Rio de Janeiro Qual o jeitão atual daqueles vendedores de enciclopédia, que batiam à porta da casa dos nossos pais? Hoje, o computador dá as cartas e os verbetes, e as estantes, outrora adornadas de preciosidades como Britannica, Delta ou Larousse Cultural, ostentam CD-ROMs e DVDs capazes de armazenar todo o conteúdo dos preciosos tomos num único disquinho. No reinado absoluto da tecnologia, o vendedor de enciclopédia tem, hoje, um perfil de desenvolvedor de software, mais ou menos como Jimmy Wales, o criador da maior enciclopédia virtual do mundo, a Wikipedia, expoente maior de um movimento que ganha corpo: o mundo Wiki.
Palavra havaiana que significa "rápido", Wiki seria a personificação do mundo ideal: aquele em que muitas pessoas trabalham, voluntariamente, em prol de uma atividade comum. Claro que, como qualquer coisa feita por um grupo tão grande de pessoas, a filosofia Wiki ainda está longe desse nirvana. Sucesso absoluto com a Wikipedia, que cresce a cada dia e por isso voltamos a ela neste reload ela começa agora a ser aplicada a diversos outros serviços online. Estão abertas as portas para a colaboração, ainda que imperfeita.
Cinco anos depois de criada, a Wikipedia é um vastíssimo campo aberto a estudos. Concebida por Wales, membro de uma entidade sem fins lucrativos chamada Wikimedia Foundation, a enciclopédia cresceu em progressão geométrica e, hoje, já é um dos 20 sites mais visitados do mundo. O sucesso é merecido: a Wikipedia já tem mais de três milhões de artigos, em dez idiomas inclusive o português.
Os artigos da Wikipedia são produzidos por 80 mil colaboradores voluntários, os wikipedistas. Quem escreve um verbete tem o direito de editá-lo e aceitar ou não a mudança que os outros também podem fazer no artigo. Funciona mais ou menos como a manutenção do kernel (coração) do sistema operacional Linux, este também um belo exemplo da filosofia Wiki. A diferença é que as mudanças efetuadas no kernel passam pelo crivo dos mantenedores, enquanto na Wikipedia as correções podem ser feitas e publicadas por qualquer um.
Babel
Dos idiomas que fazem parte da lista da Wikipedia, o inglês ainda é o que soma o maior número de artigos até a semana passada, eram 1,115 milhão, contra 131 mil em português. Deste universo de informação, muita coisa é descartável, dirão os puristas. Será mesmo?
Foi o que a revista Nature, uma das bíblias do jornalismo científico, resolveu investigar. A idéia era promover uma comparação entre os resultados alcançados na Wikipedia e na Enciclopédia Britannica, publicada desde o século XVIII. O resultado foi surpreendente: foram analisados 42 artigos científicos, dentre eles descobertas importantes da ciência como a ovelha Dolly ou curiosidades como a biografia de Dmitry Mendeleev, o criador da tabela periódica.
A análise indicou que na Wikipedia a incidência de erros é maior, mas nem tanto assim: em cada tópico consultado, foram encontrados, em média, quatro erros na enciclopédia virtual contra três na Britannica.
Isso não significa que todos os artigos encontrados na Wikipedia são dignos de confiança ou que se possa usá-los como fonte, por exemplo, na confecção de teses de mestrado ou doutorado. Há que se usar algum critério de seleção, nem que seja a confirmação da fonte primária da informação. "É importante saber o que a Wikipedia tem de bom para usar de graça e o que tem de ruim para que possa evitar. A diferença entre a Wikipedia e as enciclopédias tradicionais é que a primeira não tem um compromisso editorial, uma equipe que age como censora", diz André Breitman, que edita no Brasil a enciclopédia Koogan-Houaiss, da Editora Delta.
André dá um exemplo: com a morte do técnico de futebol Telê Santana, a equipe que atualiza o Koogan-Houiass teve de fazer modificações no verbete. Em sua definição, a equipe chegou, num primeiro momento, a afirmar que Telê era "o maior técnico de futebol que o Brasil já teve". A mudança não foi aprovada. Se fosse na Wikipedia, talvez o artigo tivesse sido publicado como foi concebido.
"Outra coisa é que na Wikipedia não há a necessidade da coerência. Você pode colocar o nome de dez remédios ou de mil, por exemplo, e não faz mal. Você não tem compromisso. Se na minha enciclopédia (Koogan-Houaiss) eu insiro uma informação sobre um remédio vou ter que colocar sobre todos", diz.
Mas se qualquer um pode escrever e publicar qualquer coisa, deve haver milhares de verbetes contendo informações imprecisas ou até mesmo mentirosas escritas por espíritos de porco, certo? A resposta é sim. Tanto que, nos EUA, em dezembro, a equipe da Wikimedia anunciou que passaria a restringir o cadastro de novos wikipedistas na versão em língua inglesa.
O anúncio foi motivado por um protesto do jornalista americano John Seigenthaler, cujo nome foi citado na Wikipedia como envolvido em dois assassinatos um, inclusive, do presidente John Kennedy. O artigo havia sido escrito por um usuário não-registrado.
Os vândalos, felizmente, são minoria. Além disso, o sistema permite que os administradores barrem artigos suspeitos. Como acompanhar a inserção de verbetes? Uma das saídas é a página de artigos recentes.
Os artigos em português ainda são, em sua maioria, escritos pelos portugueses nas pesquisas dá para identificar o "sotaque". "Os portugueses levam a Wikipedia mais a sério, mas já há muita coisa boa sendo incluída por brasileiros, como conteúdos extensos e minuciosos sobre religiões e carnaval carioca", diz o publicitário Wagner Tamanaha, wikipedista desde 2002.
Se confia no conteúdo criado por seus colegas wikipedistas? Wagner é taxativo: "Enciclopédias tradicionais já são tendenciosas. Teoricamente, toda informação reflete um modo de vida ou um sistema. A Wikipedia poderia ser um outro modo de a gente se relacionar com a verdade, mas com o sistema de hoje, sem territórios e sem fronteiras."