Os infindáveis campos de soja e milho que Norma Gatto avistava pela janela a deixaram em pânico. A colheita se aproximava e o marido estava morto, assassinado por um ex-funcionário.
Apesar de ter crescido no meio rural, Norma nunca tinha plantado nada, e agora estava sozinha para educar três filhos e administrar uma desafiadora fazenda no coração do Brasil. “Estou perdida”, pensou.
“Foi o pior momento da minha vida”, diz Norma. “Eu tinha que ser pai e mãe, confortar a dor dos meus filhos e fazer algo que nunca tinha feito antes – trabalhar na fazenda”, recorda.
Duas décadas depois, Norma Gatto, de 60 anos, é uma das mais poderosas fazendeiras do Brasil e administra 44 mil hectares de soja, milho, feijão e gado. Durante anos ela foi a única fazendeira no sul do Mato Grosso, maior produtor de soja do país. Hoje ela dá palestras para milhares de mulheres que tentam quebrar a hegemonia masculina na agroindústria brasileira, que movimenta US$ 300 bilhões.
O Brasil é uma potência agrícola mundial. É o maior produtor de soja, café, carne e laranja. Mas sua tradicional cultura “machista” manteve as mulheres por décadas afastadas da administração das fazendas.
Isso está começando a mudar. Atualmente, um recorde d 31% das fazendas brasileiras são administradas por mulheres, o triplo em relação a 2013, segundo a Associação Brasileira do Agronegócio (Abag).
As produtoras rurais reclamam de ter mais obstáculos do que os homens na hora de acessar treinamento e crédito, e que enfrentam índices maiores de violência e discriminação. Agora, elas estão se unindo para ser mais fortes no enfrentamento dessas questões.
Conhecidas como as “rainhas do gado”, elas se reúnem uma vez por ano para discutir uma plêiade de assuntos: discriminação no trabalho, avanços tecnológicos, macroeconomia. O encontro, que começou com algumas centenas de mulheres em 2016, neste ano reuniu mais de 2 mil pessoas em São Paulo, numa conferência patrocinada por grandes companhias do setor agrícola.
Cercadas por orquídeas e tratores cor de rosa, as mulheres assistem conferências sobre o impacto da guerra comercial entre China e EUA nos preços da soja e sobre uma agricultura mais sustentável.
Kelly Andrade, produtora de grãos de 38 anos de Minas Gerais, diz que se sente inspirada por outras mulheres que tiveram sucesso num mundo dominado pelos homens.
“Às vezes a gente se sente isolada, trabalhando num cantinho do país sem saber o que está acontecendo em outras regiões”, avalia. “É fantástico essa troca de informações, verificar o que outras mulheres estão experimentando em suas fazendas, o que tem funcionado e o que tem dado errado para elas”.
Quando começou a trabalhar na fazenda do pai, diz Kelly, os bancos costumavam chamá-lo para perguntar se ela tinha permissão para fazer empréstimos.
Situações como essa não são incomuns. A companhia americana Corteva fez uma pesquisa ao redor do mundo, no ano passado, com mulheres fazendeiras. Quase 80% das brasileiras reportaram já ter enfrentado discriminação, em comparação a 52% das americanas.
“A gente tem que aprender a lidar com a discriminação, para ser respeitada e ter voz ativa”, destaca Kelly.
Mulheres de regiões mais conservadoras do país disseram que o encontro foi a primeira vez em que puderam falar abertamente sobre discriminação. Rosemeire Santos, de 47 anos, diretora da Corteva em Brasília, lançou no ano passado treinamento de um ano sobre empreendedorismo e empoderamento para um grupo de 20 mulheres. Inicialmente, lembra Rosemeire, nenhuma das mulheres admitia já ter sofrido discriminação. Mas, no final do curso, várias delas já haviam verbalizado o problema.
“As mulheres não estão preparadas para falar de discriminação no agronegócio”, diz. “Estão acostumadas e acham que isso tudo é normal”.
Na medida em que o número de mulheres no agronegócio aumenta, elas também enfrentam maiores índices de violência. No ano passado, 482 mulheres foram vítimas de conflitos rurais no Brasil, quatro vezes mais do que em 2017.
Entrar pela janela, se preciso
A advogada Ticiane Figueiredo é autora do livro “Mulheres do Agronegócio”, que fala sobre as agriculturas brasileiras. “Quando você demanda igualdade de gênero num território que tradicionalmente é um espaço masculino, os homens se sentem ameaçados e acham que queremos destruí-los. Mas eles precisam apoiar esse nosso esforço”, sublinha. “Como eles ainda ocupam as posições de comando, se não permitirem que tenhamos acesso, vamos ter que entrar pela janela”, completa.
Veteranas do encontro de fazendeiras dizem que têm uma comunidade de apoio, durante todo o ano. Elas se mantêm conectadas por chats e e-mails, compartilhando conselhos jurídicos, informações sobre preços e novas tecnologias agrícolas. Quando os tempos estão difíceis ou quando as lavouras não vão bem, elas oferecem apoio mútuo.
Kiara Motter, fazendeira de 31 anos do Norte do país, estava atrás de uma dose de motivação para assumir os negócios da fazenda de grãos da família.
“Não sou muito fã desses eventos voltados só para mulheres, mas é um desafio: geralmente, sou a única mulher na maioria dos encontros em que participo”, aponta. “Aqui eu não me sinto tão sozinha”.