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Criado em 2016 para limitar o avanço das despesas públicas à inflação, o teto de gastos já estava ameaçado antes mesmo de a pandemia da Covid-19 provocar uma nova crise no Brasil. Projeções indicavam que ele poderia "desabar" bem antes do prazo previsto para a primeira revisão, em 2026.
Com a situação econômica deteriorada pelo coronavírus e o aumento do gasto público para mitigar os estragos da pandemia, ganha força a tese de que o teto de gastos já é insustentável, o que pode antecipar sua revisão. Um indicativo é de que governo e Congresso já trabalham para avaliar como regulamentar os "gatilhos" em caso de descumprimento da regra.
A ideia foi explicitada pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), durante pronunciamento conjunto em defesa da manutenção do teto na quarta-feira (12), com os presidentes da República, Jair Bolsonaro, do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e ministros, como Paulo Guedes (Economia).
“Acho que reafirmando o teto, e com a regulamentação dos seus gatilhos, vamos dar melhores condições de administrar o Orçamento. E com a reforma administrativa para melhorar a qualidade do gasto público e do serviço público. Reafirmo meu apoio a esses temas”, declarou Maia.
A Emenda Constitucional (EC) 95, que criou o teto, estabeleceu quais seriam os gatilhos acionados para promover o ajuste fiscal em caso de rompimento dessa linha. O principal deles é a redução de gastos com pessoal, suspendendo reajustes para o funcionalismo e a realização de concursos públicos até que as contas públicas voltem aos eixos – temas que estão diretamente ligados à reforma administrativa do Estado, que Bolsonaro quer deixar para 2021.
Viabilização dos gatilhos do teto de gastos é prioridade
Na avaliação do economista Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), ligada ao Senado Federal, era essencial que o governo desse um primeiro passo se comprometendo com o teto de gastos. “Isso inclui viabilizar o acionamento dos gatilhos do teto, que fazem parte da regra. Mudanças abruptas, agora, seriam indesejáveis e poderiam representar aquilo que se costuma caracterizar pelo ditado ‘a emenda ficou pior que o soneto’”, aponta.
Para regulamentar esses mecanismos, há ao menos três opções “prontas” no Congresso. Duas fazem parte do Plano Mais Brasil, apresentado por Guedes no ano passado e que contém as PECs do Pacto Federativo e Emergencial – essa última já deixada de lado pelo governo.
O deputado Pedro Paulo (DEM-RJ) também havia apresentado, em outubro do ano passado, uma PEC que listava 20 medidas para conter despesas públicas, preservando a chamada regra de ouro, além de 11 ações para gerar receitas. Todos os gatilhos seriam acionados quando o desequilíbrio entre despesas públicas e arrecadação tributária chegasse a um nível crítico.
Por fora também corre uma nova proposta, do deputado Felipe Rigoni (PSB-ES). Embora ela ainda não tenha sido formalmente apresentada, por falta de assinaturas, o parlamentar já se reuniu com integrantes do governo e o próprio Rodrigo Maia para discutir estratégias de viabilização da proposta.
Risco de desabamento pressiona revisão
O prazo de revisão do teto de gastos, fixado inicialmente em dez anos, foi uma maneira de mostrar que a regra estaria fora da influência de pautas políticas, aponta a professora de economia do Insper, Juliana Inhasz. Apesar de dez anos representarem um prazo elevado, não seria ruim em uma situação relativamente “normal”.
“O prazo, para o Brasil, é bom, porque amarra a mão do governo para não ter essa virada de mesa e para essas instabilidades naturais dentro do Brasil, com regras mudando em favor do poder público”, argumenta.
A avaliação dela é de que, ainda que a pandemia tenha sido um episódio extraordinário, ficar abrindo exceções para revisão antes do tempo abre precedentes perigosos.
“A gente preferiria que o governo fizesse reforma administrativa e privatizações em vez de correr para essa alternativa de mudar a regra de jogo. Seria o momento de acelerar o pacote necessário de reformas”, aponta.
Na visão de Simone Pasianotto, economista-chefe da Reag Investimentos, a regra do teto de gastos não é sustentável. “A ideia é legal, mas a Covid-19 só acelerou prazo para mostrar que ela é insustentável”, argumenta, citando a combinação de arrecadação em queda e aumento dos gastos públicos por causa da pandemia como fatores preponderantes para isso.
A regra do teto não é consenso entre economistas. Por um lado, é elogiada pela forma como impõe um controle nas despesas públicas como forma de atrair investimentos e controlar a inflação. Por outro, é criticada por quem defende mais investimentos públicos para recuperar a economia e mais gastos sociais ou em áreas importantes, como saúde e educação.
“Temos um teto e, embaixo dele, um orçamento muito engessado. Se tivéssemos um teto de gastos com racionalidade econômica na alocação de recursos por área, seria uma situação. Mas não temos isso. E deixar flexibilidade sem impor um limite também é muito temerário. É preciso chegar num meio termo”, analisa Simone.
Para ela, o desafio agora é alinhavar uma maneira equilibrada de reformar o orçamento público, preservando gastos discricionários como os investimentos e tendo mais flexibilidade de alocação de recursos, ainda mais com a referência do cenário atual. “A contração fiscal prevista pela política de teto dos gastos não se sustenta na atual conjuntura”, pontua.
Teto já era insustentável antes da pandemia
Antes mesmo de o Brasil ser jogado em nova crise por causa da pandemia, a IFI já projetava a possibilidade de rompimento do teto. Felipe Salto lembra que a instituição, desde 2018, mencionava que a regra seria cumprida até 2020, mas depois disso ficaria mais complicado, com alto risco de rompimento já para 2021. E isso porque o governo teria margem fiscal insuficiente, ou seja, menos dinheiro que o necessário para garantir o funcionamento mínimo da máquina pública.
“Se o rompimento ocorrer, o ideal é que se tenha um quadro de acionamento natural e legal dos gatilhos. Isso daria tempo para endereçar eventuais aprimoramentos da regra, com calma e cautela”, avalia o economista.
Ainda que o teto de gastos receba críticas de todos os lados, ao menos entre economistas há uma consonância de que é preciso, sim, limitar os gastos públicos.
Para Simone Pasianotto, da Reag Investimentos, uma alternativa é avaliar um modelo que não amarrasse o avanço das despesas primárias apenas à inflação e PIB, e já previsse a possibilidade de revisão em intervalos mais curtos, de acordo com a situação fiscal do país. Além disso, ela considera interessante a previsão de subtetos para os benefícios previdenciários, gastos com pessoal e encargos, despesas obrigatórias e os investimentos e demais discricionários.
“Se mudar só o teto, sem alterar a forma como faz alocação de recurso, vai ser muito mal visto no mercado. Por isso é importante estabelecer regras mais organizadas para ter mais transparência, determinando hipóteses e descrevendo cenários”, defende.
Independentemente de eventuais mudanças, Salto lembra que é preciso ter clareza de que os desafios do Brasil continuam os mesmos. “É urgente controlar a despesa pública e restabelecer condições de equilíbrio e sustentabilidade da dívida pública. Para isso, é preciso ter um plano de médio prazo e resistir à pressões por gastos”, pontua.