o Código de Processo Civil (CPC) diz que “nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide, salvo se, tratando-se de relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença”.
As decisões que livraram as empresas da CSLL datam de 1992. Nos recursos, a União argumenta que a coisa julgada em matéria tributária não alcançaria os exercícios seguintes ao da impetração e, portanto, poderia ser relativizada em razão de novos parâmetros normativos para exigência do tributo. Além disso, sustenta que, do contrário, ficaria configurada violação de igualdade entre os contribuintes, uma vez que aqueles que não tiveram acesso à Justiça estão obrigados ao recolhimento do tributo.
Os processos foram protocolados em 2016 e reconhecidos como de repercussão geral pelo STF. São tratados separadamente, com relatores distintos, porque tratam de situações ligeiramente diferentes: um dos recursos diz respeito a efeitos de decisão de constitucionalidade de controle concentrado e outra, de controle difuso.
Em um dos processos, a Procuradoria-Geral da República (PGR), ainda em junho de 2016, emitiu parecer favorável à União.
“A coisa julgada em matéria tributária, quando derivada de relação jurídica de trato continuado, perde sua eficácia no momento da publicação do acórdão exarado no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade contrário ao sentido da sentença individual”, diz a tese manifestada pelo então procurador-geral, Rodrigo Janot.
Relativização da coisa julgada e a "tese do século"
A decisão da Corte pode repercutir diretamente na chamada “tese do século”, como ficou chamado o julgamento encerrado em maio sobre a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins. Na ocasião, foi considerada indevida a incidência dos impostos federais sobre o valor correspondente ao tributo estadual, mas foi aplicada a chamada modulação de efeitos, em razão do impacto econômico que a decisão geraria.
Assim, foi definido que empresas que entraram com ações até 15 de março de 2017, quando foi julgado o mérito do processo, serão ressarcidas do valor que pagaram a mais à Receita nos cinco anos anteriores ao ajuizamento da ação. As que entraram na Justiça depois desse julgamento terão direito a retroagir apenas até essa data.
A modulação gerou uma redução de R$ 230 bilhões no impacto da decisão, segundo cálculos do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT).
“Mas existe uma terceira categoria, que é daquelas empresas que entraram com processos depois de 15 de março de 2017 e que tiveram o trânsito em julgado, permitindo o ressarcimento de até cinco anos, antes do julgamento dos embargos, que ocorreu em maio de 2021”, explica o tributarista Pedro Schuch, sócio da SW Advogados.
“Se formos técnicos, essa é uma decisão imutável”, diz. No entanto, caso o STF entenda que alterações de jurisprudência acerca da cobrança de tributos podem relativizar a coisa julgada, ou seja, alterar os efeitos de decisões definitivas, essa terceira categoria perderia o direito que já havia sido assegurado anteriormente.
Para Schuch, o impacto do julgamento, a depender do resultado, vai muito além da repercussão sobre uma ou outra matéria. “Eu diria que esse é talvez um dos julgamentos mais importantes da história do Direito brasileiro, porque está em jogo a confiabilidade do sistema Judiciário”, diz.
“Se a gente estabelecer que entendimentos futuros que destoem de entendimentos passados podem alterar a coisa julgada, estaremos instaurando uma insegurança jurídica brutal”, avalia.
Sandro Wainstein, da Baptista Luz Advogados, concorda. “Em princípio, [esse julgamento] teria uma repercussão geral somente em relação a processos que discutem matéria tributária. Mas, ainda que seja restrito, isso não quer dizer que, por analogia, não possa servir processos de outra natureza”, diz. “Pode ser um precedente.”
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