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A Covid-19 serviu de catalisador para mudanças importantes no mercado de trabalho brasileiro. Medidas tomadas no país com o objetivo de frear a propagação do novo coronavírus produziram efeitos colaterais que devem se prolongar e têm capacidade para alterar de modo mais permanente a realidade dos trabalhadores e dos negócios, com destaque para a informalidade crescente e a aceleração da transformação digital.
Primeiro item apontado, o avanço no contingente de informais não é fruto da pandemia, mas recebeu novo impulso. Antes da crise sanitária, os profissionais sem carteira assinada ou outros vínculos trabalhistas já representavam 40% da força de trabalho nacional segundo dados do IBGE.
Sob o signo da Covid-19, a busca por alternativas no mercado informal se acentuou – seja por dispensas causadas pelo fechamento de empresas e pela redução nos níveis de atividades, seja pela flexibilização das regras do "jogo" trabalhista (que ganhou capítulo a parte por meio da criação de programa de manutenção do emprego e renda, que autorizou a suspensão temporária de contratos e os cortes de jornada e salário como prevenção a demissões).
Na seara da informalidade, entram o trabalho por conta própria, a prestação de serviços por intermédio de aplicativos, o empreendedorismo sem registro junto aos órgãos da administração pública. São trabalhos que avançam para se tornar maioria na avaliação da economista-chefe da Reag Investimentos, Simone Pasianotto.
“Desde a última recessão de 2015 e 2016, a gente vinha numa mudança estrutural do mercado de trabalho, com mais flexibilidade, pessoas migrando do regime celetista para outras formas de contratos de trabalho, mais acomodação no mercado informal. Aí veio esse solavanco da pandemia, que deve pressionar ainda mais”, avaliou Pasianotto.
Como a economista ressalta, esse movimento não começou e tampouco se encerrará com a pandemia. Segundo ela, o trabalhador CLT não é mais a regra, estaria, na verdade, tornando-se exceção. “Tivemos a uberização, os coworkings, os contratos flexíveis e essa vai ser muito possivelmente uma tendência para a próxima década, com uma nova estrutura de relações trabalhistas. E as pessoas vão ter que se adaptar, tanto as empresas quanto os trabalhadores”, sentencia.
Outro ponto, destacado desta vez pelo cientista social Simon Schwartzman, é o fato de que os indicadores atuais não contam toda a história da desocupação. “A medida do desemprego não é quem não trabalha, é quem não acha trabalho. Então, imagino que vai haver mais gente procurando, o que aumentará a taxa de desemprego. Eu não vejo para 2021 nenhuma melhora significativa da taxa de desemprego porque não acredito que esse governo consiga organizar a economia ou criar um horizonte de estabilidade que possa atrair investimentos e fazer uma economia que traga mais algum dinamismo”, aponta ele.
O risco de aumento na taxa de desemprego indicado por Schwartzman é esperado por causa do fim do auxílio emergencial e da falta de perspectivas concretas sobre um cenário que devolva contornos do que se entendia por "normalidade". A ajuda do governo federal despejou mais de R$ 300 bilhões na economia durante o ano de 2020 e teve a nona e última parcela paga em dezembro. Sem esse dinheiro, as perspectivas são de escalada na quantidade de pessoas em busca de emprego.
Quanto às chances de uma realidade que descarte de modo mais definitivo a necessidade de ações de distanciamento ou isolamento social, o Brasil ainda está distante de traçar um retrato que seja considerado confiável. Essa dificuldade vem à reboque da falta de solidez dos cronogramas de imunização em massa previstos até o momento.
Mais trabalho na informalidade
Em paralelo ao avanço da informalidade e aos atuais 14,3% de taxa de desocupação (com 14,1 milhões de desempregados no trimestre até outubro de acordo com o IBGE), a atenção deve se voltar também aos setores e à capacidade maior ou menor de se reerguer da crise. Para o cientista social Simon Schwartzman, essa leitura é necessária pois, para além do problema da recuperação econômica no pós pandemia, é ela que dará importantes sinais sobre mudanças que estão por vir na organização do mercado de trabalho.
“Esse enorme aumento de uso de internet, do trabalho em casa, do comércio eletrônico não vai voltar ao que era antes e isso pode ter implicações, pode desempregar gente”, acredita. Para o especialista, por exemplo, o crescimento do e-commerce pode prejudicar os resultados do varejo presencial; por outro lado, o sucesso do teletrabalho pode levar à adoção permanente das videoconferências, esvaziando pontes aéreas pelo país com menos fluxo de passageiros corporativos.
“Eu acho que a gente pode esperar que alguns setores fiquem muito diferentes em um novo cenário. E, por outro lado, a economia brasileira está muito mal, nós temos uma situação fiscal muito complicada, o tamanho da dívida pública é muito grande. Isso também significa que a economia não vai crescer de maneira vigorosa”, completa Schwartzman.
Sem chances de caminhar com as próprias pernas em um futuro próximo e sem as muletas auxiliares dos meses recentes, a economia nacional desaquecida pode tornar mais fundo o buraco da Previdência Social, com queda da arrecadação.
Duplamente afetados: os mais idosos
Na fotografia atual do mercado de trabalho afetado pela pandemia, uma característica conhecida são as faixas etárias mais prejudicadas. A população que tem acima de 60 anos é o segundo grupo mais atingido, atrás apenas dos jovens com menos de 24 anos.
O nível de ocupação, medida que considera a população empregada em relação ao número de pessoas em idade ativa numa determinada faixa etária, caiu 11,2% para pessoas de 60 a 64 anos no segundo trimestre de 2020 ante igual período de 2019. Para pessoas de 65 anos ou mais, a retração foi de 15,4%, segundo dados do IBGE.
Mesmo com a recente recuperação da economia, o quadro ainda não se normalizou para os mais experientes. Isso significa que o mercado de trabalho ficou ainda mais avesso aos trabalhadores com idade mais avançada, parcela da população que integra grupo de risco para a doença. Se antes da pandemia esses profissionais já tinham dificuldades de colocação, a crise reduziu a oferta de vagas para esse público e levou a demissões de quem ainda mantinha o emprego.
Em setembro de 2020, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) – que retrata o mercado formal de trabalho –, as admissões somaram 1,379 milhão e ficaram muito próximas da média observada para o mês entre 2012 e 2019 (1,4 milhão). Mas o comportamento é distinto entre as faixas etárias aqui analisadas.
Enquanto as contratações de jovens abaixo de 25 anos até superaram levemente a média, as vagas para os mais velhos não são abertas no mesmo ritmo. As admissões de pessoas com mais de 60 anos estão em torno de 70% da média para meses de setembro, considerando o período entre 2012 e 2019. Nas demissões, ocorre o inverso.
Embora o Caged costume ter saldos sempre negativos para as faixas etárias mais avançadas por causa da saída para a informalidade ou a aposentadoria, os desligamentos dos mais velhos estão voltando mais rapidamente à tendência histórica do que as dispensas dos mais jovens.
Na avaliação de Mórris Litvak, CEO da plataforma Maturi, especializada na inserção desse perfil de mão de obra, o preconceito com os mais velhos se intensificou na pandemia. “É algo que já existia e agora tem essa “desculpa” de as pessoas serem teoricamente grupo de risco”, afirma.
Empresas podem estar evitando esse tipo de profissional agora por causa do receio de eventuais gastos extras com contratações frustradas, mas para o economista Bruno Ottoni, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e do IDados, há risco da geração de impactos caso essa exclusão se torne duradoura.
“Na pandemia, acho que eles enfrentam uma situação mais difícil mesmo. Mas depois vai haver convergência para a situação das demais faixas etárias. A taxa de desemprego deve aumentar, porque nós postergamos a aposentadoria desses indivíduos, que não poderão sair do mercado de trabalho e terão de continuar procurando”, diz Ottoni.
*com informações do Estadão Conteúdo