O ar-condicionado no talo surtiu efeito. Por cinco vezes, em janeiro, o consumo de energia no Brasil bateu recorde histórico. Com a chuva rareada, os preços do chamado mercado livre de energia dispararam, levando a uma situação inusitada. Sem condição de entregar a energia que venderam, pelos menos duas comercializadoras de energia simplesmente desistiram de honrar seus contratos, nos últimos dias.
A Vega Energy enfrenta dificuldades em honrar contratos equivalentes a R$ 180 milhões, revelou a agência de notícias Reuters . Não é necessariamente um calote – tanto a Justiça quanto órgãos reguladores estão julgando o caso. Na prática, significa que a empresa não vai entregar para seus clientes a carga de energia com a qual tinha se comprometido. Em nota à imprensa, a Vega destacou que não recebeu nenhum valor pelas vendas.
Comercializadoras são empresas que fazem o meio de campo entre quem produz e quem compra energia. Exclusivo para consumidores de grande porte, o mercado livre de energia permite que o cliente escolha de quem quer comprar. Pode ser de uma hidrelétrica da Copel ou de uma fazenda eólica da CPFL, por exemplo.
Só que a energia, principalmente a hidrelétrica (base do sistema brasileiro) não pode ser estocada. O que faz com que os contratos dependam do chamado mercado futuro. É como um cartão pré-pago: o cliente pode fechar um contrato de compra de seis meses, mas só irá receber conforme a energia for produzida.
INFOGRÁFICO: Entenda como funciona o mercado livre de energia no Brasil
Nesta de vender hoje para entregar amanhã, algo deu errado. Tem a ver com o complicado modelo de preços do mercado livre de energia, em que os contratos são firmados com meses de antecedência e levam em conta um preço estimado.
No início de janeiro, o valor do megawatt-hora para entrega imediata estava em R$ 136,43 nas regiões Sudeste, Centro-Oeste e Sul, as principais consumidoras do país. No início de fevereiro, foi para R$ 451,57. Alta de 230% no intervalo de um mês.
O Preço de Liquidação das Diferenças (PLD) é definido pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) com base em um modelo matemático, que leva em conta fatores como a expectativa de chuva, entre outros.
Mas este preço, tabelado, não é necessariamente o valor real pago pela energia. Em um caso hipotético, um consumidor poderia fechar um contrato de um ano a um custo fixo de R$ 100 o megawatt-hora, por exemplo. Neste caso, ele paga o valor acordado em contrato, independente do valor que a CCEE defina para o curto prazo.
Tudo indica que foi aí que a Vega se perdeu. A empresa fechou quase R$ 200 milhões em contratos apostando que, na hora de entregar para os clientes, compraria esta energia por um preço baixo no curto-prazo. Mas o que ela chamou de “fatores climáticos extraordinários e atípicos” levou o preço da energia a patamares jamais esperados pelo mercado.
A regra de compra e venda vale para o mercado livre, de grandes clientes. O consumidor residencial (e de pequeno porte) não fica exposto a estas variações, já que é vinculado ao chamado “mercado regulado”. O que o obriga a adquirir energia da concessionária de sua região geográfica.
Efeito cascata
A situação pode ter um efeito cascata, já que é comum que as comercializadoras de energia vendam para outras comercializadoras, já que elas recorrem às concorrentes para completar seu portfóio.
Pelo menos uma delas já enfrenta dificuldades. A Linkx está em negociação com seus clientes para evitar um rombo de R$ 76 milhões, segundo informações do jornal Valor Econômico .
Em nota à reportagem, a Linkx informou que um comitê composto por quatro comercializadoras foi criado na última quinta-feira (14), e que as “soluções apresentadas na referida reunião” estão em curso. “Com essas medidas, a Linkx acredita encontrar uma solução o mais breve possível”, diz a nota, assinada pelo sócio-diretor Ricardo Ito.
Modelo especulativo
É comum, no mercado, que uma empresa venda uma porção maior de energia do que tem em carteira, explica o sócio da Upside Trading, Robson Luiz Rossetin. Pode ocorrer tanto com uma comercializadora quanto com uma geradora (que pode vender 50 MWh em um mês em que produza apenas 40 MWh – neste caso, ela compra os 10 megawatts-hora restantes no mercado de curto prazo e repassa para seus clientes).
É como um produtor de soja, compara, que pode enfrentar quebra da safra e colher apenas 80% daquilo que se comprometeu a vender. O problema do mercado de energia, defende, é a amplitude de variação do preço.
“Não existe commodity no mundo que tenha uma variação tão grande quanto a energia elétrica no Brasil”.
Lógica burocrata
A “lógica burocrata” da definição dos preços é uma das grandes falhas do sistema de compra e venda livre de energia, avalia o pesquisador Adilson de Oliveira, professor titular do Instituto de Economia da UFRJ.
A forma como o mercado é regulado expõe os atores a uma insegurança de valores:
“É um preço sem lógica, não é de mercado. Em todos os mercados do mundo o preço é baseado nisso [expectativas de chuva e de geração], mas não pela burocracia, e sim por agentes do mercado.”
Um modelo matemático, defende, não dá conta da complexidade do sistema elétrico que o país tem atualmente. O crescimento de matrizes como solar e eólica, além da chamada geração distribuída (que permite que as pessoas produzam energia na própria casa ou condomínio), exige um modelo mais livre de definição de preço.
Caixa-preta
Ainda que a política de preços seja apontada como vilã, intriga o fato do mercado de energia ficar exposto a variações climáticas a ponto de milhões de reais em contratos ficarem em risco. Diferentes especialistas concordam que a “caixa preta” dos contratos de energia, que são bilaterais e não passa por nenhum tipo de auditoria, pesam para a insegurança do setor.
Não há necessidade de passar por uma regulação de setor, sob crivo da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), explica a diretora do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura (Ceri/FGV), Joisa Dutra. Mas de expor a energia às regras do mercado financeiro, tal como é feito com as demais commodities.
Quando uma empresa firma contratos de energia no Brasil, hoje, não há uma instituição que ateste a capacidade dela de entregar aquela energia. Da mesma forma que não é possível aferir se o comprador daquela energia tem patrimônio o suficiente para pagar por ela.
A vinculação ao mercado financeiro é fundamental para o avanço do setor elétrico no Brasil, avalia Dutra:
“Energia é uma indústria com grande capacidade de atrair capitais, o Brasil é muito bem dotado de recursos, os agentes já estão aqui. O que a gente precisa é criar um ambiente mais adequado, para que estes investimentos possam se dar com custos de capital coerentes.”
Bolsa de valores poderia ser alternativa de regulação
Edson Gonçalves, também do Ceri/FGV, explica que há instituições financeiras, como a Bolsa de Chicago, especializadas em commodities. A própria B3, em São Paulo, tem um segmento para isto.
Além de dar visibilidade às transações, a vinculação a um balcão ou Bolsa de valores cria todo um sistema de segurança. Atores como corretoras e o próprio regulador financeiro entram em cena em cenários catastróficos para mitigar impactos ao mercado. “Uma perda de R$ 200 milhões, por exemplo, é um absurdo, algo que a bolsa não permitiria”.
Esta falta de segurança na contratação dá a volta completa no sistema, e impacta até mesmo o financiamento da produção de energia, na avaliação dos pesquisadores do Ceri/FGV. Instituições financeiras ficam receosas de investir em projetos de energia (como usinas solares) por não saber se, lá na frente, aquela energia será vendida para um consumidor confiável.
Algo que foi mitigado, por alguns anos, com os juros subsidiados do BNDES (TJLP). Mas que precisa ser revisto em um momento em que o banco público tenta abrir espaço para a entrada de concorrentes.