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100 anos de Paulo Freire: Uma crítica do educador crítico

O educador Paulo Freire. (Foto: Reprodução / YouTube)

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Não há dúvidas que Paulo Freire é o teórico educacional mais influente da história brasileira. Detentor de diversos títulos Doutor Honoris Causa, Freire influenciou uma geração de profissionais do ensino que, por sua vez, formaram outra geração de educadores ao redor do Brasil e do mundo. Sua obra mais famosa, a Pedagogia do Oprimido (1974) é livro de cabeceira de muitos destes profissionais, alcançando desde o ensino básico até o universitário. Estes, dentre outros motivos, acabaram levando Freire ao posto de patrono da educação brasileira no ano de 2012. No meio de todo este prestígio, é questionável se caberia espaço para algum tipo de ressalva ou ao menos ponderação sobre as ideias do autor já que, não raramente, as críticas às ideias de Freire costumam ser tão bem receptivas quanto mullets.

Em tempos onde a expressão “Fake News” parece banalizada, servindo como uma espécie de trunfo desde o campo jurídico até os rincões do Twitter, as ideias discordantes do pensamento freiriano têm sido vistas como “anticientíficas”, próximas de um obscurantismo do espectro político mais à direita. Estas críticas seriam incapazes de reconhecer as contribuições de um dos teóricos mais influentes do último século. Neste terreno de ampla aceitação, haveria algum espaço para o debate analisando as teorias do autor?

Considerando a importância do debate para o avanço do conhecimento, vamos nos lançar a esta ingrata tarefa. Correremos o risco de sermos incompreendidos avaliando (como o próprio Freire defende) “criticamente” a teoria do próprio Freire. Afinal, existem motivos legítimos para questionar o trabalho do pedagogo?

Influências no pensamento Freireano

Para compreender a filosofia educacional de Freire, é necessário ter em mente que o autor tinha por propósito implementar uma transformação radical dentro da sociedade. Considerando sua preocupação com a pobreza e desigualdades existentes (questões mais do que legítimas), para Freire seria necessário uma mudança intensa e incisiva sobre as relações dentro da sociedade. Mas, em que tipo de referencial teórico Freire se ancora para implementar essas mudanças? Pois, por mais óbvio que pareça, o desejo por mudanças não implica em como ela deverá ser feita. Felizmente, para a satisfação de todos, Freire não esconde qual o caminho ele escolhe para nortear seu desejo por mudanças. Ao longo de suas obras, o autor deixa bem claro a sua influência ancorada no movimento marxista-socialista. O materialismo histórico e dialético (de Marx) surge em diferentes níveis nas preocupações de Freire. Ele passa desde a crítica à uma sociedade liberal, baseada em uma economia de mercado, até as mazelas proporcionadas aos oprimidos dentro de sala de aula. Em que pese seu apoio ao cristianismo e pautas mais pós-modernas, é notório que é a tradição marxista do seu pensamento que guia sua simpatia a tais vertentes não o inverso.

Assim como Marx, Freire entende que mais que interpretar o mundo, seria necessário transformá-lo e, para isso, uma revolução seria imprescindível. Desta forma, Freire não se furta ao tratar de forma elogiosa em seus livros educacionais mesmo ditadores pertencentes a este espectro político. Figuras como Ernesto Guevara, Lênin, Mao e Fidel Castro aparecem por diversas vezes junto adjetivos nobres, de forma que o leitor nem se lembre que estes mesmos autores ordenaram ou produziram regimes responsáveis diretamente pelo fuzilamento de dissidentes. No livro Pedagogia do Oprimido (1974), na mesma página que Freire elogia Guevara, Freire coloca o processo natural de uma revolução “detendo vidas”. Surge uma questão: em que medida é adequado ao ambiente escolar um autor de um livro pedagógico que enaltece ditadores, e, logo em seguida, fala naturalmente sobre um processo revolucionário de “deter vidas''. Haveria nesses propósitos algum objetivo humanista ou pedagógico profundo não reconhecido? É estranho pensar que esse material seja mesmo critério de seleção de candidatos em concursos educacionais.

O papel do professor

Ao ler parte da produção bibliográfica de Freire, é possível que o leitor se perca, questionando se, na verdade, estaria ele lendo um livro de educação ou política. É importante salientar que esta confusão não é feita sem propósito. No pensamento freireano, assim como para boa parte das teorias e leis educacionais vigentes no país, a educação não pode se separar da política. Considerando a dificuldade ou impossibilidade de suprimir nossos vieses, Freire declara que a boa educação se faz quando amarrada à sensibilidade dos problemas sociais. Problemas estes vistos pela mesma ótica do pensamento marxista mencionado anteriormente. Com intuito de modificar esta realidade, Freire vê no ambiente escolar a grande chave para a transformação da sociedade. Desta forma, para ele, a neutralidade no ambiente de ensino aparece não apenas como um erro mas uma ilusão. Assim, qual seria o papel do professor? O bom modelo de professor para Freire não é aquele que apresenta o conteúdo, transfere o aprendizado e volta para casa, deixando a política e disputa pelo poder de lado, com a sensação de dever cumprido. Pelo contrário, Freire chega a chamar este profissional de “reacionariamente pragmático” por transmitir conhecimentos e preferir separar a educação da política.

Segundo ele, o bom educador seria aquele que se empenha na luta "transformadora" vista sob a ótica revolucionária. Desta forma, o posicionamento político não é uma opção para o professor que deseja cumprir com seu dever de combater as injustiças e minar o desigual sistema capitalista .

Neste contexto, poderíamos lançar outra pergunta, afinal, o que haveria de errado com tais ideias? À princípio, misturar a educação com a política não seria algo bom? Afinal, a política está em tudo, certo? Sobre esta última pergunta, podemos dizer que a resposta depende muito do conceito de política adotado. Caso a política, como a apresentada por Freire, esteja amarrada à uma teoria filosófica que crê mesmo prever o futuro da história descrevendo seu fim (como à teoria marxista) é necessário ter cautela. A simbiose entre a política partidária e a educação torna o debate acadêmico sobre o ensino um barril de pólvora. Ao assumir a interferência da política no ensino, não debatemos mais com pesquisadores e profissionais que desejam o melhor resultado para seus alunos. Estamos agora diante de aliados e inimigos, opressores e oprimidos que são apenas enquadrados de acordo com uma visão política final, já interpretada à luz da história da luta de classes. Em um campo como este, uma educação baseada em evidências, imune aos interesses e jogos políticos inerentes da disputa de poder, torna-se tão viável quanto a estadia em Saturno. Ao menos no nosso parecer, esta concepção corre o sério risco de transformar o livre debate educacional em uma guerra de facções.

Aprendizagem

Ao apontar alguns dos aspectos que norteiam sua epistemologia educacional, Freire propõe algumas soluções que, ao menos hoje, parecem bastante distantes do que as evidências têm nos mostrado sobre o problema da perda de desempenho escolar. Segundo Freire, não é apenas indesejado como um equívoco que professores transmitam conhecimentos dentro de sala de aula(?). Esta concepção, vista por ele como “invasiva”, onde o educador deposita “saberes” nos seus alunos como se fosse um bancário adicionando valores em uma instituição financeira representaria um grave erro. Para esboçar esta crítica, Freire estabeleceu o conceito de “educação bancária”. Através dela, o educador prejudicaria a autonomia e a emancipação do aluno.

Ao menos do ponto de vista cognitivo-educacional, o principal problema desta briga de Freire contra a transmissão de conhecimentos se encontra no fato de que o ensino instrucional está longe de ser o vilão da história quando o assunto é desempenho escolar. Metodologias de ensino baseadas na transmissão do aprendizado por parte do professor têm sido revisadas por décadas com efeitos positivos sobre o desempenho dos alunos. Para piorar, estes efeitos não costumam ser modestos, pelo contrário. Estudos de metanálise baseados na revisão de trabalhos acadêmicos distintos, realizados em diferentes localidades ao redor do mundo apontam de forma clara para o efeito benéfico do ensino instrucional.

Outras frases de Freire soam ainda mais estranhas dentro deste debate: “ninguém educa ninguém - ninguém se educa a si mesmo - os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”. Não há dúvida que os homens só conseguem participar da educação inseridos no mesmo mundo que permite a sua existência. Mas não nos parece haver qualquer sustentação para dizer que ninguém é capaz de educar alguém. Afinal, caso o professor seja incapaz de transferir conhecimentos e de educar alguém, o que sobraria para ele na prática do ensino escolar? Fazer proselitismo político?

Talvez resida aqui um dos principais pontos falhos tanto da clareza de Freire quanto de seu modelo teórico-epistemológico. Ao mesmo tempo que o patrono da educação nacional desvaloriza a transmissão de conhecimentos, defende a transmissão de valores políticos por parte do professor. Temos um paradoxo. O mesmo ambiente que possui inúmeros desafios provenientes de uma dificuldade natural do processo de aprendizado, deve agora abrir mão - segundo Freire - da direcionalidade do ensino para assumir obrigatoriamente um delineamento político. Essa inversão, onde a transmissão de conhecimentos perde espaço para a política dentro da escola pode ser a raiz epistemológica de muitos desvios de prioridade comumente vistos na educação nacional.

Muito antes do lançamento da pedagogia do oprimido de Freire, Hannah Arendt já havia apontado para o risco em se politizar a educação. Em seu “The crisis in education” (1961) a filósofa apresenta como a supressão da autoridade e a perda do horizonte calcado na transmissão do conhecimento tem promovido uma crise sem precedentes. Aqui, cabe retornar mais uma vez para o trabalho de Freire na medida em que ele não só propõe um modelo educacional que partidariza o ensino entre “opressores/oprimidos” como coloca o oprimido como protagonista nesse processo revolucionário que se realiza no ambiente escolar.

Em um cenário onde cerca de ⅔ das crianças chegam ao ensino médio sem dominar habilidades aritméticas básicas, parece-nos difícil valorizar a política e a “prática problematizadora” contra transmissão de conhecimentos. Ao que tudo indica, para a filosofia de Freire parece ser mais fácil consertar o mundo do que armazenar a tabuada. Fica a pergunta: Como promover a emancipação e autonomia no ambiente escolar sem a transmitir conhecimento, reduzindo a história  à uma visão final de mundo? É preciso ter cuidado para não esconder dentro da consciência crítica, um servilismo irrestrito pertencente a modismos políticos.

Através destes comentários, cremos que seja possível registrar no centenário de Freire estas breves críticas ao trabalho do teórico educacional mais influente da história do país. Em um cenário onde a esmagadora maioria dos profissionais de educação encontra-se em contato com seus trabalhos, parece ser necessário valorizar o debate e compreender que visões dissidentes podem ser capazes de apontar para melhorias. Caso contrário, corre-se o forte risco de transformar a educação em um terreno fértil para religiões políticas à deriva tanto de “messias educacionais” quanto de ideologias do século XIX pouco afeitas ao debate científico.

*Henrique Simplício é bacharel e licenciado em ciências sociais, mestre em Sociologia e doutorando em Neurociências.

*Vitor Geraldi Haase é professor titular do Departamento de Psicologia da UFMG.

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