Quase duas semanas após parar de atacar a necessidade de um ajuste fiscal, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) voltou a criticar a necessidade de um corte de gastos e diz não ver problema em um rombo das contas públicas.
“Não tem nenhum problema se é déficit zero, se é déficit de 0,1% [do PIB], se é déficit de 0,2% [do PIB]. O importante é que este país esteja crescendo, que a economia esteja crescendo, que o emprego esteja crescendo, que o salário esteja crescendo”, disse Lula em entrevista à TV Record, na nesta terça (16).
Horas antes de ir ao ar, um trecho da entrevista acabou sendo vazado para uma corretora, que o divulgou a investidores. O dólar saltou de R$ 5,41 para R$ 5,46, mas fechou na terça a R$ 5,445. O mercado financeiro voltou a ficar desconfiado em relação ao compromisso do governo com a responsabilidade fiscal.
Na entrevista, Lula diz se comprometer com o arcabouço fiscal, mas afirmou que tem de ser convencido sobre cortes de gastos em 2024. Também destacou que não é obrigado a cumprir a meta fiscal se “houver coisas mais importantes para fazer.”
Posicionamentos anteriores do presidente - contrários ao ajuste fiscal - mexeram fortemente com a taxa de câmbio nas últimas semanas. Ela saiu do nível de R$ 5,20, no final de maio, para R$ 5,60, no final de junho. Declarações mais contundentes, no dia 2, levaram a moeda dos Estados Unidos a ser negociada na marca de R$ 5,70.
Após esse período explosivo, Lula recuou na queda de braço com o mercado financeiro e incorporou o discurso do corte de despesas. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, chegou a anunciar uma revisão de R$ 25,9 bilhões em gastos com benefícios sociais, após uma reunião em que o presidente foi alertado sobre o risco do não cumprimento do arcabouço fiscal. O corte foi considerado insuficiente pelo mercado.
Segunda-feira é dia fundamental para ajuste fiscal
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se aproxima de sua “hora da verdade” em relação à responsabilidade fiscal. Uma data decisiva para a gestão petista será a próxima segunda (22), quando será divulgado o próximo relatório de avaliação do Orçamento deste ano e as medidas necessárias ao cumprimento da meta fiscal deverão estar detalhadas.
O documento, que será encaminhado ao Congresso, deve apontar a necessidade de fazer ou não um bloqueio para o cumprimento do teto de despesas do arcabouço fiscal ou um contingenciamento para não estourar a regra da meta.
“O governo terá que demonstrar que a execução fiscal deste ano atenderá à meta de zerar o primário deste ano e que fará os cortes necessários para que as metas fiscais sejam cumpridas”, diz o economista Samuel Pessôa, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre). "Caso contrário, a reação do mercado será muito pior."
Analistas confirmam que a percepção do mercado financeiro mudou após os anúncios de cortes de despesas e o silêncio de Lula sobre o tema. Ainda assim, eles querem ver medidas concretas. “O mercado precisará ver resultados concretos nos números e não comprará apenas promessas”, alertou a Verde Asset Management, em carta divulgada a clientes.
Expectativas deterioradas acendem alerta
A deterioração das perspectivas observada em junho foi uma espécie de virada de chave para o mercado financeiro. As gestoras mantêm suas apostas na alta do dólar contra o real. “A preocupação do mercado é legítima”, afirma Pessôa. Para ele, o “mau-humor dos investidores” é justificado pela atitude do governo Lula que, ainda não empossado, “destruiu” a regra do teto de gastos e aprovou a PEC da transição que permitiu gastos adicionais superiores a R$ 180 bilhões no Orçamento.
“Depois, aprovou um arcabouço fiscal, que tem méritos, mas que propõe o ajuste fiscal muito mais lento, muito mais suave do que o anterior”, lembra o economista. “E daí, no primeiro momento em que a regra começa a gerar algum tipo de conflito distributivo na sociedade, ele muda a meta do próximo ano. E ainda dá declarações que não demonstram comprometimento com o fiscal.”
Sérgio Shmayev, economista e professor da Fipecafi, diz que o momento é delicado e que o mercado vem precificando a incerteza do governo "perder a mão" das contas públicas. "Há dúvidas se há uma intenção real de reduzir os gastos, ao lado da insistência na queda de juros [por parte do presidente Lula]", afirma.
Fernando Ulrich, da Liberta Investimentos, é ainda mais cético. "Tenho certeza de que ele [Lula] fez isso [o recuo] a contragosto. Não é do perfil deste governo ajuste fiscal", afirmou em seu canal no YouTube. "É um jogo de morde e assopra entre Lula e Haddad."
Haddad, que respirou aliviado após ter convencido o governo a afinar o discurso pelo ajuste, conseguiu ganhar alguns pontos junto ao mercado. Mas ainda passa fragilidade. "[Haddad] é um ministro que não consegue fazer absolutamente nada e não consegue dar explicações. Para explicar, ele teria que bater no governo", afirma Flávio Riberi, da Fipecafi. Segundo ele, o ministro não demonstra ter a confiança do presidente. "Se Lula confiasse [em Haddad], deixaria ele tomar as medidas que são necessárias."
Réplica de Lula 2 ou Dilma 1?
A avaliação geral dos analistas é de que os próximos passos definirão o comportamento econômico real do governo. O receio é que replique as políticas do final do governo de Dilma Rousseff, que colocou a dívida pública em trajetória explosiva.
‘Desde o começo deste ano, não tem havido qualquer sinal de ajuste estrutural (pelo lado da despesa) que torne consistente o arcabouço fiscal. Logo, ao longo dos últimos meses, tem diminuído a crença de que seja crível a busca pelo superávit primário que torna a dívida pública sustentável’, escreveu Alexandre Manoel, economista-chefe da AZ Quest, em artigo no blog do Ibre.
Para Pessôa, a preocupação do mercado e dos economistas é entrar numa trajetória explosiva. Principalmente se o mercado considerar a reeleição de Lula. “Seriam seis anos de trajetória ascendente que pode se tornar incontrolável.”
O endividamento público avançou de 71,7% para 75,6% do PIB nos 14 primeiros meses do governo Lula, apontam números do Banco Central (BC). A expectativa do mercado financeiro, segundo o boletim Focus, é de que ela chegue a 77,7% no final do ano e 80,2%, em dezembro de 2025.
A trajetória da dívida, somada às incertezas do cenário externo, deveria exigir do governo, na avaliação dos economistas, maior demonstração ou sinalização de austeridade e coordenação entre as políticas monetária e fiscal.
Na avaliação de Pessôa, a "hora da verdade" está chegando, e o governo Lula aparenta se aproximar da gestão Lula 2, que deu início à desestabilização das contas públicas.
"Se o presidente fizer tudo certinho, o câmbio voltará para o patamar dos R$ 5,20. Ele [Lula] terá espaço para arrumar as coisas e não se deparar com problema inflacionário grave. Mas, de fato, se ele mantiver a percepção de que não está preocupado com a trajetória da dívida pública, que não está nem aí, o câmbio andará mais e baterá na inflação. Isso machucará sua popularidade para a eleição de 2026."
Sucessão no BC também é acompanhada com atenção
As perspectivas de mudança no comando do Banco Central também reforçam as incertezas. Gabriel Galípolo, diretor de Política Monetária do BC e provável indicado por Lula à sucessão de Roberto Campos Neto à frente da autarquia, precisará conquistar a confiança do mercado.
A dúvida é se a próxima composição do Comitê de Política Monetária (Copom), que terá sete dos nove integrantes indicados por Lula, será mais leniente com relação à inflação e afrouxará a taxa de juros, como defende o mandatário.
"Será necessário um processo longo de construção de reputação [do novo Copom]", avalia Pessôa. "Todos ficarão mais atentos até se convencerem de que o novo Banco Central está imbuído de fazer a política necessária para manter a inflação na meta."
"Enquanto o presidente Lula não explicitar com clareza como se comportará economicamente nos próximos anos, os preços dos ativos não se estabilizarão", destaca Alexandre Manoel, da AZ Quest.
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