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Em muitos trabalhos anteriores, afirmei que as crianças chegam ao mundo biologicamente programadas para se autoeducarem. A evidência vem de observar as incríveis capacidades de aprendizagem das crianças antes de começarem a frequentar a escola, as maneiras pelas quais crianças e adolescentes em culturas de caçadores e coletores se educam e as formas pelas quais as crianças de hoje se educam em escolas democráticas e em famílias não escolarizadas. 

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Neste texto, desejo ser um pouco mais preciso sobre o projeto biológico para a educação autodirigida. Isso se apoia em grande parte, eu sugiro, em quatro unidades poderosas que existem em todas as crianças normais: curiosidade, brincadeira, sociabilidade e planejamento. As bases para estas unidades são codificadas em nosso DNA, moldadas pela seleção natural, em nossa história evolutiva, para servir o propósito da educação. Nossas escolas tradicionais eliminam deliberadamente essas unidades, especialmente as três primeiras, no interesse de promover a conformidade e manter as crianças fixadas no currículo da escola. Em contrapartida, a educação autodirigida – como ocorre em famílias que adotam a desescolarização e em escolas democráticas – opera permitindo que esses movimentos naturais floresçam. A seguir, vou elaborar um pouco sobre cada uma dessas unidades e como elas interagem umas com as outras para promover a educação: 

Curiosidade 
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Aristóteles começou seu grande tratado sobre a origem do conhecimento (“Metafísica”) com as palavras: “Os seres humanos são naturalmente curiosos sobre as coisas”. Nada poderia ser mais verdadeiro. Somos intensamente curiosos, desde o momento do nosso nascimento até, em muitos casos, o momento da nossa morte. Desde o nascimento, os bebês começam a olhar mais para objetos novos do que aqueles que já viram. À medida que ganham mobilidade, primeiro com os braços e mãos e depois com as pernas, eles usam essa mobilidade para explorar domínios cada vez maiores de seu ambiente. 

Eles querem entender os objetos em seu ambiente, e eles querem particularmente saber o que podem fazer com esses objetos. É por isso que eles estão continuamente interagindo com as coisas, sempre explorando. É por isso que, uma vez que têm linguagem, eles fazem tantas perguntas. Essa curiosidade não diminui à medida que as crianças envelhecem – a menos que a escolarização reprima – mas continua a motivar modos cada vez mais sofisticados de exploração e experimentação em espaços cada vez maiores do ambiente. As crianças são, por natureza, cientistas. 

Brincadeira 
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O instinto para brincar serve propósitos educativos complementares aos da curiosidade. Enquanto a curiosidade motiva as crianças a buscarem novos conhecimentos e compreensão, a brincadeira as motiva a praticar novas habilidades e a usar essas habilidades de forma criativa. Crianças em todos os lugares, quando são livres para fazer isso e têm muitos companheiros de brincadeira, gastam enormes quantidades de tempo brincando. Elas brincam para se divertir, não deliberadamente para educar-se, mas a educação é o efeito colateral pelo qual o forte impulso para brincar surgiu no decorrer da evolução. Elas tocam em toda a gama de habilidades que são cruciais para sua sobrevivência e bem-estar em longo prazo. 

- Elas brincam de maneiras físicas, conforme elas escalam, correm, dão cambalhotas, e é assim que desenvolvem corpos fortes e movimentos harmônicos. 

- Elas brincam de maneira arriscada, e é assim que aprendem a lidar com o medo e desenvolvem coragem. 

- Elas brincam com a linguagem, e é assim que se tornam competentes com o idioma. 

- Elas brincam socialmente, com outras crianças, e é assim que aprendem a negociar, ceder e se dar bem com os colegas. 

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- Elas jogam jogos com regras implícitas ou explícitas, e é assim que aprendem a seguir regras. 

- Elas jogam jogos imaginativos, e é assim que aprendem a pensar de forma hipotética e criativa. 

- Elas brincam com a lógica, e é assim que desenvolvem pensamento lógico. 

- Elas brincam de construir coisas, e é assim que aprendem a construir. 

- Elas brincam com as ferramentas de sua cultura, e é assim que se tornam habilidosas em usar essas ferramentas. 

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A brincadeira não é um intervalo na educação; é educação. As crianças aprendem muito mais em jogo e com muito mais prazer do que poderiam aprender em uma sala de aula. 

Sociabilidade 

Nós, seres humanos, não somos apenas os mais curiosos e divertidos dos mamíferos, mas também os mais sociais. Nossos filhos entram no mundo com uma compreensão instintiva de que sua sobrevivência e bem-estar dependem da sua capacidade de se conectar e aprender com outras pessoas. Todos os seres humanos, mas especialmente os jovens, querem saber o que aqueles que os rodeiam sabem e compartilham seus próprios pensamentos e conhecimentos com os outros. Os antropólogos relatam que as crianças em todos os lugares aprendem mais assistindo e ouvindo as pessoas ao seu redor do que através de qualquer outro meio. 

Nossa adaptação mais singular para a vida social, que melhora enormemente nossa capacidade de aprender um com o outro, é a linguagem. Assim que são capazes de conversar, as crianças começam a fazer perguntas. Elas não querem ser informadas sobre coisas que não as interessam, mas quase exigem ser informadas sobre as coisas que fazem. A linguagem nos permite compartilhar todo tipo de informações um com o outro. Isso nos permite contar uns aos outros não apenas sobre o aqui e agora, mas também sobre o passado, o futuro e o hipotético.

Como o filósofo Daniel Dennett afirmou em um capítulo sobre linguagem e inteligência, “Comparando nossos cérebros com cérebros de pássaros ou cérebros de golfinhos é quase fora de questão porque nossos cérebros são efetivamente unidos em um único sistema cognitivo que anula todos os outros. Eles são acompanhados por uma inovação que invadiu o nosso cérebro e nenhum outro: a linguagem”. Estudantes autodirigidos, ansiosamente e naturalmente, se unem nessa rede. 

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Hoje, por causa da internet, esse sistema cognitivo é maior do que nunca. Jovens com acesso à internet têm acesso a um mundo inteiro de hipóteses, ideias e informações. A educação autodirigida nunca foi tão fácil. 

Planejamento 

Nós, muito mais do que qualquer outra espécie, temos a capacidade de pensar à frente do tempo. Na verdade, somos levados a fazê-lo. Não reagimos apenas a situações imediatas; antecipamos situações futuras, fazemos planos para elas e seguimos esses planos. Esta é a mais conscientemente cognitiva das nossas unidades educativas básicas, e desenvolve-se mais devagar do que as outras. À medida que as crianças envelhecem, elas se tornam cada vez mais capazes e motivadas para planejar com antecedência e mais à frente. Este é o impulso que leva os estudantes autodirigidos a pensar sobre seus objetivos de vida, grandes e pequenos, e a procurar deliberadamente o conhecimento e praticar as habilidades necessárias para alcançar esses objetivos.

Cientistas cognitivos referem-se a essa capacidade de fazer planos e realizá-los como um funcionamento executivo autodirigido. Pesquisas feitas por esses cientistas mostraram que as crianças que têm tempo livre suficiente para brincar e explorar sozinhas e com outras crianças, de modo independente dos adultos, desenvolvem essa capacidade de forma mais completa do que as crianças que passam mais tempo em atividades estruturadas por adultos. Isso não é surpreendente. Quando as crianças criam suas próprias atividades, sem o controle de adultos, elas continuamente praticam a capacidade de fazer planos e realizá-los. Elas cometem erros, mas aprendem com esses erros. 

Peter Gray é professor pesquisador na Boston College e autor dos livros “Free to Learrn” (“Livre para Aprender”, em tradução livre) e “Psicologia”. Conduziu e publicou pesquisas em psicologia comparada, evolutiva, educacional e do desenvolvimento. Tem graduação pela Columbia University e doutorado em ciências biológicas pela Rockefeller University.

Publicado originalmente no site da FEE.

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Tradução: Andressa Muniz