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O processo de privatização da Eletrobras, aprovado pelo Congresso na segunda-feira (21), tem sido aliado à promessa de maior segurança energética para os consumidores brasileiros, que enfrentam a pior crise hídrica em nove décadas. A garantia viria, segundo o governo e partidários da proposta, com a contratação das chamadas termelétricas movidas a gás natural, como prevê a medida provisória aprovada no Parlamento – que agora só depende da sanção do presidente Jair Bolsonaro.
De fato, a contratação dessas térmicas pode resultar numa maior segurança energética, uma vez que elas reduzem, por exemplo, o risco de apagões ou déficit de fornecimento em casos de escassez de água nos reservatórios das hidrelétricas. Em situações como essa, o abastecimento é assegurado pelas usinas de energia de reserva.
A questão é que, apesar do discurso favorável, nenhuma das novas termelétricas conseguirá entregar energia ainda neste ano ou em 2022.
Usinas "embutidas" na privatização da Eletrobras vão operar só de 2026 em diante
Parlamentares defenderam durante a tramitação da MP no Parlamento que, apesar de ter origem fóssil, o gás natural é um energético de transição, que possibilita geração de energia "segura e despachável com menor potencial ofensivo ao meio ambiente".
"Essa alternativa viabilizará melhor aproveitamento do gás natural produzido no país, cuja reinjeção atingiu 42,9% da produção nacional em 2020, segundo dados do Ministério de Minas e Energia", afirmou o relator da MP na Câmara, Elmar Nascimento (DEM-BH).
Mas a inclusão das térmicas no projeto da Eletrobras, ainda que envolta da narrativa de segurança energética, não resolve o atual problema de escassez, apontam analistas. Em especial, porque essa oferta de energia "nova" não poderá ser assegurada no curto prazo, num contexto em que o país enfrenta risco considerável de racionamento nos próximos meses.
O texto aprovado estabeleceu que os empreendimentos para a oferta da energia deverão entrar em funcionamento apenas a partir de 2026 — isto é, daqui a cinco anos — e ao longo dos 15 anos seguintes, não solucionando a atual crise hídrica.
O horizonte de tempo agradou interessados. Em nota pública, a Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás (Abegás) afirma que o "período de cinco anos é o ideal para que os projetos do setor tenham o devido tempo de maturação, com um cenário de 15 anos que preserve a viabilidade econômica do investimento".
Interiorização de gasodutos
Antes que as termelétricas possam fornecer energia aos consumidores, deverá ser realizado um longo processo de interiorização e estruturação de gasodutos para escoar o insumo até regiões definidas na medida que hoje não têm infraestrutura para receber o produto.
Hoje, a malha de gasodutos brasileira tem 44 mil quilômetros de extensão, segundo o Ministério de Minas e Energia (MME), e está concentrada perto da costa litorânea. Sua expansão para o interior do país é desejo antigo do planejamento estatal, mas os projetos acabaram travados dados os pesados subsídios necessários, as barreiras ambientais e a necessidade de aumento da concentração populacional para justificar os investimentos.
Informações do Balanço Energético Nacional da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) dão conta de que o gás natural corresponde a cerca de 13% da atual oferta de energia elétrica do país.
Durante a apreciação da MP no Congresso, parlamentares chegaram a condicionar o processo de privatização à contratação prévia dessas termelétricas. Mas a medida inviabilizaria o processo, e isso os levou a recuar da ideia. O texto aprovado prevê a contratação das usinas — mas não necessariamente antes da privatização da Eletrobras.
Além de ser considerado por alguns especialistas como assunto "estranho" à privatização da Eletrobras — o chamado "jabuti" — e sem sentido econômico, o tema foi rejeitado recentemente pelo Congresso na apreciação da chamada "nova lei do gás natural", marco regulatório do setor, sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro no início de abril.
"Ao que parece, como está colocado na MP, a contratação das termelétricas atende a algum interesse específico, não tem a ver com segurança energética. É preciso suprir [a escassez] de outras formas. E principalmente suprir com modicidade tarifária", diz Lucien Belmonte, superintendente da Associação Brasileira das Indústrias de Vidro (Abividro).
Ele dá um exemplo de como essa previsão, em vez de ajudar, no curto prazo, "bagunça" o sistema elétrico e não atende rapidamente a necessidade. "Querem fazer onde não tem fio ou gasoduto. É como querer colocar uma usina térmica em Fernando de Noronha com o objetivo de ajudar o sistema elétrico nacional. Mas para tirar energia elétrica de Fernando de Noronha, primeiro, é preciso levar o gasoduto até lá", afirma.
Clauber Leite, coordenador do Programa de Energia e Sustentabilidade do Idec, também critica a contratação das termelétricas. "Estamos criando uma reserva para um mercado que, nesse momento, enfrenta escassez. Só que a previsão, lá na frente, é de sobra de energia. Se essas contratações se concretizarem, adicionaremos mais 8 gigawatts de térmicas e 2 gigawatts de PCHs [pequenas centrais hidrelétricas] num cenário que cresce rapidamente. Resultado: teremos um contrato de 20 anos de uma energia comprada, sem poder estar usando", diz.
Governo quer 8 MW de termelétricas movidas a gás
Após as alterações feitas pelo Congresso, a medida provisória da privatização da Eletrobras determina que deverão ser contratados 8 mil megawatts (MW) de geração termelétrica movidas a gás natural, na chamada modalidade de leilão de reserva de capacidade, regulamentada pelo decreto nº 6.353/2008.
As usinas deverão estar instaladas nas regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste, principalmente em localidades que não têm infraestrutura de transporte de gás natural. Ou seja, a infraestrutura terá de ser construída, o que deve demorar e, como resultado, ainda pode elevar os custos para os consumidores de energia.
As novas usinas deverão respeitar o preço-teto do leilão A-6 (energia nova) de 2019, de R$ 292 por MWh, corrigido por parâmetros associados à inflação e ao preço do combustível. O governo estima que, com a atualização, esse valor chegará a R$ 360 por MWh no momento da contratação.
A contratação se dará da seguinte forma, segundo prevê a MP:
- 1.000 MW no Nordeste, em regiões metropolitanas que não possuam na sua capital ponto de suprimento de gás natural;
- 2.500 MW na região Norte, distribuídos nas capitais dos estados ou região metropolitana "onde seja viável a utilização das reservas provadas de gás natural nacional existentes na região Amazônica, garantindo, pelo menos, o suprimento a duas capitais que não possuam ponto de suprimento de gás natural";
- 2.500 MW na região Centro-Oeste, nas capitais dos estados ou região metropolitana que não possuam ponto de suprimento de gás natural; e
- 2.000 MW na região Sudeste, dos quais 1.250 MW para estados que possuam ponto de suprimento de gás natural e 750 MW para estados na região Sudeste na área de influência da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) que não possuam ponto de suprimento de gás natural.
- A MP também prevê a contratação de 2.000 MW pequenas centrais hidrelétricas (PHCs) de 2021 a 2026, com entrega de energia a partir de 2026.
O percurso do gás natural
A Petrobras responde pela maior parte da produção de gás natural do país, sendo o Rio de Janeiro o estado que lidera a produção nacional. Mas o país conta, ainda, com pelo menos 30 outras empresas do ramo. Um dos objetivos da União para a área é aumentar a oferta do gás oriundo das regiões do pré-sal.
O país também recebe gás natural da Bolívia por meio do gasoduto Gasbol, por exemplo, além de importar o produto na forma liquefeita, via navios — processo que só pode ocorrer, no entanto, para complementar a oferta nacional.
O gás natural pode ser utilizado em diferentes segmentos: em termelétricas, na indústria, em postos de combustível, nas residências, no transporte público coletivo ou particular e no transporte hidroviário. Ele também é usado como matéria-prima na produção de fertilizantes.
O insumo seria, segundo especialistas da área, menos poluente entre todos os combustíveis fósseis, gerando menos danos ao meio ambiente, com baixa emissão de resíduos poluente. Ele geralmente é encontrado associado ao petróleo.
Como as novas termelétricas podem afetar a tarifa de energia
Para além da demora na concretização da oferta, a contratação de termelétricas movidas a gás natural também pode gerar maior custo ao consumidor, segundo alertam analistas e associações. Críticos também afirmam que a definição dos locais onde os projetos serão instalados reduz a competição pela energia mais barata.
Como previsto no Decreto nº 6.353/2008 e na Resolução Normativa Aneel nº 337/2008, os custos relacionados à contratação de energia modelo de reserva de capacidade, tal como previsto na MP, são rateados e repassados a todos os usuários finais do Sistema Interligado Nacional (SIN).
"O planejamento elétrico via Legislativo não é o ideal. Adicionar essa quantidade de energia fora de planejamento, de forma não acordada, isso tudo vai sobrar para o consumidor pagar", diz Leite.
Mas a perspectiva do governo é contrária. Em relatório, o Ministério de Minas e Energia (MME) afirma que o processo de privatização da Eletrobras, como um todo, pode reduzir em até 7,4% a tarifa de energia dos consumidores brasileiros — incluindo outros fatores benéficos ao consumidor, como o direcionamento de parte das receitas de Itaipu para o alívio nas tarifas.
Segundo a pasta, as futuras térmicas a gás substituirão usinas a óleo, cuja energia é mais cara, ajudando, também, a recuperar os reservatórios das hidrelétricas. Portanto, teriam impacto positivo na conta de luz.
"Os custos para a construção de eventuais gasodutos estarão embutidos no valor do preço-teto do leilão", informou o Ministério da Economia após a aprovação da MP pelo Congresso. A pasta estima que esse preço-teto será de aproximadamente R$ 360 por MWh, que ela considera "competitivo".
Segundo os técnicos, termelétricas movidas a óleo diesel custam o triplo disso — portanto, argumenta o governo, o impacto para o consumidor será positivo quando elas forem substituídas pelas novas térmicas a gás.
Mas, para críticos da MP, a obrigatoriedade de contratar térmicas em regiões predefinidas limita a competitividade do leilão. Isto é: sem essa reserva de mercado e todos os custos associados a ela, a disputa por projetos poderia resultar em lances mais ousados, em benefício do consumidor.
Isso porque os leilões de energia são do tipo "reverso", com empreendedores buscando propor o menor preço possível para a geração de energia. Nesse caso, quanto maior for o custo de implantação de uma usina, maior (e, portanto, mais próxima do teto do leilão) terá de ser a tarifa de energia para compensar o investimento.
Lobby do gasoduto
Para muitos interlocutores, a obrigação de contratação das térmicas, na verdade, favoreceria um "lobby do gás", contribuindo para a expansão da malha de gasodutos e do gás natural no país — uma estratégia para desenvolver redes de distribuição de gás para as mais diferentes atividades. Mas seria o consumidor de energia elétrica a subsidiar o investimento.
Fontes com trânsito no Planalto citaram o nome do empresário baiano Carlos Suarez, um dos fundadores da empreiteira OAS, dono da Termogás e outras transportadoras, como um dos supostos beneficiários com o processo. As empresas por ele comandadas têm aval para quase 5 mil km de novos dutos. Suarez tem, além disso, participação acionária em oito distribuidoras (em Goiás, Rondônia, Brasília e Maranhão), as quais poderiam tirar proveito disso.
Para garantir o avanço dos gasodutos, o Congresso inseriu um "textão" na MP da Eletrobras. O objetivo é impedir eventual veto de Bolsonaro à previsão de térmicas. Trata-se do parágrafo 1.º do artigo 1.º da MP, de 652 palavras e 3.197 caracteres (sem contar os espaços).
Todas as definições relativas à contratação de termelétricas foram abarrotadas nesse mesmo parágrafo 1º, de forma a impedir um veto pontual do presidente. Isso porque, se quiser evitar a obrigação de contratar termelétricas, Bolsonaro terá de vetar o parágrafo todo — e, com isso, derrubará também a espinha dorsal da MP original, que era a previsão de desestatização da Eletrobras por meio de capitalização na Bolsa de Valores.