Ford quis recriar, na selva, o sonho americano
Até os peixes do Tapajós sabiam que a chance de a Fordlândia dar certo era quase nula. Mas Henry Ford que morreu sem visitar a região bateu o pé, até o último de seus dias, pela continuidade do projeto. Para ele, a Fordlândia não era apenas uma fonte de látex, e sim uma espécie de Jardim do Éden onde o sonho americano teria uma nova chance, recomeçando bem longe das perversões da cidade grande, dos especuladores de Wall Street e dos sindicatos de trabalhadores, para citar apenas três coisas que ele abominava.
O excêntrico empresário já havia criado, nos EUA, vários "vilarejos industriais", que buscavam integrar agricultura e indústria, numa idílica tentativa de resgatar "a América das pequenas cidades" e seus trabalhadores virtuosos. Nenhum desses vilarejos virou exemplo de sucesso comercial, mas Ford insistia em levar adiante sua "missão civilizadora".
Nesse contexto, explica Greg Grandin em seu livro, a Fordlândia não era exatamente um experimento novo, mas sim o mais radical de todos. Além de cinemas, escolas e hospitais modernos, o núcleo habitacional tinha ruas pavimentadas e iluminadas, hidrantes vermelhos e casas de madeira com jardins na frente, tal qual uma típica cidadezinha do meio-oeste norte-americano só que cercada pelo "inferno verde".
"Na Amazônia, dirigindo uma plantação remota com mão de obra empobrecida em um ambiente hostil, os gerentes da Fordlândia se viram dirigindo uma versão extrema de capitalismo a partir do zero literalmente", escreve o autor. "Quando mais tempo a plantação demorava para atingir seu objetivo original de produzir látex, mais [a Fordlândia] era defendida como projeto missionário, um modelo daquilo que Ford e, por extensão, a América poderiam realizar no mundo."
Esse "pastoralismo industrial" sintetizava algumas das maiores contradições de Henry Ford, avalia Grandin. "Ford, o homem que no início da década de 1910 ajudou a liberar o poder da industrialização para revolucionar as relações humanas, passou a maior parte do resto de sua vida tentando colocar o gênio de volta na garrafa, conter o rompimento que ele mesmo provocara", diz o historiador em seu livro. "A Fordlândia é de fato uma parábola da arrogância. Mas esta não está no fato de Henry Ford pensar que podia domar a Amazônia, mas de ele acreditar que as forças do capitalismo, uma vez liberadas, ainda poderiam ser contidas."
Fonte de quase todo o látex consumido no mundo nas três últimas décadas do século 19, a Amazônia perdeu a liderança do mercado por volta de 1915. Os seringais das colônias britânicas da Malásia e da Indonésia, nascidos de 70 mil sementes amazônicas contrabandeadas em 1876 por um inglês salafrário, não demoraram a superar a "matriz" em tamanho e produtividade e, no fim da década de 1910, já exportavam perto de 400 mil toneladas por ano, dez vezes a produção brasileira e a preços bem menores. Chegava ao fim o ciclo da borracha na Amazônia, levando embora a fortuna e o esplendor de cidades como Manaus e Belém e condenando os seringueiros a uma vida ainda mais miserável do que a que estavam acostumados.
Sobravam evidências de que, se havia um bom momento para desafiar a supremacia do Sudeste Asiático, empenhando milhões de dólares num novo e gigantesco projeto de cultivo de látex, o momento não era aquele. E que, se havia algum lugar ideal para fazer a tentativa, esse lugar não era a Amazônia.
Mas Henry Ford pensava exatamente o oposto.
O engenheiro que revolucionou a indústria mundial ao desenvolver o sistema de linhas de montagem ignorou todas as opiniões em contrário e, em 30 de setembro de 1927, comprou uma área de quase 1,5 milhão de hectares às margens do Rio Tapajós, ao sul de Santarém, no Pará. Decidiu que daquela região, batizada "Fordlândia", sairia a matéria-prima para os pneus de seus automóveis, dando à sua Ford Motor Company o domínio do último recurso natural que ela ainda não controlava.
Apesar do ceticismo em torno do projeto, havia razões para desconfiar que o empresário um símbolo do capitalismo poderia estar tendo mais um de seus lampejos de gênio, a ser reconhecido no futuro. Mas não foi o caso.
A aventura que tinha tudo para dar errado chegou ao fim em 18 anos, meses após a morte de seu idealizador. O empreendimento foi formalmente encerrado há 65 anos, em 31 de dezembro de 1945, quando o governo brasileiro tomou posse das terras, das quais a Ford se livrou cobrando apenas o necessário para cobrir os custos trabalhistas.
A história é contada em detalhes pelo historiador norte-americano Greg Grandin no notável Fordlândia: Ascensão e queda da cidade esquecida de Henry Ford na selva. No livro, Grandin explica que, embora parecesse um desatino, o plano de Ford tinha algum sentido.
Na visão do empresário, a Fordlândia seria uma alternativa ao cartel britânico da borracha, concebido para conter a queda dos preços do látex, que ameaçava o fornecimento do produto a toda a indústria dos Estados Unidos. O seringal brasileiro também daria à Ford Motor Company a autossuficiência nas matérias-primas e componentes de seus veículos na época, a empresa fazia questão de fabricar todo o carro, e não apenas montá-lo a partir de peças produzidas por terceiros.
Fordismo
Para produzir látex a preços competitivos, Henry Ford apostava na mesma fórmula que havia consagrado seu Ford T como o modelo mais popular dos EUA: bastaria tratar a plantação como uma fábrica e as árvores, como suas máquinas, aproveitando cada centímetro disponível, acelerando os processos o quanto fosse possível e controlando com rigor todas as etapas da produção, incluindo aí o desempenho dos funcionários.
O chamado "fordismo" glorificado em murais do pintor mexicano Diego Rivera e execrado pelo escritor francês Louis-Ferdinand Céline em Viagem ao fim da noite tinha funcionado fantasticamente bem para o automóvel: "[Com o passar do tempo] o custo de fabricação de um modelo T continuou a declinar, o que permitiu uma redução de seu preço, que elevou a demanda, gerando mais lucros, os quais foram investidos na fábrica para sincronizar e mecanizar ainda mais a produção, iniciando de novo todo o processo", escreve Grandin. "Em 1921, a Ford havia conquistado mais de 50% do mercado de carros americano, produzindo mais de dois milhões de Modelo T por ano, a um custo 60% mais baixo do que dez anos antes."
Na Fordlândia, ganhos adicionais viriam da exploração de todos os recursos naturais da região, da madeira nobre aos minerais do solo, explica o historiador. "Na Amazônia, Ford esperava que os químicos transformassem os minerais, óleos e plantas encontrados em sua propriedade em lubrificantes, combustíveis, tintas, sabões, cordas, fertilizantes e inseticidas."
Larga escala
Para Henry Ford, a questão se resumia a combinar a organização metódica das equipes de trabalho com o controle eficiente da natureza. Em vez de explorar as seringueiras em seu estado natural, dispersas pela floresta, a equipe de Ford derrubou a mata nativa e se pôs a enfileirar milhares de mudas a poucos metros umas das outras, tal como os britânicos faziam na Ásia.
Mas, contrariando todos os prognósticos do empresário, seu vigor capitalista foi derrotado de forma humilhante pela natureza amazônica, numa luta que, soube-se depois, estava perdida desde o início.
Munido da autoconfiança que lhe era peculiar, Ford havia dispensado qualquer apoio especializado ao planejar a Fordlândia. Seus funcionários só perceberam o estrago quando ele já era irreversível: a plantação em fileiras cerradas permitiu que fungos e insetos que em condições naturais atacavam apenas uma ou outra seringueira se espalhassem rapidamente por todas as árvores, matando a maioria. Não foi diferente em Belterra, plantação cem quilômetros ao norte iniciada em 1935.
Em seu melhor momento, os debilitados seringais de Ford não atingiram nem metade do rendimento das plantações da Indonésia. Que, como especialistas tardiamente contratados explicaram, não sofriam de tais males simplesmente porque no Sudeste Asiático não existiam os predadores nativos da Amazônia.
Serviço:
Fordlândia: Ascensão e queda da cidade esquecida de Henry Ford na selva, de Greg Grandin. Tradução de Nivaldo Montigelli Jr. Rocco, 400 páginas, R$ 56
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